Foto: ScarpaReginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.

Vícios e virtudes da educação como panaceia

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Ilustra: Luppa SilvaArthur Cohen, Carrie Kisker e Florence Brawer assinaram no Chronicle of Higher Education (28/10/2013) um artigo que interessa a leitores brasileiros. Como não posso violar copyright e reproduzi-lo, vou-me limitar a uma paráfrase interessada, isto é, uma reconstrução seletiva, rápida e limitada. Mas acho que é suficiente para chamar a atenção para alguns problemas que compartilhamos com os assim denominados irmãos do Norte.

Antes, um aviso sobre os autores. Em parceria com Kisker, Cohen publicou The Shaping of American Higher Education: Emergence and Growth of the Contemporary System (ed. Jossey-Bass, 2009). E com Florence Brawer, o The American Community College (Jossey-Bass, 2013). Livros imperdíveis para quem quer estudar a educação superior americana.

O artigo é provocação desde o título e confronta toda uma mitologia muitas vezes bem intencionada, mas que resulta com frequência em desastres. Refiro-me àquilo que Norton Grubb e Marvin Lazerson chamaram de Evangelho da Educação. Coloca-se a educação num pedestal sagrado, dela fazendo a rainha de nossas esperanças, remédio de todos os males. O que não se espera (quem sabe?) é que, uma vez desconfirmado o prognóstico, a educação e os educadores passam a ser tratados como vilões e não mais como heróis.  A famosa “faca de dois legumes”, o boomerang previsível.

The Economy Does Not Depend on Higher Education – diz o forte título de Cohen e seus colegas.

Eles começam por recuperar um conjunto de dados sobre a situação de mais da metade dos adultos americanos (maiores de 24, especificamente): eles têm diploma de graduação, mas trabalham em empregos que, de fato, não exigiriam o diploma que possuem. Overeducated, segundo a expressão de alguns estudiosos.

Ainda assim, perguntam e provocam: por que analistas e políticos norte-americanos repetem com frequência a ideia de que a estagnação econômica, principalmente depois da crise de 2008, se deve à escassez de pessoas adequadamente educadas? Os autores se referem à usual teoria do skills gap – o descompasso entre empregos supostamente existentes e trabalhadores supostamente despreparados para esses supostos empregos.

Outro dado relevante é por eles apontado: a grande maioria dos empregos americanos que foram “expelidos” para o exterior, com a deslocalização de plantas fabris, é preenchida por pessoas menos educadas do que os americanos que substituem. Os autores poderiam ainda lembrar a propalada falta de formados em áreas ditas técnicas – ou STEM, sigla em inglês para ciência, engenharia, tecnologia e matemática. Na verdade, diplomam-se anualmente, nessas áreas, muito mais especialistas do que os empregos oferecidos. Um grande número de estudos tem sido publicado com esse aviso, nas revistas acadêmicas e também em magazines dirigidas a público amplo.

Mas… ainda assim, porque aquelas “verdades aparentes” se repetem com insistência, reiterando mil vezes o tal skills gap ou skills mismatch? Simples equívoco?

Algumas pistas são adiantadas pelos autores:

"Argumentar que se podem resolver os problemas de competitividade internacional aumentando os anos de escolaridade desvia a atenção dos dirigentes empresas que originalmente exportaram os empregos, que pressionaram incessantemente para fugir de impostos sobre os lucros daí derivados, que converteram empregos de tempo integral em tempo parcial, para evitar o pagamento de benefícios e que não investiram significativamente na formação dos trabalhadores que restaram"

Esses são os interesses e práticas que, casualmente, são ocultados ou deixados em segundo plano pela ênfase no skills gap e no evangelho da educação. Mas há mais:

"A escassez de programas de aprendizagem e de treinamento corporativo cria nichos de negócio potenciais para instituições pós-secundárias — community colleges e empresas com fins lucrativos, especialmente — para proporcionar cursos de atualização"

Mas, afinal, não é verdade que cada vez mais precisamos de gente com formação superior? Não é verdade que os empregos criados serão, cada vez mais, dessa natureza? Os autores recomendam alguma prudência e moderação no uso dos dados, para não exagerar na conta. Lembram, por exemplo, o contraste entre o Current Population Survey, levantamento feito pelo Census Bureau Americano, e aquele registrado pelo escritório de estatísticas do Departamento do Trabalho. O primeiro diz que 60% de todos os empregos são “pós-secundários”, mas o segundo diz que o percentual é de 31%. Diferença nada desprezível, algo deve explicar. E eles explicam: o levantamento do Censo registra a escolaridade atingida pelos atuais empregados, enquanto o Departamento do Trabalho reflete o nível de educação exigido para o ingresso e exercício da ocupação. E as duas coisas podem ser (e são) muito diferentes. Vários estudos têm demonstrado a enorme quantidade de gray collars, isto é, de trabalhadores diplomados realizando trabalhos que não necessitam o uso de nenhum conhecimento produzido pela graduação que fizeram (ou alguma graduação que seja). A discrepância dos dois critérios pode resultar em realidades curiosas: um barista (especialista em preparar e servir cafés expressos), se tiver diploma de graduação, pode ser classificado como “pós-secundário”... Coisas parecidas podem acontecer com representantes de vendas, funcionários de escritório, operadores de caixas, funcionários de restaurantes e assim por diante.

Então devemos renunciar à expansão da oferta de educação (e de educação superior, em especial)? Não necessariamente, a não ser que tenhamos em mente apenas esse critério e justificativa. A educação não equipa as pessoas apenas para operar no mundo, mas, quem sabe, para operar o mundo. É o que sugerem:

"Certamente a educação superior é desejável. A comunidade ganha pessoas mais generosas, mais dispostas a votar e participar em assuntos cívicos e menos propensas a depender de assistência governamental ou a se envolver em comportamento anti-social. O indivíduo aprende a raciocinar cientificamente e a pensar criticamente e adquire um senso de perspectiva histórica, um apreço pela estética e pela diversidade cultural,  e ganha acesso à formação para as profissões que exigem credenciais"

O que não cabe fazer, dizem eles, é jogar a culpa de uma recessão econômica ou o declínio da “competitividade” na escassez de trabalhadores bem formados. Melhor examinar as razões do estrago sem esse bode expiatório demasiado óbvio.

Para concluir, uma pequena maldade dos autores, lembrando a fanfarra de alguns estudiosos que exageram a ideia de que os novos empregos exigirão montanhas de diplomados. Eles lembram que os “achados” de um desses estudos foram transformados em clichê de mídia. Curiosamente, o patrocinador do estudo era... um grupo local (filantrópico...) que promovia sua cadeia de escolas preparatórias...

 

 

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