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A inquietação intelectual de um filósofo pródigo em ideias

Amigos e ex-alunos recordam trajetória de Fausto Castilho (1929-2015) durante semana de homenagens na Unicamp

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Luiz Orlandi conheceu Fausto Castilho em 1960, quando foi seu aluno na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara (FFCLA), incorporada posteriormente à Universidade Estadual Paulista (Unesp). Naquela época de intensa agitação política, se aproximaram e cultivaram uma amizade por toda a vida que tinha a filosofia como ponto em comum. “Fausto foi meu primeiro cata-vento filosófico. Você sopra, algo que está te confundindo, e ele vai te dar direções, dizer de onde vem o vento”, disse Orlandi, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, durante o encerramento do 1º Congresso Fausto Castilho de Filosofia, ocorrido entre 2 e 6 de outubro.

Na semana passada, colegas, alunos e especialistas do Brasil e do exterior estiveram reunidos na Unicamp para resgatar sua memória e exaltar sua importância e suas contribuições para a filosofia. Em vida, Castilho publicou muito pouco, dedicando-se ao incansável e muitas vezes pouco valorizado trabalho de formação de alunos e de extensa e demorada tradução de textos filosóficos. Sua tradução de “Ser e Tempo” (1927), de Martin Heidegger (1889-1976), demorou décadas para ser concluída e publicada, em 2012.

“Além do interesse acadêmico pela filosofia, ele teve também uma relação pessoal. Isso é muito marcante, porque se percebe o entusiasmo naquilo que ele fez – as traduções, os livros, os estudos e, principalmente, as aulas, já que foi um grande professor. Nota-se que aquilo é um empenho pessoal, não algo exclusivamente profissional”, destacou o colega Franklin Leopoldo e Silva, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. “Isso faz dele uma personagem interessante dentro dessa história da filosofia e da intelectualidade brasileira. Ele é uma daquelas figuras que marcaram. Quem conheceu, não esquece mais.”

Seus amigos e ex-alunos não se cansam de qualificar Castilho como uma pessoa “pródiga em ideias”, como bem definiu o professor Marcos César Seneda, da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Seneda ajudou a fazer organização, revisão e digitação de várias das traduções que Castilho levava para sala de aula, nos anos 1980, quando não havia disponíveis muitas obras de filosofia traduzidas para o português. Naquela década, que marcou sua segunda passagem pela Unicamp, Castilho deu contribuições para o debate sobre a política brasileira, discutindo questões estratégicas no ambiente universitário.

 “Assim que chegou ele fez sucesso instantâneo. Tudo que ele fazia enchia de gente. E na época havia um debate político acalorado, na condição de reabertura do país, e o Fausto era um apaixonado pelo Brasil. Imediatamente ele mobilizou intelectualmente as pessoas que estavam na Unicamp”, lembrou o docente da UFU.

Projeto de modernidade

Castilho defendia a pesquisa como a base do ensino e era um entusiasta do modelo dos estudos gerais, com formação em filosofia, humanidades e ciências fundamentais, como elemento essencial para a constituição de uma universidade moderna, em contraposição à ideia de universidade medieval. Esse modelo tradicional, de escolas isoladas, vingou no Brasil baseado no pragmatismo e no utilitarismo, como Castilho apontou no seu livro “O Conceito de Universidade no Projeto da Unicamp” (2008). “Na universidade moderna, só pode haver ensino subsequente a uma pesquisa anterior e dela decorrente”, afirma na obra.

Idealizador e consultor para a criação de universidades, fez da Unicamp seu projeto mais ousado. Em Campinas, criou um núcleo de humanidades, no final dos anos 1960, que deu origem ao IFCH, ao Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) e ao Instituto de Economia (IE). A ideia de Castilho de organização do espaço urbanístico do campus, desenhado com um prédio para as disciplinas gerais ao centro, circundado primeiro pelos institutos de ciências básicas e depois pelas faculdades de formação profissional, se transformaria no próprio símbolo da Unicamp, materializado no logotipo da universidade, criada em 1966.

