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Projeto temático identifica e preserva biodiversidade de baía no litoral de SP

Pesquisas coordenadas por docente da Unicamp, em São Sebastião, resultam em levantamento minucioso da região

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Em 2010, editorial de jornal da cidade de São Sebastião, Litoral Norte de São Paulo, que dava como morta a Baía de Araçá, localizada na parte central do Canal do município, despertou a indignação dos moradores do entorno, inclusive caiçaras que, com a anunciada ampliação do porto local, que a margeia, consideravam ameaçado esse berçário de vida – fundamental para a sustentabilidade das famílias que ali vivem e para a manutenção de sua identidade cultural. Em iniciativa inédita, os moradores recorreram à ajuda de pesquisadores, talvez facilitada porque há cerca de 60 anos, oriundos de várias universidades, eles estudavam a área e encontravam apoio logístico do Centro de Biologia Marinha da Universidade de São Paulo (CEBIMar-USP), instalado muito próximo à baía.

Foi então que a comunidade acadêmica, constituída por pesquisadores, professores e alunos de diferentes instituições, se pôs a campo para estudar a real situação da baía e fornecer informações e elementos concretos para que as autoridades jurídicas acionadas pudessem proferir sentença que impedisse seu soterramento, mesmo que parcial, ou a construção de plataformas sobre o leito d’água, o que levaria ao extermínio de grande parte da fauna, comprometendo a utilização turística e de lazer de uma de paisagem única, constituída de praias, manguezais, costões rochosos, adjacente ao Canal de São Sebastião, onde a profundidade alcança 30 metros.

Embora pesquisadores da Unicamp, e principalmente da USP, que trabalhavam há anos na região, soubessem da riqueza das espécies animais e vegetais ali presentes, foi necessário um estudo mais sistemático e abrangente que permitisse o conhecimento da biota da Baía do Araçá. Foi quando a professora Cecília Amaral, do Departamento de Biologia Animal do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, assumiu a coordenação de um projeto temático que, além de estudar a riqueza das espécies vegetais e animais da baía, visou a realização de um amplo levantamento do ambiente e suas múltiplas influências na sobrevivência desses organismos.

Foto: Scarpa
A professora Cecília Amaral, coordenadora do projeto temático

Para tanto, havia necessidade de entender como essa região costeira funciona em termos sistêmicos, considerando processos físicos, biológicos e sociais, dentre eles circulação e transporte de sedimentos, interações tróficas, fluxos de matéria e energia, produção e dinâmica pesqueira, entre outros.  Além disso, fazia-se necessário levantar os serviços prestados pelo ambiente, econômicos ou não, diretos e indiretos, com destaque para os derivados da biodiversidade marinha, e avaliar ainda a importância socioeconômica da região, sugerindo propostas de ação participativa que permitissem a sustentabilidade da área e possibilitassem o diálogo entre ciência, população e tomadores de decisões. A docente considera que o estudo deu origem a um conjunto robusto de informações que permitiu mostrar que não se devia alterar a estrutura da baía. O seu resultado mais imediato e visível foi a suspensão judicial da ampliação do Porto de São Sebastião.


Biota

A complexidade dessa abordagem exigiu a compatibilização de treze módulos de estudo: sistemas planctônico, nectônico, bentônico, manguezal, além de hidrodinâmica, dinâmica sedimentar, interações tróficas, diagnóstico pesqueiro, identificação e valoração dos serviços ecossistêmicos, gestão integrada e modelagem ecológica, gerenciamento e compartilhamento de dados, hidrocarbonetos e metais traço em sedimento. Nesse trabalho a professora Cecília contou com a colaboração de especialistas nestas diferentes áreas e com quatro pesquisadores da USP que auxiliaram na coordenação geral do projeto.

O Projeto Biota/Fapesp-Araçá, iniciado em 2012 e concluído em 2017, teve a participação de um elenco de especialistas provenientes de diversas áreas e instituições brasileiras como biólogos, geólogos, físicos, químicos, além de especialistas em pesca e gestão e também profissionais especializados em trabalhos com banco de dados e modelos matemáticos. 

Foto: Cecília Amaral
Amostrador para coleta de sedimento em fundo arenoso, para estudo da fauna | Foto: Cecília Amaral

Em 2015, uma primeira amostra dos resultados obtidos deu origem ao livro “Vida na Baía do Araçá: diversidade e Importância”, resultado do esforço coletivo de pesquisadores e estudantes que, em linguagem acessível, destinou-se a divulgar o conhecimento científico, informar a opinião pública e subsidiar tomadores de decisões e administradores e órgãos judiciais sobre a importância da preservação dos ecossistemas e da biodiversidade.

No prefácio dessa publicação destinada a não especialistas o professor Alvaro Esteves Migotto, do CEBIMar-USP, vaticinava o alcance do projeto: “Não há nada de parecido feito no Brasil e estudos desse tipo são raros no mundo. Integrando dados de processos físico-químicos, biológicos  e socioeconômicos que possibilitarão compreender a fundo a dinâmica da baia, o projeto terá como um dos seus resultados principais a caracterização quantitativa dos serviços ambientais prestados por um ambiente modelo”.

Na mesma publicação, o coordenador do Programa Biota/Fapesp, professor Carlos Alfredo Joly, do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, afirmava  com muita propriedade: “O livro foca não só a comunidade científica como também o público extramuros acadêmicos, tais como comunidades e lideranças locais, membros de organizações não-governamentais (associações de moradores e de cunho ambiental), representantes do Ministério Público Estadual e Federal, mídia especializada e formadores de opinião, bem como representantes de organizações públicas e privadas com interesses no desenvolvimento socioeconômico local (Porto de São Sebastião, Prefeitura de São Sebastião, Sabesp, Petrobrás). Busca dessa forma disseminar o conhecimento gerado, utilizando uma linguagem que associa o rigor científico à objetividade e simplicidade, elevando o nível de informação da população local, capacitando-a para participar efetivamente das decisões que impactam a biodiversidade, os serviços ecossistêmicos e os aspectos socioeconômicos e culturais da região”.

