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O linguista libertário

Ataliba Teixeira de Castilho preza a liberdade dos usuários da língua e critica o apego excessivo dos gramáticos às regras

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Autodenominado caipira por ter nascido em Araçatuba e crescido em São José do Rio Preto, o linguista Ataliba Castilho diverte-se com as mudanças da língua. Uma das mais recentes é a transformação do pronome que em palavra variável, como em “Ques pessoas?”, identificada em redes sociais por um de seus estudantes de doutorado na Unicamp. Para ele, “ao se esforçarem para que as pessoas obedeçam às regras, os gramáticos não viram que estavam dando um cala-boca no cidadão brasileiro”. A crítica aos gramáticos não significa que Castilho tenha alguma aversão a normas da língua culta, mas apenas que valoriza os limites geográficos e históricos do idioma.

Professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), de 1961 a 1975, da Unicamp, de 1975 a 1991, e da Universidade de São Paulo (USP), de 1993 a 2006, Castilho coordenou grandes projetos de pesquisa que ajudaram a definir a identidade do português falado no Brasil. O mais recente, o Projeto para a História do Português Brasileiro (PHPB), reuniu 200 pesquisadores de todo o país e os resultados consolidados estão sendo publicados agora. Para entender melhor o português brasileiro, Castilho criou uma abordagem multissistêmica da língua, um método de análise segundo o qual qualquer expressão linguística mobiliza simultaneamente quatro sistemas (léxico, gramática, semântica e discurso), que deveriam ser vistos de modo integrado.

Casado com a também linguista Célia Maria Moraes de Castilho, três filhos e quatro netos, Castilho viaja bastante: esteve em um congresso em Lisboa em julho e pretende ir a outro, em Coimbra, no próximo mês. Ele recebeu a equipe de Pesquisa FAPESP na sua casa, em Campinas, próxima à Unicamp, onde se aposentou em 1991 e continua como professor colaborador voluntário.

Foto: Léo Ramos Chaves/Pesquisa FAPESP
O linguista Ataliba Castilho, professor colaborador voluntário da Unicamp: “A língua é minha identidade” | Foto: Léo Ramos Chaves/Pesquisa FAPESP


Em que pé está o Projeto para a História do Português Brasileiro, um de seus trabalhos mais recentes?

Ataliba Castilho – Esse projeto começou na USP em 1987. Quando começavam a surgir os resultados dos estudos sobre a língua falada, que tínhamos começado na década de 1970, perguntei para os meus colegas de onde tinha vindo tudo aquilo. Começamos então a reconstituir a história da implantação e do desenvolvimento do português brasileiro, com o mesmo método dos projetos anteriores: formação de grupos de trabalho, cronograma, seminários nacionais, publicação dos resultados. Saíram 10 volumes de estudos e agora está saindo a consolidação dos resultados, em 12 volumes. Sete volumes devem sair ainda neste ano. O primeiro será o volume 4, coordenado por Célia Lopes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sobre a história dos substantivos, adjetivos e preposições. Será que tudo veio do português europeu ou inventamos algo? Uma estudante de doutorado que estou orientando na Unicamp, Flávia Orci Fernandes, percorreu as redes sociais e pegou marcas de plural no pronome que, que não é mais invariável. Hoje já se fala ou se escreve: ques pes-soas? Como explicamos esse dinamismo da língua? Temos de documentar e explicar. A mudança do idioma vai criando outras regras. A classe culta ainda não aceitou, mas é uma questão de tempo, acabam aceitando. É um novo estágio da língua que está vindo.


Que outras mudanças estão vendo?

Ataliba Castilho – Nossos estudos estão indicando que o plural não será mais expresso pelo morfema s no final do substantivo, mas apenas pelo s no artigo, como em os menino, por causa de um mecanismo fonológico de abertura da sílaba. Parece que as consoantes estão se transformando mais do que as vogais. Fazer não está virando fazê? Outras consoantes no fim da palavra estão caindo, como duas vez em vez de duas vezes. O plural está marcado nas duas palavras, é redundante, pode ser mais econômico marcar só o primeiro elemento e deixar o outro sem nada. O francês ainda guarda as consoantes finais na escrita, mas não mais na fala, como em l’ enfant, les enfants, o s não aparece na língua falada. Acreditamos que teremos outra língua, diferente do português de Portugal. Os dois idiomas ainda são o mesmo, mas já mostram muitas diferenças. Uma projeção do ritmo dessa mudança, por meios estatísticos, indica que em 200 anos não vamos mais nos entender com os portugueses (ver Pesquisa FAPESP nº 230).