“No momento de sua fundação, o professor Fausto lutou para que a Unicamp fosse concebida como uma universidade moderna. Moderna é aquela que supera a dualidade entre universidade – instituição voltada para o ensino – e academia – instituição voltada para a pesquisa”, lembrou Alexandre Guimarães de Soares, docente da UFU e membro do Conselho Curador da Fundação Fausto Castilho. “Para ele, as disciplinas aplicadas são projeções das ciências fundamentais e serão tanto mais fortes quanto maior for a interação entre as ciências fundamentais. Ele lutou para que a academia estivesse no centro da Unicamp, ou seja, para que a pesquisa pura ali estivesse”, afirmou Soares, que foi aluno do filósofo desde os anos 1980.

Fotos: Antoninho Perri | Isaias Teixeira

Professor emérito e ex-reitor da Unicamp, amigo de mais de quatro décadas e testemunha da implantação desse projeto inovador – que durou até 1972, com a saída involuntária do filósofo do IFCH –, Carlos Vogt explica que os estudos gerais, o cerne do campus, proporcionariam aos jovens alunos um momento de consagração para o conhecimento, antes da formação profissional. “Isso acabou por várias razões sendo alterado ao longo dos anos, e se perderam, em parte, os fundamentos desse propósito”, ponderou o linguista, que preside o Conselho Científico-Cultural do Instituto de Estudos Avançados (IdEA) da Unicamp.

No dia 2, durante a cerimônia que marcou a atribuição do nome de Castilho à Biblioteca de Obras Raras (BORA) da Unicamp, o reitor da Unicamp, Marcelo Knobel, destacou em seu discurso a necessidade de resgatar as ideias do filósofo de concepção de universidade e explicou que há projetos em andamento voltados a uma formação menos conteudista e mais humanista na instituição. Entre elas estão a própria criação do IdEA, além de uma presença cultural mais forte na universidade e discussões sobre mudanças na estrutura curricular, visando a uma formação mais ampla e geral.

“Estamos vivendo um momento difícil do país, do mundo, das relações pessoais, em todos os aspectos em que, mais do que nunca, as humanidades e, em particular a filosofia, são mais do que necessárias. E neste momento, uma figura como o Fausto está fazendo falta para podermos entender melhor o que está acontecendo”, declarou o reitor. Ainda em fase de conclusão no campus de Barão Geraldo, a biblioteca que homenageia Castilho vai abrigar o acervo de 10 mil livros doados pelo filósofo.


Programação intensa

Ao longo da semana passada, no IFCH, IEL e Casa do Professor Visitante (CPV), o 1º Congresso Fausto Castilho de Filosofia reuniu dezenas de pesquisadores de diversas partes do país e da França, Polônia, Itália e Bélgica para homenagens e discussões filosóficas. Um dos eventos foi o Colóquio Internacional “Ensaios e Discurso do Método”, marcando a conclusão da tradução da obra de Descartes, incentivada pela Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof) e Fundação Fausto Castilho. O lançamento da obra traduzida deverá ocorrer no ano que vem.

A Fundação também tem entre seus próximos projetos a publicação de um dicionário de filosofia em português, em cooperação com o IdEA, em um modelo inovador para o Brasil. A construção coletiva será baseada na contribuição de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, que farão verbetes nas suas áreas de especialidade. Inicialmente o projeto considera trabalhar com 20 a 30 pesquisadores, e a expectativa é que a primeira edição seja lançada no prazo de cinco anos, com atualizações constantes.

O Congresso foi uma realização da Fundação Fausto Castilho, GT Estudos Cartesianos da Anpof e Instituto de Estudos Avançados da Unicamp. A realização do Congresso teve o apoio do IFCH, IEL, Centro de Estudo da História da Filosofia Moderna e Contemporânea (Cemodecon), Instituto de Filosofia da UFU (Ifilo - UFU), Capes, Fapesp e Fapemig.

 

Imagem de capa JU-online
Na sequência, Fausto Castilho no início da década de 1930; em 1954, como professor da UFPR; em novembro de 1960, com Jean-Paul Sartre, em Araraquara; em 1968, com Zeferino Vaz, fundador da Unicamp; em 2008, na Unicamp; e em 2012, no lançamento de sua tradução de Ser e tempo, de Martin Heidegger

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