Reprodução
À esq., Canal de São Sebastião, Baía do Araçá ao lado do Porto de São Sebastião (Marinha do Brasil - Hidrografia e Navegação); à dir., Baía do Araçá - detalhes mostrando os diferentes tipos de ambientes, praia, costão rochoso, planície de maré, manguezal, ilhas e um sublitoral que alcança mais de 30 m de profundidade (gráfico de Tatiana Steiner)

Com o desenrolar do projeto, e à medida que os seus resultados iam sendo divulgados, várias instituições brasileiras e estrangeiras se interessaram e passaram a integrá-lo, consolidando hoje a publicação de mais de cem artigos em periódicos internacionais que culminaram recentemente, em outubro último, na edição especial da revista Ocean & Coastal Management, dedicada exclusivamente à publicação de 16 artigos resultantes do projeto Biota/Fapesp-Araçá, que teve como objetivo fornecer subsídios para o gerenciamento de um ecossistema costeiro subtropical, a Baia do Araçá, que em decorrência dos achados  se revelou um dos locais de mais alta riqueza e diversidade de espécies da costa brasileira. Cumpriam-se assim os vaticínios do professor Migotto, por ocasião da primeira publicação.

A professora Cecília lembra que, além de tudo, o projeto possibilitou a formação de um grande número de jovens pesquisadores, ampliando substancialmente a capacitação científica para estudos sobre a biodiversidade, conservação e manejo marinho no Estado de São Paulo. O projeto possibilitou a integração de cerca de 180 pesquisadores de 32 instituições de nove países, o que permitiu expandir as interpretações ecológicas, sociais, econômicas e políticas. Além de tudo, ações desenvolvidas junto à comunidade local e o conhecimento científico adquirido permitiram melhor entendimento dos serviços ecossistêmicos prestados pela baía e possibilitaram um diálogo objetivo entre cientistas e tomadores de decisão.

Foto: Gabriel Monteiro
Navio Petroleiro no Canal de São Sebastião | Foto: Gabriel Monteiro

A docente lembra ainda que na Baía do Araçá estão representados muitos dos conflitos que afetam várias outras regiões costeiras do Brasil e também do mundo, daí o interesse nacional e internacional nesse estudo. Para ela, todos os pesquisadores que participaram do projeto, que se estendeu por cinco anos, sentem muito orgulho de terem contribuído para sua realização.

A FAPESP financiou todas as necessidades do projeto em termos de equipamentos, materiais, viagens nacionais e internacionais e concessões de bolsas a alunos de graduação e pós-graduação. Mas, além disso, foram concedidas muitas bolsas do CNPq, da Capes e até de agências de fomento de outros estados.


Publicações destinadas ao público

Merecem destaque dez livros, publicados em linguagem acessível e ricamente ilustrados, destinados ao público em geral, como moradores locais e autoridades, e disponíveis on line. O primeiro, “Vida na Baía do Araçá - diversidade e importância”, que teve edição impressa em 2015, surgiu da necessidade de mostrar para a população, formuladores de políticas públicas, Ministério Público, procuradores e juízes que a baía pode ser considerada uma das áreas mais ricas da costa brasileira e é imperioso preservá-la. Estrangeiros que tiveram acesso ao projeto, por meio de palestras realizadas no Brasil e no exterior, solicitaram que a publicação tivesse versão em inglês porque pretendiam implantar projeto semelhante em seus países.

Em 2016, foram lançadas ainda duas publicações impressas. Uma delas sugere um “Plano local de desenvolvido sustentável da Baia do Araçá” e relata o que acontece nela e a opinião dos moradores do entorno. A outra, “Desvendando os oceanos: um olhar sobre a Baía do Araçá”, foi elaborada para ser utilizada como cartilha pela população local e nas escolas. Todas estas publicações podem ser acessadas na biblioteca digital da Unicamp e USP.  

Foto: Gabriel Monteiro
Foto panorâmica da Baía do Araçá, mostrando os diferentes tipos de ambientes praia, costão rochoso, planície de maré, manguezal,ilhas e um sublitoral que alcança mais de 30 m de profundidade | Foto: Gabriel Monteiro

A professora Cecília destaca um aspecto importante que orientou o projeto: a preocupação em dar retorno à comunidade, fato raro nos trabalhos acadêmicos, fazendo chegar a todos os seus seguimentos os resultados encontrados e a importância da conservação da biodiversidade. A propósito ela diz: “Foi assim que conseguimos fazer chegar ao juiz, a quem cabia julgar a ação encaminhada pelo Ministério Público, subsídios para defender a demanda dos moradores e suas associações, pois o porto já tinha uma licença de expansão aprovada pelo Ibama. Daí a importância de publicações que possam chegar à população, aos governantes, ao judiciário. É por meio de textos palatáveis ao grande público que os pesquisadores podem mostrar a força que têm”.

 

 

Imagem de capa JU-online
Audiodescrição: em imagem panorâmica e ao ar livre, barco de pesca de pequeno porte, com cerca e dez metros de comprimento e parte da cabine fechada, pintado nas cores branco, amarelo, azul e vermelho, encontra-se ancorado próximo às margens de uma pequena praia, com estreita faixa de areia, pedras e uma densa vegetação logo ao fundo. Na areia, há uma pessoa manipulando galões plásticos, enquanto que na água, estão algumas aves se alimentando. O tempo está ensolarado. Imagem 1 de 1.

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