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Orgulho, respeito e militância no ‘rolê’ de jovens gays da periferia

Pesquisador acompanha, durante três anos, trânsito de grupos de homossexuais nas cidades de São Paulo e Barretos

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Processos ocorridos nos últimos 30 anos mudaram o lugar social da homossexualidade no Brasil. Enquanto gerações anteriores de adolescentes e jovens viviam a homossexualidade referenciada em estigma, medo e invisibilidade, novas gerações têm experimentado outra relação com a cidade e podem vivenciar a homossexualidade referenciada em orgulho, respeito e reivindicação de direitos. Esses processos foram experimentados de modos bastante diversos dependendo do contexto e de fatores como classe, raça, gênero e sexualidade. Essa é uma das conclusões da tese de doutorado “ ‘Rolês’, ‘closes’ e ‘xaxos’: uma etnografia sobre juventude, (homo)sexualidades e cidades” de Marcelo Perilo defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCH) da Unicamp, com orientação da professora Regina Facchini.

Em seu trabalho de campo, realizado entre 2013 e 2016, o pesquisador acompanhou adolescentes e jovens moradores de periferia autoidentificados como gays em seus trânsitos nas cidades de São Paulo e Barretos. "O que pude observar são diferentes modos de experimentar diferentes escalas de cidades e de viver a sexualidade, o que permite outras referências sobre a experiência da homossexualidade e de sua visibilidade no contexto urbano”, explicou. Segundo ele, ao acompanhar as trajetórias de seus interlocutores em cada cidade foi possível identificar como eles elaboram espaços de encontro, lidam com situações de represália e experimentam a visibilidade e invisibilidade de sua homossexualidade.

Foto: Scarpa
Marcelo Perilo, autor da tese: "O que pude observar são diferentes modos de experimentar diferentes escalas de cidades e de viver a sexualidade, o que permite outras referências sobre a experiência da homossexualidade e de sua visibilidade no contexto urbano”

A investigação partiu de três espaços públicos na cidade de São Paulo, estabelecidos como pontos de encontro e convivência desses adolescentes e jovens: o Largo do Arouche, na região da República; o cruzamento das ruas Peixoto Gomide e Frei Caneca; e a Praça Coronel Sandoval de Figueiredo, no Tatuapé. Em Barretos, a pesquisa foi realizada a partir da Praça Francisco Barreto, localizada na região central da cidade, e na Festa do Peão de Boiadeiro, evento anual que movimenta e transforma a cidade.  A partir desses espaços, o pesquisador acompanhou seus interlocutores por várias regiões, inclusive em viagens para além dos limites urbanos. De acordo com Perilo, seu trabalho foi refletir sobre seus interlocutores a partir da etnografia de seus deslocamentos pelo espaço urbano para então narrá-los a partir do detalhe. “Identifiquei na antropologia vários modos de narrar, mas um deles em específico me parece mais poderoso para que se desvelem processos e relações. Refiro-me à estratégia narrativa que destaca um detalhe, uma sutileza, um fragmento qualquer para que, a partir dele, seja possível refletir não apenas sobre o detalhe, mas sobre o mundo ao redor”, destaca o autor nas considerações finais de sua tese.

Nos trânsitos entre periferias e centros das cidades, os adolescentes e jovens observados por Perilo enfrentam diversos desafios relativos a suas modalidades de expressão e aos constrangimentos a que são expostos. Permitir-se visíveis, ou seja, identificáveis como gays pelo estilo das roupas e acessórios ou pela manifestação de afetos, a depender do local e das circunstâncias, pode significar tornar-se alvo de violência. Essas negociações e as estratégias usadas por esses jovens para circular em segurança foram o objeto de pesquisa de Perilo. "A depender da sua visibilidade ou da expressão de seus afetos, as condições de reação a represálias podem ser precárias. Quanto mais visíveis, mais suscetíveis a ações violentas”, explica.

