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Hilda Hilst, do desterro à canequinha

Alcir Pécora fala sobre a obra e a trajetória da escritora, que será a homenageada da Flip 2018

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Hilda Hilst (1930-2004), escritora que ao longo de sua vida empreendeu uma busca obstinada por leitores – sem ser correspondida, diga-se –, é a autora homenageada da 16ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que acontece de 25 a 29 de julho na cidade fluminense.

Para muitos, trata-se de um reconhecimento tardio de uma autora que perambulou – e foi rejeitada – por editoras. A exceção, sempre lembrada, foi Massao Ohno com suas edições primorosas e artesanais.

Sua obra passou a ganhar visibilidade no início dos anos 2000, depois que o crítico e ensaísta Alcir Pécora, professor do Instituto de Estudos de Linguagem (IEL) da Unicamp, reuniu quase toda a produção da escritora – publicada pela Editora Globo –, por indicação da própria Hilda, de quem era amigo.

Na avaliação de Pécora, a morte de Hilda, em 2004, no momento em que a coleção ganhava as livrarias, deu início ao que o docente denominou de “tempestade perfeita”, conjunto de fatores que transformou a escritora em fenômeno – devidamente absorvido e explorado pela indústria cultural.   

“Acho que o lugar de Hilda Hilst na literatura brasileira ainda está em construção, conforme avança a qualidade da interlocução que vem recebendo. Mas não há dúvida de que já é um lugar grande, considerando em perspectiva a literatura do século XX no país”, diagnostica Pécora.

Se não tem dúvida quanto ao lugar da escritora no cânone, o docente faz uma série de ressalvas à apropriação da escritora pelo circuito mainstream. Hilda virou celebridade. Nada escapa ao culto – das citações edulcoradas e improcedentes nas redes sociais à comercialização de produtos na Casa do Sol, em Campinas, onde ela morou de 1966 até sua morte.

Não é a Hilda que me interessa, e acho que os estudos sérios têm de se precaver contra esse charme fácil, que se vende como imagens em canequinhas”, ironiza Pécora.   

Ao mencionar os estudos, Pécora se refere aos trabalhos acerca da obra da escritora, que não ficou incólume ao boom. Hilda não era neófita em ambiente acadêmico – foi a primeiro artista residente da Unicamp, em 1982, e seu acervo pessoal – com consentimento de próprio punho – está depositado no Centro de Documentação “Alexandre Eulalio” (Cedae) da Universidade.

Fotos: Perri
O crítico e ensaísta Alcir Pécora, professor do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp: “Há muita generalidade e reducionismo nessa onda hilstiana”

Pécora não deixa de mencionar o papel pioneiro da Unicamp na difusão da obra e das ideias da escritora, mas vê com reservas a explosão de artigos, teses e dissertações sobre sua obra em universidades país afora e no Exterior.  

Para o docente, há “generalidade e reducionismo” na maioria dos estudos orientados pelos pares. “O seu cosmopolitismo atemporal, a sua metafísica suja, de que participam mortos e vivos, deuses e mortais compõem uma inteira área de inteligência a desafiar os novos estudos literários”.  

Leia a seguir a entrevista concedida por Pécora ao Jornal da Unicamp.

Jornal da Unicamp – Como o sr. vê a escolha de Hilda como autora homenageada da Flip?

Alcir Pécora – Existe um aspecto muito irônico nisso tudo. Durante muitos anos, ou praticamente em sua vida inteira, Hilda Hilst foi ignorada ou menosprezada, não só pela crítica como também pelos editores. Tanto que só foi editada pelo Massao Ohno, um cara extraordinário, que publicava coisas únicas, alternativas, mas não tinha capacidade de distribuição. Ele bancava tudo com seu próprio dinheiro.

