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Milena e o sonho de igualdade

Para cientista social, todas as pessoas precisam ter acesso aos direitos fundamentais

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Ilustração: Luppa Silva Milena de Oliveira Santos é uma jovem mulher que aprendeu a lutar por si e pelos seus sem cessar e sem se abater. Assim se define a jovem cientista social e estudante de mestrado em demografia da Unicamp ao contar, aos 24 anos de idade, sua história e suas perspectivas de um mundo digno e justo. "Desejo igualdade, ao menos, de oportunidades em nosso país e para a humanidade como um todo. Nesse sentido, é preciso garantir que as pessoas possam ter acesso ao menos aos direitos fundamentais e que tenham acesso ilimitado à educação." Desagrados da vida são incapazes de cerrar o sorriso da mulher determinada a zelar pela satisfação coletiva e reduzir as desigualdades de direitos, duas entre as lições felizes apreendidas no Núcleo da Consciência Negra da Universidade. “Aprendi, em conjunto, o quanto é importante cuidar de quem se ama e zelar para que todas as pessoas do mundo possam um dia dizer que são felizes e satisfeitas com o lugar social que ocupam.”

“Se não fosse eu, não seria ninguém!” Esta frase traduz a responsabilidade que a Universidade atribuiu e atribui à cientista social, conforme declara. Minha vivência na Unicamp sempre foi um tanto quanto conturbada. Eu ingressei na Unicamp a partir da minha segunda opção de curso (ciências sociais) – a primeira era economia – e fui a última pessoa a ingressar no curso em 2011, tendo sido convocada para a matrícula pela última chamada do vestibular. Fui a única mulher negra da minha turma em ciências sociais e agora sou novamente a única mulher negra a ingressar no mestrado em Demografia pela turma de 2016. Então sempre digo esta frase, pois ela transmite as dores e as delícias que a Unicamp me colocou e coloca diariamente sobre os ombros.

Desistir onde se é minoria? Nada disso; resistir é seu verbo. Com incentivo da mãe e de “pessoas certas”, além da vontade de intervir num ambiente que se apresentou elitista, Milena ficou, para o bem da sociedade. Salienta que dentro da universidade, ainda há quem duvide que a academia seja um lugar a ser ocupado por um aluno ou docente negro. “Por isso, durante a graduação, várias vezes quis desistir de meu curso, pois sofria bastante com uma turma que, em sua maioria, parecia não entender minha realidade social – que ainda hoje é a realidade de muitos brasileiros. Minha mãe me fez perceber que ninguém faria meu curso por mim e que se eu queria ver a mudança, eu deveria ser a mudança e era eu quem deveria pautar as questões que achava que ninguém ali estava a enxergar.”

Foto: Scarpa
A cientista social e mestranda em demografia Milena de Oliveira Santos

No mestrado, sua maior alegria foi encontrar uma orientadora que, disposta a assumir desafios, topou orientá-la na dissertação que tem como eixo principal as relações raciais no Brasil. “Assim, a professora Joice Melo Vieira me mostra todos os dias que gente disposta a enfrentar desafios é quem faz o mundo girar e mudar, a partir, também, da produção acadêmica.”

A oportunidade de interação, de dedicação aos estudos sem esquecer o cuidado físico e mental está entre os motivos pelos quais se alegra com a Unicamp. “Mesmo tendo muito a melhorar, ainda se faz possível dentro deste ambiente que oferece serviços como o Centro de Saúde da Comunidade (Cecom) e o Serviço de Apoio Psicológico e Psiquiátrico ao Estudante(Sappe).”

De acordo com Milena, a participação no Núcleo de Consciência Negra da Unicamp também foi um dos presentes concedidos pela instituição. “Encontrei no núcleo um acolhimento que nunca havia sentido dentro do ambiente acadêmico. Após um ato machista e racista sofrido por mim dentro da Unicamp, procurei o núcleo para me informar e conversar sobre o ocorrido e desde então não saí mais. Encontrei nesse espaço a minha forma de lutar e de me sentir acolhida.”

