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Avatar é usado por surdos em sala de aula

Estudo mostra como alunos compreendem a tradução para Libras em atividade proposta em livro do ensino fundamental

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O professor José Mario De Martino, da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (FEEC) da Unicamp, conta que em uma das edições do evento anual “Ciência e Arte nas Férias” recebeu, no Laboratório do Departamento de Engenharia de Computação e Automação Industrial (DCA) da FEEC, um grupo de alunos surdos do curso médio, entre 16 e 17 anos, acompanhados por uma intérprete de Libras (Língua Brasileira de Sinais) interessados em conhecer as atividades de pesquisa lá desenvolvidas. Em dada altura da exposição, uma aluna, que revelava muito interesse, quis saber como as imagens aparecem na TV. Ao abordar o conceito de luz e de sua propagação no espaço, a moça se mostrou atônita e nervosa porque, para a ela, o conceito de propagação da luz não fazia sentido. Depois de certa dificuldade e de um bom tempo, se esclareceu que o conceito de luz tinha sido entendido como lâmpada e, para ela, a movimentação de uma lâmpada no espaço era incompreensível. Diante do ocorrido, ele aventou a possibilidade de alguns problemas que afetam essa comunicação: a dificuldade de tradução por falta ainda de sinais adequados em Libras, deficiência na tradução e até carência de conhecimentos básicos de ciências desses alunos. Essa jovem, diz ele, embora revelasse muito interesse e potencial, provavelmente não tivera acesso a conhecimentos que devem ser do domínio de um aluno que vem do ensino médio. Para o docente, gerações de surdos estão sendo marginalizadas e desperdiçadas em decorrência do ensino deficiente que recebem, pois a maioria das escolas brasileiras não está preparada para atendê-los.

A linguista Ivani Rodrigues da Silva, professora do curso de Fonoaudiologia, mantido pela Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, e que presta serviços ao Cepre (Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação Prof. Dr. Gabriel Porto), que pertence à própria FCM e atende pessoas surdas e cegas, funcionando como clínica-escola do curso de Fonoaudiologia, conta que, assistindo a uma aula de matemática em uma turma de escola em que havia uma aluna surda, percebeu que ela, embora tivesse muito empenho em participar da mesma forma que os demais colegas ouvintes, era ignorada pela professora, que se sentia desconfortável e sem condições de se comunicar com essa jovem. Com a intervenção de colegas, a professora enfim a chamou para a resolução de um exercício na lousa e deve ter se sentido aliviada pela solução correta, pois certamente não saberia como corrigi-la se fosse necessário. Ao final da aula, desconfiada de que a aluna se revelasse deslocada, em conversa a docente perguntou-lhe se gostava da escola. “Sim, gosto muito”, foi a resposta surpreendente.

Para Ivani, esses dois episódios mostram que professores e escolas precisam estar preparados para atender alunos surdos, oferecendo-lhes metodologias e materiais adequados para que tenham acesso ao conhecimento da mesma forma que os alunos ouvintes, mesmo porque muitas vezes o que o professor fala acaba sendo muito simplificado pela dificuldade da tradução simultânea do conteúdo expresso em uma língua oral (o português) para uma língua visuoespacial (Libras), não possibilitando um bom entendimento. Ignora-se ainda que, apesar da limitação sensorial, esses alunos têm anseios e desejos e são capacitados como qualquer outra pessoa, mas precisam de ajuda para vencer certas barreiras. Episódios desconcertantes como estes revelam o desconhecimento da sociedade, e não apenas dos professores, em relação aos problemas enfrentados pelos surdos que são cidadãos bilíngues, ou seja, aprendem o português como segunda língua, sendo a Libras a primeira.

Foto: Scarpa
Débora Gonçalves Ribeiro Dias durante a apresentação da sua dissertação

Imagine-se a dificuldade desses alunos surdos para compreenderem o conteúdo das diferentes disciplinas escolares quando submetidos a um sistema de educação excludente, pela ausência de metodologias adequadas e sem contarem, como em geral se verifica, com a Libras como língua de instrução.  Conscientes da complexidade desse aprendizado, esses dois professores da Unicamp, de áreas tão diversas, em um trabalho multidisciplinar, vêm se dedicando há anos em desenvolver ferramentas que possam pavimentar o caminho percorrido por esses estudantes, de forma a diminuir o número de barreiras a serem por eles vencidas.

A ideia de utilizar um avatar que sinalizasse Libras surgiu em 2005, por ocasião de uma palestra que o professor José Mario, que tinha trabalhos envolvendo leitura labial, havia proferido, a convite, para um grupo de pesquisadores da FFLCH/USP envolvidos com questões da surdez e das línguas de sinais. A consolidação da primeira versão do avatar se deu em 2012 no bojo de uma tese de doutorado por ele orientada. Neste contexto, avatar corresponde à transposição da imagem de um indivíduo para um corpo virtual, ou seja, para uma figura criada à imagem do usuário, permitindo sua personalização no computador. Trata-se de um modelo tridimensional computadorizado que permite criar uma representação de um interprete virtual da Libras. A parceria entre os docentes remonta dessa época.


