Foto: Antoninho PerriRoberto Romano da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles “Brasil, Igreja contra Estado” (Editora Kayrós, 1979), “Conservadorismo romântico” (Editora da Unesp), “Silêncio e Ruído, a sátira e Denis Diderot” (Editora da Unicamp), “Razão de Estado e outros estados da razão” (Editora Perspectiva). 

Sobre guerras e diplomacias (I)

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Foto: ReproduçãoDesdobramentos da vida internacional, nos dias atuais, trazem à memória a Guerra Fria após carnificinas que no século XX destruíram seres humanos, animais, terras e mares. Após 1914, a França perdeu milhões de hectares agriculturáveis devido à pletora de obuses, armamentos destruídos, cadáveres abandonados. As contas levam aos 9,5 milhões de mortos ou desaparecidos. A Sérvia teve 40% do exército dizimado. Historiadores indicam que aproximadamente um milhão está ausente da conta, pois seria preciso acrescentar os prisioneiros mortos na cela, os que faleceram devido a ferimentos após a desmobilização – 73,3 milhões de indivíduos foram gastos pelas potências. As aliadas usaram 48,2 milhões, as vencidas fizeram bucha de canhão com 13,2 milhões de cidadãos germânicos e 9 milhões  de austro-húngaros.

A segunda catástrofe fez a URSS perder 13,6 milhões soldados, 7,5 milhões civis, 10% de sua população anterior às batalhas. A Polônia teve 120 mil mortes e mais 5,3 milhões civis. A Alemanha devorou 4 milhões de soldados e 3 milhões civis. A França jogou para a morte 250 mil soldados e 350 mil. A Inglaterra e seus domínios empregaram 326 mil soldados, perderam 62 mil civis. Os Estados Unidos gastaram 300 mil soldados, quase sem perdas civis. Para arredondar os números obscenos, a China perdeu, entre soldados e civis, entre 6 milhões e 20 milhões de seres humanos. Assim, do primeiro para o segundo conflito, a quantidade dos mortos foi de 4 a 5 vezes a mais. [1]

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Cena de “Nascido para Matar”, filme dirigido por Stanley Kubrick | Foto: Reprodução

Na primeira investida do Inferno, as mortes ocorreram mais entre militares. Na segunda, a soma entre soldados e civis foi igualada. Além dos crimes nazistas, ocorreu o bombardeamento em massa de cidades, mortandade imposta aos que fugiam, etc. Morreram 70% a mais de cidadãos soviéticos do que nos EUA. Parte das mortes foi devida aos Einsatzgruppen. A dança macabra, cujo grand finale ocorreu em Hiroshima e Nagasaki, continuou após o conflito.

O diabo deixa o mundo, mas resta o enxofre. Acabada oficialmente a Segunda Guerra, conflitos armados surgem em todo o planeta. O socialismo busca defender conquistas, exige sacrifício dos exauridos em batalhas. De outro, a passagem do bastão imperial – da Inglaterra aos EUA – inaugura o tempo dos golpes de Estado com o desferido contra o Irã de Mohammed Mossadegh. Os fatos são conhecidos. Aquele golpe é o primeiro a ser aplicado pela CIA contra um governo adverso aos interesses britânicos, ligados aos estadunidenses. Tratou-se de um prefácio com ressonância prática e teórica em todo o século XX. Churchill, o suposto grande homem que teria salvado a Europa da tirania, precisava do petróleo iraniano. Temia o avanço da URSS rumo às fontes iranianas do produto, já dominado de forma cruel pelos ingleses. Como costumeiro, os iranianos eram tratados como bichos nas garras da “pérfida Albion”. Mossadegh nacionalizou o petróleo, o que deu início a manipulações de massas religiosas contra ele, boatos, denúncias mentirosas de corrupção, jogo baixo no Parlamento e com o Xá. Todos os artifícios usados depois na apologia da “cultura ocidental e cristã” começaram nas ruas de Teerã contra o “ ditador” e sua pretensas ameaças à democracia. [2]

