Foto: ScarpaReginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.

New York e o Bronx. Colapso social e políticas de resistência (II)

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Ilustra: Luppa SilvaComo o leitor deve lembrar, dissemos no primeiro artigo desta série que o colapso social do South Bronx ocorreu antes da destruição física. A pobreza e os velhos edifícios não levam inevitavelmente ao crime, à depredação. Elas existiam antes, sem esse desdobramento, necessariamente. A cidade mostrava, contudo, ser incapaz de conter o processo.

O clima de “desespero psíquico” aparecia nos relatos dos residentes. Ele iam a um supermercado num dia, no dia seguinte ele estava fechado. Amigos e parentes da mesma rua praticamente desapareciam, mudavam, partiam sabe-se lá para onde.

Alguns proprietários utilizavam os seus imóveis sem uso para “armazenar riqueza”, especulavam com sua venda para o governo, utilizavam a propriedade como garantia para obter créditos e hipotecas utilizados para outros fins. Capturavam o dinheiro, davam no pé e deixavam uma cidade fantasma atrás de si.

Apareceu logo um fenômeno trágico – e exemplo extremo desse comportamento predatório.  Os contratos de seguro contra incêndio de baixo valor se tornaram frequentes nos anos 1970, estimulados por varias facilidades legais. Muitos investidores compraram edifícios de apartamentos no Bronx com o objetivo expresso de... queimá-los. You can believe!

O Bronx ganhou o apelido de Fort Apache (era um filme com Paul Newman). E virou um dos centros da chamada Guerra contra a Pobreza, do governo Lyndon Johnson, um programa que distribuía fundos para serviços sociais, desenvolvimento econômico, educação e treinamento, através de redes de grupos comunitários organizados.

Mas nem tudo fluía exatamente como devia ser, nessa “guerra contra a pobreza”, que mais tarde se transformaria em guerra contra os pobres. Afinal, algumas desigualdades eram fundas, estruturais, o programa federal mal as arranhava. Uma dessas desigualdades é o financiamento das escolas elementares e médias – basicamente dependentes das taxas locais (do distrito, não do município). Os livros de Jonathan Kozol relatam alguns desses dramas das escolas sub-financiadas do Bronx.

A demografia do Bronx evoluía cada vez mais para se transformar em um gueto de minorias visadas. Veja a tabela de Gonzalez:

Reprodução

Em 2000, do total de 644 mil hispânicos, 319 mil eram porto-riquenhos e 133 mil eram dominicanos.

Nos últimos dez anos, a região foi acossada por uma nova onda de construções. Muitos conjuntos de moradia foram ocupando as áreas ainda vazias – ou derrubando velhos e pequenos imóveis, para construir grandes conjuntos de apartamentos. Ainda que apelidados de affordable, o problema era que tipo de significado se dava a essa “acessibilidade”. De fato, uma nova elitização de pedaços do South Bronx produzia sinais contraditórios. Por um lado, empurrando mais gente de baixa renda para mais longe dos terminais de acesso (metrô e ônibus). Alugueis e preços sobem nas áreas mais centrais. De outro lado, novos empregos. Na construção e, depois, nos serviços gerados para novos moradores – comércio e serviços.

Aqui vale a pena referir o papel do Community Colege local, uma unidade da City University (CUNY). O Hostos College nasceu com uma cara muito própria – e que o marca ainda hoje. Uma aspiração de imigrantes latinos – de Porto Rico e, principalmente, da República Dominicana. Uma estória heroica associada à ideia do “sonho americano”. E o college nunca perdeu essa bússola. O college foi afirmando sua existência e sua identidade em sucessivas campanhas.

Posto diante do desafio de uma população carente, no rincão mais pobre de Gottan City, o Hostos reinventou as formas de acesso e garantia de permanência – para estudantes latinos e negros vindos de escolas públicas precárias. E inventou, também, formas de prover educação para aqueles que não estavam prontos para o ensino superior. Daí nasceu sua divisão de Educação Contínua, que tive a oportunidade de visitar em 2018. A divisão oferece cursos rápidos de formação de força de trabalho de nível elementar e médio – eletricistas, encanadores, auxiliares de enfermagem, operadores de equipamentos médicos e assim por diante. Aí se realizam também atividades de suporte para quem não tem o certificado de ensino médio, mas quer obtê-lo através de exames especiais (similares ao madureza ou supletivo brasileiros). E ali se realizam programas que visam, apenas, melhorar a vida de quem acaba de chegar ao novo país – como os cursos de Inglês como Segundo Idioma (ESL). Na minha visita à divisão, Carlos Molina, o diretor, e o professor Peter Mertens contaram, com entusiasmo, o crescimento das atividades – que hoje atingem 10% do total de estudantes do instituto. Além disso, a divisão tem um Centro de trabalho com entidades sem fins lucrativos (CBNP), dirigida por Eileen Newman, que coordena atividades de treinamento de lideranças locais para operar nesse campo. Pessoas que aprendem a organizar grupos e associações, a levantar recursos, programar atividades, administrar orçamentos, falar em público.

Foram as atividades dessa divisão que me levaram a fazer o levantamento das informações acima, sobre o South Bronx. Os desafios do community college só podiam ser entendidos dentro da realidade dramática desta área pobre no coração da riqueza americana.

Olhar para a história do Bronx, em certa medida, é meio que sintetizar algumas das mais fortes contradições da sociedade norte-americana. Mas talvez valha a pena o leitor brasileiro prestar atenção nessa estória com um dos olhos, deixando o outro se virar para o Brasil. Quem sabe encontre inspiração para pensar em muita coisa que temos debaixo de nossos próprios tapetes. Mal comparando – mas talvez sugerindo mais atenção –, a enorme rede de 1.200 community colleges, distribuídos pelo país em mais de 1.600 pontos, talvez pudesse ser inspiração para atividades dos nossos institutos federais, que se multiplicaram nos últimos doze anos. Mas isso é uma outra estória, que fica para outra vez.

 

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