Quando Hilda tentava levar sua obra para as grandes editoras, seu trabalho era rejeitado. Ao mostrar, por exemplo, para Luiz Schwarcz [proprietário da Companhia das Letras], este preferiu editar Bruna Lombardi... Agora, muitos anos depois, a Companhia das Letras comprou os direitos da obra. É bom relembrar, portanto, que Hilda foi recusada pela mesma editora quando estava no auge, tinha uma obra significativa e estava produzindo muito.

E agora, depois de morta, seu trabalho acaba tendo grande repercussão. Esse é o lado irônico. O lado dramático é saber em que medida essa comercialização da obra tem, de fato, resultado numa leitura interessante, complexa, profunda, enfim, transformadora da própria obra dela.


Jornal da Unicamp – A que o sr. atribui esse boom?

Alcir Pécora – Escrevi um artigo [prefácio do livro Fortuna Crítica de Hilda Hilst, de Cristiano Diniz] em que tento dar algumas razões, pelo menos cinco fatores, que formam o que eu chamei de “tempestade perfeita”. Ela resultou numa espécie de catapulta no nome da Hilda.


JU – Quais seriam?

Alcir PécoraO primeiro deles, certamente, tem a ver com a disponibilidade da obra para o grande público. Até o lançamento de Obras Reunidas, a coleção editada por mim para a Editora Globo, suas obras se circunscreviam a pequenas editoras. Algumas sequer eram editoras – Alcoolicas, por exemplo, foi bancada por uma companhia fabricante de vinho.

Enfim, eram edições muito pequenas, que não circulavam. A disponibilidade dessas obras – e mais do que isso ­– num circuito nacional, distribuídas não só em livrarias especializadas, mas também em livrarias médias, foi decisiva para a difusão. Ao mesmo tempo, a coleção era bem abrangente.


JU – Como foi o seu processo de edição?  

Alcir PécoraPosso dizer que foi caprichado. Havia muito aparato crítico, ou seja, não tinha apenas introdução, orelha etc – que davam uma pista do vocabulário para entender as obras, que eram difíceis –, mas havia bibliografia, tinha uma cronologia dos acontecimentos envolvendo a autora, além de uma iconografia. Ou seja, havia todo um aparato crítico que aproximava o leitor da obra.

Além disso, nesse período da grande virada, que, a partir da obra do Cristiano Diniz, para mim se localiza entre 2002 e 2004, um outro fator evidente, entre os mencionados, foi a morte da própria Hilda, em fevereiro de 2004.


JU – Qual foi o seu impacto?

Alcir PécoraEla morreu ao mesmo tempo em que sua obra se tornava disponível com a chegada da coleção da Globo, o que ajudou a criar, possivelmente, um acontecimento derivado da morte de um autor. A própria Hilda era uma figura que muitos viam como inconveniente e indigesta. Onde entrava, havia barulho. Não era fácil para ninguém chegar perto dela. Era um tipo muito de eleição – ela escolhia os interlocutores com os quais se dava bem e era terrível com os outros.

Nesse sentido, sua morte facilitou algumas relações, porque, enquanto viva, ela não era fácil – como, de resto, todo grande autor. Dos escritores que editei – ela, Roberto Piva, Plínio Marcos, entre outros – nenhum era fácil. Chegar perto deles era um gesto de coragem.

Outra coisa que aconteceu, esta decisiva do ponto de vista teórico, é que, até pouco tempo atrás, havia pouca capacidade de discussão crítica de um modelo teórico que organizava toda a literatura brasileira.


JU – Esse modelo é tributário de qual corrente? 

Alcir Pécora – Candidiana, uspiana. Sua base está no modernismo paulista. Os valores a ele associados são a informalidade da linguagem, o laicismo, o racionalismo, a forte conotação política e, sobretudo, uma literatura que pensasse o Brasil.


JU – Em que medida a obra de Hilda escapa desse modelo?