A dissertação

Em 2015, os docentes passaram a orientar conjuntamente a dissertação de mestrado da surda Débora Gonçalves Ribeiro Dias, graduada em pedagogia e licenciada em letras com habilitação em Libras pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, e que desde 2011 passara a lecionar na área de Libras na Universidade Federal Tecnológica do Paraná (UTFPR), campus Cornélio Procópio.  Ela foi a primeira aluna surda admitida no mestrado da FCM da Unicamp.

A pesquisadora se propôs a investigar como os alunos surdos compreendem a tradução de uma atividade de livro de ciências do terceiro ano do ensino fundamental apresentada por um avatar sinalizador da Libras. Trata-se de uma pesquisa qualitativa que busca verificar se os avatares de língua de sinais são adequados para traduzir a língua portuguesa para Libras. O trabalho teve como objetivo avaliar, através de um estudo de caso, se o uso de avatares pode facilitar a compreensão de alunos surdos de conteúdos de textos escolares e se esse recurso tem potencial para ajudar o aluno surdo a compreender melhor a língua portuguesa na modalidade escrita, uma das dificuldades que esse estudante tem.

A importância do trabalho ressalta quando se sabe que, de acordo com o Censo 2010 do IBGE, existem no Brasil pouco menos de dez milhões de deficientes auditivos, e parte deles utiliza Libras como língua principal e em geral possuem apenas um conhecimento básico da língua portuguesa. De certa forma isso é compreensível porque apenas a partir de decreto federal de 2005 que legitima Libras como uma língua natural a sociedade começa a se estruturar para atender às necessidades específicas dos surdos.

Na dissertação, a pesquisadora esclarece: “Muitos autores já atestaram que para melhorar a aprendizagem das pessoas surdas é importante inseri-las em um contexto em que possam ter contato com Libras, sua primeira língua, e o português, apresentado a elas como segunda língua. O reconhecimento de que o surdo é um sujeito bilíngue faz diferença quando se pensa em estratégias de ensino diferenciadas e na promoção do conhecimento escolar. Daí a importância do estudo da utilização dos avatares em Libras proposto pelo professor José Mario”.

Como os avatares são personagens virtuais, que por meio de animações são capazes de sinalizar conteúdos, podem ser incorporados a aplicativos para funcionar como tradutores automáticos da língua escrita para a língua de sinais, oferecendo aos surdos novas possibilidades de comunicação. No trabalho, além de investigar como os alunos surdos compreendem a tradução de uma atividade proposta em livro de ciências, a pesquisadora propôs-se a avaliar compreensão e inteligibilidade da Libras via avatares e verificar se o aluno consegue compreender e responder às questões da atividade executada.

A pesquisa, desenvolvida no Instituto Londrinense de Educação de Surdos, escola bilíngue, que atende a pessoas com essa deficiência, da educação infantil ao ensino médio, foi realizada com alunos surdos do quinto ano do ensino fundamental ao terceiro ano do ensino médio e também com estudantes ouvintes do ensino fundamental da cidade de Cornélio Procópio. 

Para tanto, o experimento a ser executado foi mostrado aos alunos surdos primeiro pelo avatar e depois por intérprete. Após cada uma destas apresentações, os jovens, que não tiveram acesso ao livro e suas ilustrações, foram levados a realizar a atividade proposta para que pudessem ser comparados os resultados. A ideia era avaliar se esse avatar tem potencial para ser utilizado com ferramenta auxiliar de apoio ao ensino e aprendizagem de alunos surdos. Para a professora Ivani, os resultados mostraram-se afirmativos, pois os alunos conseguiram executar a tarefa proposta e os resultados dos experimentos com a participação do avatar e do intérprete não possuem diferenças significativas. Por sua vez, para efeitos comparativos, aos alunos ouvintes foram apresentadas as mesmas instruções apenas em áudio. A conclusão da pesquisa é a de que o avatar tem potencial para a tradução e apresentação do texto para o surdo, permitindo que ele estude e reveja temas com autonomia e independência, quando e onde não houver intérprete para auxiliá-lo.

Débora conclui a dissertação afirmando que a pesquisa mostra a inteligibilidade do avatar testado, embora a ele ainda não tenham sido incorporadas expressões faciais e corporais próprias dessa língua. No futuro, o instrumento poderá vir a ajudar alunos surdos a traduzir trechos de textos em português para Libras, tornando-se um recurso útil para a autonomia desses estudantes, embora o caminho a ser percorrido ainda seja longo. Ela conclui esperançosa de que “esta pesquisa contribua para o desenvolvimento de avatares expressivos, com maior inteligibilidade, que possam ser utilizados na tradução automática de Libras, permitindo que esse grupo de alunos estude com maior independência”.

Como o processo de gramatização da Libras é ainda recente, a tradução do português pelo avatar apresenta um desafio gigantesco, demandando um trabalho paulatino, metódico e contínuo, de resultados lentos, o que frustra as famílias dos surdos que esperam muitas vezes a imediata transformação dos estudos em produtos. A propósito, o professor José Mario cita aos seus orientados, que trabalham no aperfeiçoamento do mecanismo de tradução automática português-Libras, uma frase motivadora: “O desafio é gigantesco, mas não nos é permitido o luxo do desânimo, considerando as necessidades e urgências daqueles que se beneficiarão da solução”.

 

 

 

Imagem de capa JU-online
A pedagoga Débora Gonçalves Ribeiro Dias, autora do estudo | Foto: Antonio Scarpinetti

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