Foto: Scarpa
Regina Facchini, orientadora da pesquisa: “Eu sou pesquisadora do movimento LGBT há anos e não tinha conhecimento da existência dessas famílias”

Uma das formas observadas por Perilo que são organizadas por esses adolescentes e jovens para se protegerem é o processo de “montarem-se” nos itinerários que fazem entre regiões das cidades. Ao encontrar um interlocutor no metrô indo do bairro de Itaquera ao Centro de São Paulo, Marcelo conta que pôde ver como ele se maquiava dentro do vagão, compondo um visual que poderia identificá-lo como homossexual. Esse adolescente adotava um estilo que poderia ser experimentado no Centro e não no bairro onde morava, na periferia de São Paulo.

Outra estratégia identificada pelo pesquisador foi a organização de grupos denominados “famílias LGBT”. De acordo com Perilo, as “famílias” são redes compostas por adolescentes e jovens que visam promover proteção e suporte de seus membros. Inspiradas nas famílias de laços sanguíneos, as “famílias LGBT” têm pessoas identificadas como “pais”, “mães” e “filhos” que desempenham diferentes funções de acordo com a identidade de gênero, período de entrada e engajamento de seus membros. Os fundadores de uma “família” são denominados “pai” e “mãe”, enquanto que os agregados são os “filhos”, independentemente da idade. Muitas dessas “famílias” surgiram no Largo do Arouche. Algumas têm sua atuação restrita a momentos de lazer, outras acompanham o cotidiano desses jovens: o dia-a-dia com a famílias de origem, os estudos, etc.

Em seu trabalho de campo, o pesquisador pôde acompanhar a mobilização de uma “família LGBT” para ir a uma boate em Itaquaquecetuba, cidade da região metropolitana de São Paulo.

Ouça a história na voz do pesquisador

Apesar de existirem “famílias LGBT” com mais de 10 anos de existência, esse tipo de organização era até então desconhecido pelos estudiosos da área. Regina Facchini, orientadora da pesquisa, ressalta que trazer o universo dessas “famílias” para o conhecimento científico foi uma das grandes contribuições da pesquisa de Perilo. “Elas não eram visíveis. Eu sou pesquisadora do movimento LGBT há anos e não tinha conhecimento da existência dessas famílias”, afirma.

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Concentração de homossexuais no Largo do Arouche (acima) e na rua Augusta (abaixo), em São Paulo

Foto: Reprodução

A possibilidade de sofrerem agressão física não é o único elemento que faz com que esses adolescentes e jovens pensem em modos de estarem mais ou menos visíveis como gays. Algumas formas sutis de agenciar a própria visibilidade e invisibilidade de si e de seus afetos foram observadas pelo pesquisador. A opção de um dos interlocutores de Perilo de guardar a aliança na carteira ao entrar em casa foi uma delas.

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Conforme explica Facchini, nas periferias há redes de proteção baseadas no conhecimento familiar da comunidade. “A pessoa é benquista porque a família dela é benquista. Portanto, ela pode ser visível enquanto gay ou lésbica, mas a visibilidade dos afetos não é possível, pois fere a categoria do ‘respeito’. As condições em torno de como a visibilidade pode se dar que a gente chama de regime de visibilidade”, explica.

Foto: Reprodução
Ato promovido por homossexuais no Largo do Arouche: luta por direitos

Compreender os diversos regimes de visibilidade experimentados por seus interlocutores nos contextos onde vivem foi o principal desafio de Perilo. “Os regimes de visibilidade dizem respeito a um conjunto que envolve espaço, sujeito e suas relações. Eles sinalizam as condições sob as quais certo tipo de postura será visível ou não”, explica o pesquisador. Essa mudança de regime de visibilidade pode observada por Perilo na experiência de um de seus interlocutores ao ir de Barretos a São Paulo.

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Segundo Perilo, sua pesquisa permitiu uma análise de transformações sociais ocorridas no país, intensificadas nas últimas décadas. Sua análise foi elaborada tendo em vista os modos pelos quais os adolescentes e jovens que ele acompanhou experimentam as cidades, considerando restrições financeiras, dispositivos urbanos segregacionistas e possibilidades de represália em função da visibilidade da homossexualidade.

 

 

Imagem de capa JU-online
Largo do Arouche, em São Paulo  | Foto: Antonhio Scarpinetti

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