Alcir PécoraNenhum desses elementos dá conta da Hilda. Sua obra está totalmente fora desse modelo. Ela tinha uma literatura muitas vezes de tom alto, com preocupações metafísicas e, mais do que isso, até mesmo místicas. Hilda tinha vínculos com coisas absolutamente esotéricas, como os acontecimentos dos mundos dos mortos – ela os ouvia, era visitada por eles, conversava pelo telefone com eles, ou seja, era uma mulher que estava muito distante desse racionalismo.

No campo político, ela tinha posições totalmente fora do espectro polarizado. Estamos falando de uma mulher que viveu um bom período de sua vida sob ditadura, na qual ou você era pró-regime ou de uma esquerda mais ou menos ortodoxa.


JU – Seu figurino era outro.

Alcir Pécora Não ocupava nenhuma dessas posições. Muitos de seus textos são duríssimos com relação a posições muito dogmáticas – fosse de direita ou da esquerda. Hilda era de uma radicalidade, de uma liberdade de pensamento intolerável para posições muito polarizadas.

Portanto, enquanto isso estava no contexto de um paradigma modernista, a Hilda não cabia. Isso explica muito o fato de a universidade nunca até então ter se interessado por ela. Foram poucos os que se aproximaram. Nesse sentido, a Unicamp teve um grande mérito por acolhê-la como artista visitante. Ainda assim, ela era muito pouco estudada internamente.

Ocorre que, ao longo do tempo, ganhou corpo a crítica a esse paradigma modernista. Houve uma perda da hegemonia desse modelo. Esse declínio abriu espaço para que entrassem outros autores que não integrassem modelo modernista.

Há também um outro aspecto, da mesma forma decisivo, que explica esse boom.


JU – Qual seria?

Alcir Pécora O crescimento, no Brasil, de um viés de teoria culturalista por meio do qual passa a ter visibilidade a discussão dos direitos de gays, mulheres, negros e minorias. Surgido nos EUA na década de 1960, esse movimento ganhou força por aqui a partir da década de 1980, explodindo neste início de século.


JU – Quais foram seus pontos de contato com a obra da Hilda?

Alcir PécoraA obra dela começou a entrar nessa discussão do feminismo e do feminino, o que resultou numa enorme legibilidade, numa nova perspectiva. É importante pensar que o fato de ter havido essa virada extraordinária – Hilda talvez seja, hoje, a escritora mais estudada em teses – não significa que a obra está sendo melhor estudada, porque em certa medida serve de uma espécie de carne nova para essas discussões teóricas que não têm necessariamente a ver com ela. Dá para perceber claramente, em muitas das teses, artigos e procedimentos, que são muitas genéricas.

A principal entrada sobre a Hilda – em mais de mil referências recolhidas por Cristiano Diniz sobre ela ­–, a numericamente mais representada, é a do comparatismo. E essas comparações são as mais esdrúxulas. Não tem autor com quem ela não seja comparada, de Gilka Machado a Olga Savary, de Carlos Drummond a Rubén Darío, de Yona Wallach a Fernando Pessoa, de Beckett a Gregório de Mattos, de Lima Barreto a Bete Coelho etc. etc. Há uma espécie de bumba-meu-boi. Ela é sempre enfiada numa discussão, em geral ao lado de autores já reconhecidos, canônicos.

Muitas vezes se fala que a Hilda também tem o direito a ser canônica, de figurar no panteão da literatura. É uma perspectiva muito redutora. Trata-se de uma concepção muito primária de literatura.

A segunda comparação mais frequente é de Hilda com alguma autora mulher, a partir de uma discussão que seja de base feminista. Mas a questão do feminismo não depende da Hilda nem nasceu com ela, tem uma tradição própria. É importante lembrar que a Hilda sempre foi uma escritora complicada para falar desse ponto de vista feminista.


JU – Por quê?

Alcir Pécora – Ela nunca adotou o discurso. Era, sim, uma mulher totalmente realizada, independente, fazia o que dava na telha, nunca sequer imaginou que pudesse sofrer qualquer tipo de retaliação masculina.