O que mais o fascina no português brasileiro?

Ataliba Castilho – É a enorme variação de sotaques e de formas de execução da língua. É uma consequência de nossa história. Como os portugueses vieram em várias levas, em cada região foi se desenvolvendo uma modalidade da mesma língua. Minha mulher, Célia, vem estudando quem eram esses portugueses e de onde vieram. Eles começaram a chegar em 1532 em São Vicente, e foi pelo atual estado de São Paulo que começou a lusitanização do Brasil. Ainda no século XVI os portugueses chegaram ao Rio de Janeiro, a Salvador e ao Recife. No século XVIII, Santa Catarina e Rio Grande do Sul receberam outros portugueses, das ilhas da Madeira e de Açores, não do continente, como no século anterior. Para ver como era a língua portuguesa nos séculos XVI e XVII, Célia examinou os autores dos testamentos deixados pelos portugueses. Ela viu que 20% dos autores eram cristãos-novos, judeus sefaradis, que tinham ido para Portugal depois de serem expulsos da Espanha. Naquela época poucos sabiam escrever. Ela separou os escritos dos judeus, que viviam isolados. As mulheres não saíam de casa e tinham um português muito conservador. Já os homens tinham um lado mais conservador, que era o familiar, e outro menos, usado para fazer negócios. Comparando a escrita dos cristãos-novos com a dos portugueses, Célia separou o que era o idioma moderno da época – o dos portugueses – e o conservador, uma variação linguística. Ela também estudou detalhes da gramática para saber a base histórica do português caipira, que é a manutenção do português do século XV. Nosso r caipira é um resquício do português conservador, falado nessa época.


O r caipira tem 500 anos?

Ataliba Castilho – Ninguém sabe ao certo. Uns dizem que índios do Vale do Paraíba teriam esse r, mas a explicação só vale se se provar que essa tribo se estendeu sobre São Paulo e foi com os bandeirantes para o interior. Outros fonólogos acham que o r caipira é um traço que não se desenvolveu na fonologia portuguesa, mas poderia ter surgido naturalmente, como uma consequência do sistema fonológico, e não do contato com os índios. Sistema fonológico quer dizer sistema de sons. Sempre existem tendências para combinações de sons que explicam essas mudanças. Uma tendência do português brasileiro é a forma de tratar os sons sibilantes, é o que faz a diferença entre nós, paulistas, e os moradores do Rio de Janeiro, do Sul e do Nordeste. De onde veio o s chiado, como em “ach criançach”? Foi uma tendência palatizar o som sibilante. Agora essa mudança deu outro passo, porque a vogal em contexto palatal está se ditongando, como em “aichs pessoaisch”.

 
Por que as aulas de português e de gramática eram tão chatas e cheias de regras?

Ataliba Castilho – Porque ainda não existia a linguística, só a gramática escolar. O gramático tem uma percepção muito estrita da língua. Ele se vê como alguém que tem de defender a língua da mudança. Os linguistas também falam de regras porque consideram seu dever explicá-las, mas não ficam só nisso e as veem como uma grande curiosidade. Por que é assim? Sempre foi assim? É assim em todos os lugares? O gramático fica envolvido na aplicação das regras e vê as coisas novas como erradas e as velhas como certas. O problema é que eles, ao se esforçarem para que as pessoas obedeçam às normas da língua, não viram que estavam dando um cala-boca no cidadão brasileiro. Como se dissessem: “Tem de falar e escrever de acordo com as regras. Não fale errado!”. E as pessoas, com medo de não conseguir, falam e escrevem pouco. Esse é um efeito da pregação do gramático tradicional. Não foi bom. O cidadão tem de se sentir à vontade para se expressar, participar dos debates, desenvolver o espírito democrático. O dono da língua é o falante, não o gramático. Aprendemos com o falante a língua como ele fala e procuramos saber por que está falando de um jeito ou de outro. A expressão veio do latim? Foi criada aqui? E podemos usar as estruturas, não apenas classificá-las e nomeá-las. Para que apenas saber as subclasses das orações subordinadas? Dizer que está falando errado não é uma atitude científica, de descoberta. A linguística substituiu o cala-boca ao prazer da descoberta científica. Foi só com a linguística que se ampliou o olhar e se passou a considerar que qualquer assunto é digno de estudo.