Em 1965, na luta pelo controle asiático, os EUA garantem o golpe encetado por Suharto contra o presidente Sukarno. Segue-se, a pretexto de limpar a Indonésia dos comunistas e de seu partido (PKI), um massacre digno do que ocorreu na Segunda Guerra Mundial. De 500 mil a um milhão de comunistas, esquerdistas ou simples partidários do governo deposto foram aniquilados com ajuda do poder estadunidense. A democracia, abençoada pelos EUA sob o guante de Suharto, durou até 1998, perto de nossos dias. [3]

Outra semente da Guerra Fria, hoje brota entre ovos e ogivas nucleares. A divisão da Coreia foi o extremo da luta entre a URSS e os EUA pelo controle da Ásia. Anexada ao Japão em 1910,  tratada com selvageria pelo poder nipônico, em 1945 a Coreia não pertence aos aliados nem ao Eixo. No ano de 1929, em território “francês” (a lógica colonial) de Shangai é criado um governo provisório da Coreia. Para resistir aos japoneses o governo tenta se apoiar nos ocidentais e no Kuomintang. Com o fracasso, surgem algumas tendências. A primeira delas é ligada aos EUA, outra ao Kuomintang. Os comunistas se dividem entre apoiadores da China e outra, ligada à URSS, com liderança de Kim Il Sung.

Em setembro de 1945 Lyu Woon convoca uma Assembléia que proclama a República da Coreia. Os americanos, com 72 mil soldados sob comando do general Hodge, não reconhecem aquele poder. No setor Norte os soviéticos reforçam a administração comunista. Na conferência de Moscou (dezembro de 1945) Estados Unidos, URSS, Inglaterra, China, França reconhecem a independência coreana. Só norte-americanos e soviéticos ocupam o país. A parte mais industrializada na região estava  no setor Norte. A Coreia sofre a tutela dos que assinaram a Conferência de Moscou. Eleições gerais programadas, visando instituir um Estado democrático, as contradições entre EUA e URSS barram todo o processo. Na ONU, os EUA exigem eleições em todo o território, a URSS quer a retirada de todas as tropas do país tutelado. Ganham os EUA e se cria uma Comissão para organizar eleições gerais. A URSS nega acesso à Comissão nos territórios nortistas. As eleições só ocorrem no Sul. Em 15 de agosto de 1948 é proclamada a república em terra dividida.  Em 1948 ela é reconhecida por grande parte dos Estados mundiais, menos os alinhados a Moscou. O veto da URSS impede a entrada do novo Estado na ONU (as duas Coreias são admitidas em 1991).

Em 1950, Dean Acheson proclama que o perímetro de defesa de seu país no Oriente ia até as Filipinas, passando pelo Japão, o que excluía as Coreias e Formosa. Mas John Foster Dulles garante aos sul coreanos o apoio dos EUA. Kim Il Sung pede ajuda de Stalin e de Mao para reunificar a Coreia no embalo da guerra civil chinesa ganha pelo PC em 1947. Ele se propõe reunificar o país com eleições gerais, sem controle da ONU. O Sul recusa. Em 25 de junho de junho a Coreia do Norte invade a parte sulista.

Stalin e Mao jogam no tabuleiro militar e diplomático. Os atos dos EUA na Coreia não têm aprovação plena da ONU. Stalin desenha o futuro: se os EUA reagem à invasão do Sul, perdem tudo e sua credibilidade diplomática some. Mas se os norte-americanos reagem, há outra vantagem para a URSS, a de afastar a potência atlântica da Europa. No caso de Mao, a guerra permitiria conseguir da URSS um complexo militar industrial: soldados chineses combateriam com equipamentos soviéticos, em troca de....equipamentos soviéticos. [4] A partir daí são conhecidas as iniciativas ligadas à raison d´État pelas potências, o estraçalhamento da Coreia, a porta aberta rumo aos os conflitos armados do século XX e início do XXI.