Para ela, ser negro no Brasil é um desafio diário. “É enfrentar o racismo nos esmagando todos os dias, enfrentar as desigualdades que nos assolam e ainda assim ser um povo resistente e que luta não apenas por si, mas também por todos, porque entendendo e sentindo a discriminação na pele não a queremos para ninguém.”


Espelho materno

O mesmo espelho chamado Mãe que deu forças para Milena chegar da graduação à qualificação de sua dissertação, em setembro, certamente a levará mais longe. Sempre dedicada a todas as disciplinas escolares, recebeu da família e principalmente da psicóloga o incentivo fundamental para estudar. “Posso apontar minha mãe como a pessoa que mais me incentivou a estudar. Mulher negra, psicóloga com especialização em saúde mental e agora aposentada pelo governo do Estado de São Paulo, minha mãe trabalhou, estudou e sempre reforçou pra mim a importância dos estudos e de dedicação exclusiva a minha formação enquanto fosse necessário. Hoje, ela vê em mim incentivo para continuar sua formação como aluna de italiano e inglês na faculdade da terceira idade oferecida pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (Unesp) em São José dos Campos.”

Como não pensar no coletivo ao crescer numa família em que é de praxe o comparecimento total em todas as formaturas da família, assim como o compartilhamento de notícias de todos os prêmios e êxitos escolares? “Todos sempre me apoiaram, mas a minha família materna (que é negra) sempre esteve muito presente no que diz respeito à minha vida escolar.”

Membro do Comitê do Pacto de Educação em Direitos Humanos – assinado pela Unicamp com o objetivo de pensar políticas de direitos humanos e diversidade para serem implantados na universidade –, Milena envolveu-se e ainda dedica-se a vários projetos de extensão, entre eles o Núcleo de Apoio à População Ribeirinha da Amazônia (Napra), a Enactus Unicamp-Campinas e agora o Núcleo de Consciência Negra da Unicamp. “Com minha participação nesses projetos, pude conhecer muitas pessoas incríveis, me inspirar e continuar minha caminhada universitária realizando um sonho compartilhado que é o de ser uma pessoa negra dentro de uma universidade tão consagrada como a Unicamp.”

Em 2013, Milena foi aprovada em concurso público e começou a trabalhar em um albergue com população de rua na cidade de Campinas. A nova missão obrigou a divisão do dia entre trabalho e estudo, mas com a aprovação no mestrado, passou a receber bolsa de estudos concedida pela Capes, o que permite se dedicar exclusivamente aos estudos. Aliás, êxito em processos seletivos não é problema, pois por ser boa aluna na rede estadual e municipal no ensino fundamental, Milena foi uma entre os 200 alunos aprovados para ingressar em 2008 no Colégio Engenheiro Juarez Wanderley – Instituto Embraer de Pesquisa e Educação, em São José dos Campos.

Outras vitórias se acumularam ao longo da trajetória escolar de Milena e, talvez sem perceber, fizeram dela a pessoa resistente que responde sempre com um sorriso aos desafios. “Eu sempre fui muito curiosa e então adorava quando me era apresentado um mundo a ser explorado. Foi assim que na quarta série, mesmo após a descoberta de um tumor no cérebro e ter passado por algumas cirurgias, eu ganhei um concurso de redação em minha escola. Na quinta série, tive um comentário publicado em uma revista de direitos humanos, na oitava série, ganhei medalhas de prata na Olimpíada Brasileira de Física e na Olimpíada Brasileira de Astronomia.”

Da creche, onde a mãe era psicóloga; do ensino fundamental em Brasilândia, São Paulo; do Instituto Embraer para as ciências sociais e para o mestrado na Unicamp, Milena escreve sua história no livro da comunidade científica. Mas avisa que muito mais há de vir.

 

 

Imagem de capa JU-online
Milena de Oliveira Santos | Foto: Antonio Scarpinetti

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