Como foi essa mudança?

Ataliba Castilho – A linguística começou no Brasil nos anos 1970. Houve um choque muito grande porque até então apenas os gramáticos estudavam a língua. Do lado dos linguistas, estavam Joaquim Mattoso Câmara Júnior [1904-1970], no Rio de Janeiro, Theodoro Henrique Maurer Júnior [1906-1979], em São Paulo, e Rosário Farâni Mansur Guérios [1907-1987], em Curitiba. Foi Mansur que orientou Aryon Dall’Igna Rodrigues [1925-2014] a ser um indigenista ao lhe dizer: “Em português você só vai redescobrir o que já se sabe, mas nas línguas indígenas não, porque não são indo-europeias e têm soluções e categorias totalmente diferentes. Isso sim é novidade”. Ele tinha razão, a estrutura da língua indígena tem categorias que nem o diabo pensa, e Aryon começou a linguística indígena no Brasil. Um linguista norte-americano, Daniel Everett, veio para a Unicamp nos anos 1970 e depois estudou a língua da comunidade pirahã, no Amazonas. Ele entrou em conflito com o linguista norte-americano Noam Chomsky, que dizia que o que chamamos de recursão era universal. Recursão é a possibilidade de aplicar uma regra repetidas vezes na construção das frases. Em português, toda vez que quero colocar um plural, coloco um s. No entanto, Everett não encontrou recursividade na língua dos pirahã, que também não tem palavras para números e cores. Chomsky teve de admitir a exceção à regra que ele imaginava ser geral. Os linguistas brasileiros podem contribuir muito para a teoria geral das línguas. Existem hoje 160 línguas indígenas no Brasil. Era o dobro, mas os índios que as falavam morreram. Dessas, só foram descritas 60.


Na década de 1970 o senhor começou o projeto da Norma Urbana Línguística Culta (Nurc). Como foi?

Ataliba Castilho – A ideia era descrever a língua falada culta. Foi uma surpresa, porque a língua da gente culta tinha muitas partes condenadas pelos gramáticos, o que mostrava que nosso catálogo de “erros” não estava levando em conta o uso real da língua portuguesa no Brasil. Esse projeto começou com um professor espanhol do Colégio do México, na Cidade do México, Juan Miguel Lope-Blanch [1927-2002]. Ele fazia dialetologia, ou seja, descrevia a língua das regiões rurais até perceber que as pessoas estavam migrando para as cidades. Decidiu então fazer dialetologia urbana. Nos anos 1960, Lope-Blanch propôs o estudo da norma urbana culta falada nas capitais, não apenas para o espanhol, mas em toda a América e em Portugal. Essa proposta entrou no Brasil também pelas mãos de um dialetólogo, Nelson Rossi [1927-2014], da Universidade Federal da Bahia, que fez o primeiro atlas linguístico do Brasil. Em uma reunião em São Paulo em 1969, Rossi disse que Lope-Blanch queria estudar a língua das capitais, mas no Brasil nossa capital, Brasília, não servia como exemplo de fato linguístico relevante, porque era muito nova. Então escolhemos cinco capitais de estado, Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Seguimos exatamente a mesma metodologia do projeto original. O Nurc foi muito bem nas gravações das entrevistas e depois nas transcrições, mas falhou na descrição. Foi feito um corpus gigantesco, com 1.500 horas de gravação. Quando chegou na descrição das estruturas – fonologia, morfologia, sintaxe –, não deu certo porque o questionário usado nas entrevistas não tinha uniformidade teórica, era um trambolho. Apliquei o questionário para estudar aspecto e tempo verbal e vi que aquilo não levaria a resultado nenhum, porque cada pergunta correspondia a uma teoria, diferente da que embasava a pergunta seguinte. Escrevi um texto sobre a não praticabilidade do questionário para a etapa mais importante, a descrição, o conhecimento. Em 1981, em um congresso na Universidade Cornell, nos Estados Unidos, li o texto. Pensei que Lope-Branch iria me matar, pois ele era muito enfático em suas intervenções, mas caí do cavalo. Sabe o que ele disse? “Você tem razão.” Quando não tínhamos como decidir, submetíamos a questão a uma votação, como se ciência fosse democracia. Não é, tem de ter coerência no conceito e não decidir no voto. Quando ele falou isso, concluí que tínhamos de sair do projeto. Mas, ao mesmo tempo, não podíamos deixar de usar a maravilhosa quantidade de dados que o Nurc já tinha produzido.


