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Alzheimer: para além da doença

Tese revela nuances ao mapear relações e cotidiano de pacientes

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O diagnóstico da doença de Alzheimer não é algo simples. Depende dos exames clínicos realizados por médicos, da análise da história do paciente e de uma avaliação aprofundada de suas funções cognitivas. É comum que o médico esteja atento ao cotidiano do paciente e geralmente se leva em conta se a pessoa consegue se vestir, comer, tomar banho, etc. A perda da memória, da cognição e da linguagem é apontada como parte de um processo de “dissolução do self”, expressão usada por neurologistas. Ou seja, a pessoa não se reconhece mais. Mas há uma potência nisso, apesar de parecer assustador, de acordo com Daniela Feriani, autora da tese de doutorado “Entre sopros e assombros: estética e experiência na doença de Alzheimer”. “Há outras possibilidades de ser pessoa”, adianta.

A pesquisa foi defendida na área de antropologia social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, com orientação da docente Guita Grin Debert. O objetivo da tese foi mapear um campo de relações em torno da doença de Alzheimer. “Percorri os fios que foram tecendo a doença em um emaranhado de sujeitos, campos, imagens, tanto na composição do diagnóstico como na experiência e na estética”, detalha Daniela.

Para desenvolver o trabalho ela recolheu uma série de imagens, metáforas sobre a doença, ensaios fotográficos, vídeos de campanhas de conscientização, blogs escritos por pessoas em processo demencial e obras de arte feitas por um artista diagnosticado com Alzheimer.  Também observou os gestos e cenas envolvendo pacientes e familiares que acompanhou em consultas na neurologia e na psiquiatria geriátrica de um hospital universitário. Além disso, a pesquisadora participou de reuniões da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz).

Foto: Antoninho Perri
Daniela Feriani, autora do estudo: “Percorri os fios que foram tecendo a doença em um emaranhado de sujeitos, campos, imagens, tanto na composição do diagnóstico como na experiência e na estética”

Algumas famílias foram escolhidas para visitas domésticas. Sem gravador ou papel para anotar, “apenas disposta a ver e ouvir”, Daniela passou tardes nas casas de pessoas com Alzheimer e observou cenas cotidianas. “Numa das visitas, vi uma senhora aflita porque acreditava que o macaco da novela invadiria a sala”. Esse tipo de reação é comum no dia a dia daqueles que convivem com a doença e faz parte do que a pesquisadora considera um “cotidiano assombrado”, quando as atividades domésticas mais banais podem se tornar assustadoras. “Tentar mudar o canal da televisão com o chinelo, vestir uma camisa como se fosse calça, não conseguir ligar a máquina de lavar, usar detergente para cozinhar, entrar de roupa para tomar banho, convidar a imagem do espelho para passear são parte desse cotidiano”, salienta a pesquisadora.


Outro mundo possível

Assombrado, assustador, mas também, possível e potente, como coloca a autora da pesquisa. O cotidiano dos pacientes e também cuidadores das pessoas com Alzheimer se equipararia a um outro mundo, com outras referências. “Mostro como é outro mundo, o mundo às avessas da demência, no qual memória e alucinação, terror e humor, demência e lucidez, rotina e criatividade se sobrepõem”, afirma.

Segundo a pesquisadora, ainda que a linguagem verbal possa ser perdida, há outras formas de expressão. “O rosto de cada pessoa diz muito, e seus gestos também falam. Encontrei grande quantidade de rostos em fotografias e pinturas sobre a doença, como se contassem algo que não pode mais ser contado por palavras. Se as neurociências elegeram o cérebro como conceito-imagem da noção de pessoa, a contra-narrativa da doença de Alzheimer elegeu o rosto, com suas expressões e distorções”, acentua.

A tese procura mostrar ainda como a doença abala paradigmas médicos e filosóficos. A autora buscou diálogos com o xamanismo e a literatura para pensar outras noções de pessoa, doença e realidade. “O xamanismo e a literatura me ajudaram a pensar no devir outro, no delírio, no espelho como metamorfose. Porém, se lá eles compõem pessoa e modo de conhecer, na clínica são sintomas patológicos”.

Daniela afirma que a doença pode ser uma “subjetividade diferenciada”, um modo de vida, um outro mundo possível, e que o cuidador pode tentar partilhar desse mundo. “Muitas pessoas com a doença de Alzheimer querem voltar para a casa da infância, fazem as malas, conversam com os pais que já morreram. Em vez de negar, a recomendação dos médicos e da ABRAz é ser criativo, mudar o foco, ou entrar no mundo deles. ”

No mapeamento do campo de relações que envolve a doença de Alzheimer, Daniela procurou mostrar o quanto ela é plural e “nebulosa”. “Entre a epidemia e a incerteza, a doença de Alzheimer revela uma obscuridade epistemológica e ontológica, aparece como estranheza, ‘embrolho’. Em meio à névoa, vi os borrões, mas também os vaga-lumes: um olho que brilha, uma mão que segura o cobertor, os pingos d’água depois do banho, a borra de café na xícara, uma piada, uma dança, uma queixa, um desejo”.

 

Imagem de capa JU-online
Daniela Feriani, autora do estudo

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