Para edificar alianças guerreiras e diplomáticas na Guerra Fria, além dos mecanismos da espionagem, sabotagem, etc., EUA e URSS desenvolvem  sua propaganda baseada na mais antiga técnica da raison d´État, a mentira. [5] As duas potências utilizam o serviço científico antes manipulado pelo nazismo. Cérebros são transferidos para os laboratórios, bibliotecas e setores de ensino. Os EUA precisam inicialmente esconder do seu público interno tal forma de aproveitar cientistas comprometidos com o que havia de pior na ética e melhor no plano do conhecimento. Para ocultar a responsabilidade geral do povo alemão nos crimes bélicos (sobretudo na matança de minorias como os judeus, os ciganos e outros) [6], as elites germânicas criam o mito de que os únicos culpados pelo Holocausto e abusos do Estado nazista seria a SS. Segundo a piedosa narrativa, a Werhrmacht teria mãos limpas, lavadas a jato. Como toda mentira útil para os golpes,  semelhante desculpa foi aceita pelos EUA. Estava garantida a recuperação moral da Wehrmacht e sua entrada na OTAN. Diz Christopher Simpson que o recrutamento de nazistas foi encoberto pelo mito da santidade aplicado à Wehrmacht, endemoninhando a SS. [7]

A Guerra Fria estabelece o equilíbrio do medo entre as potências após o segundo conflito mundial. Mas se traduz em guerras, espionagens, golpes de Estado e ditadura sanguinárias para manter o status quo. A paz foi efeito de propaganda e não realidade. Um analista das conflagações bélicas comenta que períodos aparentemente pacíficos existiram no passado, como na Europa entre 1816 e 1852 ou após 1871 até 1913. “Mas não significou então, e não significa agora, que as grandes potências pararam de pensar e agir segundo uma lógica realista. De fato, há evidência substancial que os maiores Estados da Europa e da Ásia ao nordeste, ainda temem uns aos outros e continuam a se preocupar com o relativo poder de controle por eles possuídos. Abaixo da superfície nas duas regiões há um potencial significativo para a competição intensa sobre a segurança e possivelmente mesmo guerra entre os Estados líderes”. [8]

Traço importante da Guerra Fria reside na presença de engenhos que podem substituir exércitos e comandos militares ou políticos. Desde a mais remota antiguidade instrumentos são usados para destruir inimigos. [9] Mas no século XX o grande ator é a tecnologia nuclear. Hegel afirma que na guerra moderna some o heroísmo pessoal. Entre os exércitos aumenta o papel das máquinas como os canhões, etc. Quem usa aqueles meios, quase nunca enxerga o inimigo. Ódio e pavor são atenuados em proveito do belicismo burocrático. A guerra teorizada nas “Lições sobre a Filosofia do Direito” é similar à descrita por Max Weber. A burocracia, imenso engenho mecânico, toma conta dos atos religiosos, dos políticos e destes aos letíferos. Weber enuncia estar o futuro da humanidade no ordenamento burocrático que afasta o poder dos governantes e legisladores, juízes e clérigos, empresários e trabalhadores.

J.D. Moreno (Mind Wars, Brain Research and National Defense)  discute a mediação de instrumentos e remédios nos combates de hoje. Ele cita a “Ilíada” nos versos sobre a coragem dos  gregos: “Eles não lutam à distância com arcos ou lanças, mas com uma só mente que os prende uns aos outros em combate cerrado com suas potentes espadas”. A valentia cede passo, pensa Moreno, a cada nova invenção técnica, das catapultas ao canhão, deste às bombas dirigidas por satélites. Líderes militares refratários aos incrementos técnicos são deixados para trás, no tempo histórico. O General Patton disse a jornalistas que a Força Aérea teria extraído dos soldados a oportunidade heróica.  Estrategistas como Clausewitz discordam de Hegel e dos que afirmam ter a coragem perdido lugar na guerra moderna. Mesmo hoje, uma batalha só ser dita vitoriosa se os pés do infante pisam o solo dos vencidos, garantindo a sua posse permanente ou provisória. É o que provaram os vietnamitas à potência norte-americana.