E o que fizeram?

Ataliba Castilho – Voltei inconformado com os rumos do projeto, mas depois tive a ideia de chamar os melhores linguistas do Brasil, que ainda não participavam do Nurc. Chamei Mary Kato e Rodolfo Ilari, da Unicamp, Leda Bisol, da PUC [Pontifícia Universidade Católica] do Rio Grande do Sul, Luiz Antônio Marcuschi [1946-2016], da Universidade Federal de Pernambuco, e vários outros. Expliquei que o Nurc havia empacado porque a metodologia não tinha consistência. Perguntei se eles topavam fazer uma gramática usando o material do Nurc. Aí me perguntaram como eu queria essa gramática. Respondi: “Como eu quero, não; como nós queremos; é o trabalho de um grupo”. Então lancei a proposta de cada um ir para um canto e escrever um texto intitulado “Minha gramática como a concebo”, assim mesmo, com esse cacófato. Os grupos com afinidade teórica se reuniram espontaneamente, os gerativistas, os funcionalistas, os estruturalistas, cada um de um lado. Como o que cada grupo escreveu formava um grupo de trabalho de pesquisa, nos dividimos de acordo com as ideias de cada um deles e planejamos nos encontrar uma vez por ano para discutir os resultados, usando de muita franqueza. Depois dos debates, cada um de nós recolhia o que tinha sobrado de seu texto, porque era muito séria a discussão. Depois, refazíamos os ensaios, que eram então publicados, formando uma coleção de nove volumes. Veio então o trabalho da consolidação dos resultados na gramática propriamente dita. Em 2006 saiu o primeiro dos oito volumes da coleção Gramática do português falado, pela Editora da Unicamp, A construção do texto falado, organizado por Clélia Jubran, da Unesp, e Ingedore Koch, da Unicamp. Elas fizeram uma teoria para explicar as peculiaridades do texto oral. Já numa segunda edição, publicada pela Contexto, saíram sete volumes, entre 2012 e 2016. Com isso, o português brasileiro passou a ser a única língua da România nova a ter sua variedade culta amplamente documentada e descrita.


E quais são essas peculiaridades?

Ataliba Castilho – A língua falada é hesitante, interrompida, redundante, não planejada, fragmentada, incompleta, pouco elaborada, com pouca densidade informacional, frases curtas e simples. Vamos falando e criando ao mesmo tempo. Outra especificidade são os marcadores discursivos, o tá? e o né?, sempre no final das frases. Há, portanto, uma regra de disposição; a língua falada tem regularidades diferentes do português escrito. Outro ponto é que aprendemos a modalidade falada primeiro e depois a língua escrita. Parece um detalhe bobo, mas isso faz toda diferença. A língua escrita vem depois de modo impositivo, porque aprendemos a língua falada na família e a escrita na escola. Tudo isso dá uma diferença tremenda entre essas duas
modalidades. A gramática tradicional só se preocupa com a língua escrita. Se concentrar na língua escrita a descrição de um idioma, estarei pegando o ponto de chegada, não o ponto de partida, e vou ter um monte de ilusões sobre o funcionamento da língua que tomarei como verdadeiras. A partir dos anos 1980, fiquei picado por essa mosca e me perguntei qual teoria poderia tirar daquilo. Criei a abordagem multissistêmica da língua, que usei como base da Nova gramática do português brasileiro e reelaborei para uma apresentação no 11º Lusistanistentag, dia dos lusitanistas, organizado há dois anos em Aachen, na Alemanha.