Ela não queria ser chamada de poetisa – queria ser poeta, ou seja, fora de qualquer distinção de gênero. Dizer que ela era a maior poetisa era visto por ela como ofensa, como concessão. Ela não queria ser a maior entre as mulheres, mas entre todos. Hilda recusava qualquer tipo de discurso de qualificação feminina. E, de outro lado, ela era de fato dura com as mulheres. Ela não entra nesse caldo fácil.    


JU – Hilda virou figura fácil em redes sociais – a exemplo de fenômenos já registrados com outros autores, entre os quais Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu. O sr. acha que elas impulsionaram esse boom? Se sim, dá para afirmar que existem ligações com essa vaga culturalista?

Alcir Pécora – Não há dúvida que sim, embora não seja derivada da teoria culturalista, mesmo que sua penetração também seja grande nessas redes. A mudança estrutural da informação e da tecnologia fez com que trechos de fala, conversas, biografias se espalhassem como vírus. Aparece Hilda até em pichação. Há pessoas que nunca a leram e já usam seu nome como tag.

As redes sociais são decisivas para essa divulgação massiva, por meio da qual a Hilda vira uma espécie de senha para uma certa posição libertária.


JU – Para além das redes sociais, há claramente todo um movimento de mitificação em torno da figura de Hilda. Com o sr. vê tudo isso?

Alcir Pécora – Acho que isso nada tem a ver com a obra de Hilda Hilst, que é o que interessa e o que tem longa duração. A mitificação é típica do processo de deglutição do artista ou do seu nome pela indústria cultural. Não é a Hilda que me interessa, e acho que os estudos sérios têm de se precaver contra esse charme fácil, que se vende como imagens em canequinhas.


JU – Numa perspectiva acadêmica, como especialista, o sr. poderia apontar quais os pontos – hoje negligenciados ou ignorados – que mereceriam ser aprofundados para dar conta da dimensão e da importância da obra?

Alcir Pécora – Há muita generalidade e reducionismo nessa onda hilstiana, que acaba tomando uma obra complexa e sutil como trechinho de palavra de ordem juvenil ou de mantra para se viver bem. Hilda seguramente não tinha lições de auto-ajuda para dar, nunca pretendeu indicar modos edificantes de pensar ou viver. Os pontos a estudar são muitos, a obra dela permanece selvagem e resistente a interpretações banais.

Acho que os estudos mais relevantes são os que se concentram em torno da forma única da obra que produziu, recusando-se a submetê-la às modinhas, sejam elas da universidade ou do mercado. A Hilda é uma escritora tremendamente difícil e exigente. Quem não ser der conta disso, nem sequer a leu.


JU – Hilda transitou por quatros gêneros –poesia, prosa, crônica e teatro. O que o sr. considera mais relevante dessa produção?

Alcir Pécora – Na minha opinião, a poesia e a prosa de ficção estão num patamar bem superior ao teatro e à crônica. O teatro é demasiado intelectual e poético, sem grande sentido de cena; a crônica é divertidíssima e muito variada, mas muitas vezes, apenas cabide para a publicação de seus outros textos. Entre poesia e prosa, se tivesse de me decidir realmente, diria que me agrada mais a prosa, porque é menos ajustada a uma tradução reconhecível, e, de fato, mais decididamente experimental.


JU – Como o sr. acha que, se viva, Hilda encararia a homenagem da Flip?

Alcir PécoraEu acho que ela iria se divertir. Conhecendo a Hilda, sou capaz de vê-la se matando de rir. Claro que com ironia, sob a perspectiva de quem passou a vida inteira pedindo reconhecimento, só o encontrando depois de morta. Se tivesse de fato viva e aparecesse por lá, temo que pudesse mesmo agir de maneira malvada, como costumava. É certo que não ia deixar barato.

 

 

Imagem de capa JU-online
Hilda Hilst em diferentes etapas de sua vida | Fotos: Centro de Documentação “Alexandre Eulalio” (Cedae)

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