Moreno exemplifica os riscos atuais, depois da Guerra Fria, na aplicação técnica de meios sem domínio completo do necessário para a eficácia. Ele cita os chechenos que invadiram um teatro em Moscou (outubro de 2002). As forças policiais colocaram o derivado de cloridrato de fentanil pelo buraco da parede, incapacitando os sequestradores. O gás lhes causa sono, permite matá-los. Efeito colateral dramático: homens, mulheres, crianças também caíram sob a ação do gás, com 128 mortes e muitas internações. Os policiais que o aplicaram e o serviço médico não possuíam saberes sobre os efeitos.

No mesmo tempo em que a tragédia ocorre na Rússia, indica Moreno, a National Academy of Sciences, dos EUA, apresenta um relatório sobre o uso militar de “armas não letais”, incluindo “calmantes” como o referido derivado de cloridrato de fentanil. O final do relatório diz que a Convenção sobre Armas Químicas é ambíguo o bastante, quando se trata de armas daquele tipo.  O Pentágono assume atitude similar, afiança que o uso daquelas armas é decisivo para missões delicadas bem sucedidas. Críticos chamam a atenção para a perigosa proximidade entre armas químicas não letais e letais. Muitos se interrogam sobre o uso das últimas por governantes que tiveram o apoio dos EUA, como Sadam Hussein na guerra contra o Irã.

As considerações anteriores exigem complemento, o esforço diplomático para deter a loucura planetária. É o que imagino fazer em textos próximos.

 


 

[1] Os dados, não totalmente precisos, podem ser aferidos em Marc Nouschi, Bilan de la Seconde Guerre Mondiale (Paris, ed. Seuil, 1996). Para outros dados, cf. John J. Mearsheimer, The tragedy of great power politics (NY, W.W. Norton & company, 2001), pp. 327-329.

[2] A história abjeta é mais triste e dramática, com os desdobramentos da tortura, exílios, censuras e terror implantados pela CIA, tendo como instrumento a polícia secreta do Xá. Remeto para o livro essencial de Stephen Kinzer, All the Shah´s Men (New Jersey, John Wiley & Sons, 2003).

[3] Robert Cribb (2004). "The Indonesian Genocide of 1965-1966" In Samuel Totten(ed). Teaching about Genocide: Approaches, and Resources. Information Age Publishing, pp. 133-143.

[4] Chang, j. e Hallyday, J. : Mao. L´histoire inconnue (NRF, Gallimard, 2005). Para toda a passagem, valho-me do trabalho publicado por Davi Cumin, “Retour sur la guerre de Corée”, In CAIRN. Info. No mesmo site, uma análise que leva  em conta o lado norte-coreano com dados da exploração japonesa da terra e da economia geral, análises sobre a política norte americana para o país, etc. Cf. Heo Man-Ho : “la guerre de Corée vue du côté coréen”.

[5] CF. John J. Mearsheimer: Why leaders Lie. The Truth about lying in international Politics (Oxford, University Press, 2011). Uma análise estupenda sobre a síntese da propaganda mentirosa na época de ouro da raison d´état, com base na atuação de Thomas Hobbes: Malcolm, Noel: Reason of State, Propaganda, and the Thirty Years War, an unknown translation by Thomas Hobbes (Oxford, Clarendon Press, 2007).

[6] Eric Voegelin tem páginas candentes sobre a colaboração geral do povo alemão na matança aplicadapelo regime hitlerista. Cf. Hitler e os Alemães (São paulo, É edit. 2008).

[7] Simpson, Christopher : Blowback, America´s Recruitment of Nazis and its effects on the Cold War (NY, Collier Books, 1989).

[8] Mearsheimer, John, J. : The tragedy....ed. cit. pp. 372-373.

[9] A expressão plástica de tamanha violência é figurada na filmografia de Stanley Kubrick. Do osso jogado para cima, após o assassinato primordial em 2001, uma Odisséia no Espaço, passando pelo terrível Dr. Fantástico e Nascido para Matar (não esquecendo os exércitos de seres mecanizados em Barry Lindon) temos uma fenomenologia tremenda do tema. Cf. Maria Sylvia Carvalho Franco e Roberto Romano: “ ´O Iluminado´ de Stanley Kubrick” , Revista Leituras, Ano 12, junho-1993, número 21, pp. 37 e ss.

 

 

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