Como definir a abordagem multissistêmica?

Ataliba Castilho – É muito simples. Toda a linguística sempre girou em volta de três eixos: fonética e fonologia [estudo dos sons], morfologia [estudo das flexões] e sintaxe [estudo das relações entre as palavras]. Além desse sistema, que constitui a gramática, temos a semântica, que trata do sentido, o discurso, que é o modo como as pessoas compõem o texto, e o léxico, ou seja, as palavras. Estamos então falando da língua como um conjunto de quatro sistemas, o léxico, a gramática, a semântica e o discurso. Para descrever um fenômeno de modo completo, tenho de passar por esses quatro sistemas: léxico, semântica, gramática e discurso. Um indivíduo sozinho consegue fazer isso? Não. O estudo de uma língua tem de ser feito em grupo. Esse é o corolário do Nurc, da Gramática do Português Falado e do Projeto para a História do Português Brasileiro, que também estimula a convivência de gente com visões diferentes, abrigando sociolinguistas, gerativistas, funcionalistas e cognitivistas.


Como o senhor faz para reunir pessoas com visões diferentes?

Ataliba Castilho – Eu respeito o pensamento diferente. E ao respeitar você junta as pessoas. Ninguém quer ficar levando lambada dos outros. Ciência não existe para isso, mas para unir as pessoas na descoberta do conhecimento. Algumas pessoas têm mais facilidade e outras, mais dificuldade para fazer isso. Quando as coisas emperram e as opiniões parecem inconciliáveis, às vezes tenho de lembrar: “E a nossa obrigação, o nosso dever?”. Vou com meu discurso de protestante presbiteriano. Fui criado nessa igreja em São José do Rio Preto.


Quem foi e como era sua primeira professora ou professor de português?

Ataliba Castilho – Foi o professor Amaury de Assis Ferreira [1920-1995], pai do apresentador de TV Amauri Jr. Era um professor muito bom, lia e estudava muito, mostrava os livros que comprava com muito entusiasmo. De vez em quando eu ia na casa dele, meu pai era eletricista e ia trocar a resistência de seu fogão elétrico. Ele me chamava e mostrava a biblioteca e os livros que tinha comprado. Ele tinha muito prazer no que ele fazia. Pensei: “Quero ser um cara assim”. Depois peguei outros professores ótimos em São Paulo, como o Theodoro Maurer, meu orientador de doutorado. Quietinho, magrinho, filho de suíços, ele escreveu sozinho um dos trabalhos mais extensos do mundo sobre a gramática e a sintaxe do latim vulgar. Ele tinha outra liderança, que descobri por acaso, andando no bairro da Consolação, em São Paulo. Em frente a uma casa, ouvi uns cantos presbiterianos. Olhei pela porta e estavam lá o Maurer e um professor de filologia, Isaac Nicolau Salum [1913-1993]. Eles estavam estudando o evangelho de São Mateus, todos lendo em grego! Eu fazia letras clássicas, latim e grego, e fiquei espantado ao ver os professores discutindo grego no original. Perguntei: “Por que o senhor não chama os alunos?”. “Não posso”, ele disse, “a universidade é leiga”. Além de ser catedrático em línguas românicas e pastor evangélico que sabia latim, grego e hebraico, ele era presidente do diretório de São Paulo de um partido político. E não contava nada disso na universidade.


O senhor foi para a USP com bolsa da prefeitura de Rio Preto?

Ataliba Castilho – Fui. Minha família era muito modesta e eu tinha de pagar pensão na capital. Um colega meu disse que a prefeitura de Rio Preto dava bolsa para quem entrasse na USP ou na então chamada Universidade Nacional do Rio de Janeiro. Logo depois de entrar, em 1956, levei o documento de matrícula e deram a bolsa na hora. Eram 200 cruzeiros, dado tudo de uma vez, para passar o ano inteirinho. A partir do terceiro ano, aumentou a inflação e a bolsa só dava para meio ano. Aí comecei a lecionar, para complementar. Em 1959 e 1960, dei aula de português no ginásio estadual Francisco Roswell Freire, em São Miguel Paulista, e em 1960 lecionei latim no Ginásio Estadual e Escola Normal de Suzano, na Grande São Paulo. Adorei essa experiência. São Miguel era um bairro industrial e a escola, para os alunos, era a saída para terem uma profissão e não ficarem naquele mundo. Tratavam os professores muito bem. A primeira coisa que notei ao chegar no colégio de São Miguel foi que não tinha biblioteca. Como vou dar aula de português sem biblioteca? Mas tinha um órgão de cooperação escolar, que recolhia um dinheirinho dos pais que pudessem dar. Perguntei para o diretor se podia usar o dinheiro para comprar livros e ele disse que podia. Eu morava na rua Guaianazes, em frente à Editora Nacional, e comprava os livros com desconto, deixava na escola e um aluno tomava conta. Comprava romances históricos de Paulo Setúbal [1893-1937] e de Monteiro Lobato [1882-1948] e os livros da coleção do Clube do Livro. Os alunos gostavam muito. Foi em São Miguel que conheci minha mulher. Ela estudava lá, mas não dei aula para ela.


O que o senhor ensinava em São Miguel?

Ataliba Castilho – Eu imitava meu professor de Rio Preto. Procurava dar aulas animadas, dava serviço para os alunos, valorizava o que eles faziam, apertava quando não estava certo. Gramática não dava tanto. Fazia o que o programa exigia, mas com ênfase na leitura. Depois fui convidado para trabalhar no que seria a Unesp de Marília. Cidade pequena, grupo pequeno, com pessoas procurando um destino. O professor de latim, Enzo Del Carratore, tinha sido meu colega de turma na USP. Éramos todos jovens e procuramos criar um programa de trabalho. Víamos o que estavam estudando na USP. Linguística histórica? Então vamos fazer linguística descritiva. Concentravam-se na língua escrita? Então vamos estudar língua falada. Aquilo definiu as nossas vidas, porque decidimos logo o que fazer. Queríamos pesquisar temas diferentes. Grandes linguistas, Maurer, Mattoso Câmara Júnior, Nelson Rossi, vieram apresentar seus textos, a nosso convite.


Qual sua participação no Museu da Língua Portuguesa?

Ataliba Castilho – Em 2004, Jarbas Mantovanini, que atuava na Fundação Roberto Marinho, apareceu na USP, apresentou o projeto do museu e disse que queria me fazer dois pedidos. O primeiro era dar ideias para o museu. O segundo era para fazer a linha do tempo sobre a história do português. Aryon iria fazer a parte das línguas indígenas e Yeda Pessoa de Castro, da Universidade Federal da Bahia, se ocuparia das línguas africanas. Jarbas disse para chamar quem eu quisesse. Chamei Mário Viaro e Marilza de Oliveira, os dois da USP, para fazer outras partes. Jarbas me perguntou como eu queria representar a linha do tempo, se com filmes ou painéis fixos. Preferi os painéis, porque já haveria filmes do outro lado da sala. Entreguei o projeto, ele gostou: “Está tudo muito bonito, mas no lugar do último quadro vou colocar um espelho. Todos vão percorrer aquela baita história de 2 mil anos e quando chegarem no final vão ver a si mesmos”. Sabe que ele acertou na mosca? Muita gente que via a própria imagem, depois de fazer o percurso histórico, caía no choro. Uma colega de Minas, Maria Antonieta Cohen, ia no começo para ver o museu e depois para ver as pessoas quando chegavam no espelho. Ela me perguntou: “Por que será que elas choram?”. Fiquei pensando muito naquilo. As pessoas choravam, decerto, porque viam ali sua identidade. O que é a língua portuguesa? Sou eu, que represento agora todo esse percurso.
A língua é minha identidade.


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Foto: Reprodução

 

Imagem de capa JU-online
Ataliba Teixeira de Castilho | Foto: Léo Ramos Chaves | Pesquisa FAPESP

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