Foto: ScarpaReginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.

A educação dos eleitos e o que resta para o resto – dilemas não apenas norte-americanos

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Ilustra: Luppa Silva Os Estados Unidos possuem um ensino superior admirado, imitado e invejado. Procurei descrevê-lo com algum detalhe em meu livro – Educação Superior nos Estados Unidos – história e estrutura (Editora Unesp, 2015). Nos últimos vinte anos, porém, a liderança acadêmica daquele país vem sendo disputada pelos competidores europeus e asiáticos. Os americanos ainda ocupam o primeiro lugar no pódio, mas já não estão sozinhos nas primeiras fileiras.

Tenho tratado desses desafios e impasses em outros textos. Neste artigo vou mencionar apenas um deles, a dificuldade de passar da extraordinária massificação do acesso para a melhora nos resultados, ou seja no terreno que se pode chamar de sucesso.

Antes, porém, para contextualizar essa questão, convém reconstituir alguns momentos na espetacular trajetória desse sistema educativo. Alguns momentos marcantes da educação americana mostram como ela antecipou o que outros países só fariam décadas depois. A saga iniciou com o chamado “Common School movement” dos anos 1840s e 1850s -  levando à universalização da escola elementar, já no final do século XIX.  Depois, houve o movimento em prol da High School “compreensiva”, 1910 a 1940, levando a uma quase universalização da educação secundária.

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Community College no Estado do Tennessee, EUA  | Foto: Reprodução | Getty Images

Enfim, a massificação do ensino superior, marcado por dois grandes eventos, duas intervenções decisivas do governo federal. Primeiro, a lei de doação de terras do século XIX – com a criação dos Land-Grant Colleges e Land-Grant Universities (1862, reeditado em 1890). Depois, o G.I. Bill (1945), nome pelo qual é conhecido o plano que visava reincorporar os desmobilizados da guerra. Os formuladores esperavam a adesão de duzentos ou trezentos mil “veteranos”, na rubrica ensino superior. Mas foram mais de 2 milhões. No final dos anos 1940, o sistema de ensino superior tinha dobrado de tamanho e tinha mudado sua característica, já era majoritariamente formado por escolas públicas (colleges e universidades). Em 1949, metade dos estudantes do ensino superior eram bolsistas do GI Bill!

Para concluir a massificação, nos anos 1960 vieram os programas de Lyndon B. Johnson (A Grande Sociedade), que ajudaram a expandir terrivelmente os Community Colleges, o ensino superior de curta duração (two-year colleges). Essas instituições peculiares incorporaram enormes contingentes de minorias étnicas, principalmente negros e latinos.

O movimento dos impressionantes números pode ser visualizado no gráfico abaixo, adaptado de ensaio de Martin Trow (Twentieth-Century Higher Education: Elite to Mass to Universal, Johns Hopkins University Press, Baltimore, 2010)

Foto: Reprodução

Essa expansão era parte de uma escalada de otimismo, de crescimento da opulência e de relativa redução de desigualdades, sobretudo no período 1945-1970, um período róseo para o chamado American Dream, a expectativa, real ou ilusória, de que havia um caminho aberto ao sucesso para todos os que nasciam ou cresciam na “América”. Uma parte do American Dream era a obtenção do diploma de ensino superior e da conquista de emprego correspondente a esse diploma, com bons salários e prestígio social. College for All (CA) não era apenas um caminho. Era, aparentemente, o “caminho único”. A high school, a escola média compreensiva, deixava ser o ticket de entrada no mundo do sucesso.

Outros caminhos para o sucesso?

Salvo engano, foi James Rosenbaum que primeiro utilizou esse termo, em 2011, com o livro Beyond College for All - Beyond College for All: Career Paths for the Forgotten Half. E o título já mostrava uma tendência nova: a ideia de que havia alternativas a esse caminho e que elas deveriam ser seriamente consideradas.

É contudo razoável lembrar que a febre do College for All já fora alvo de críticas, anteriormente. Essa ideia-força – que foi crescendo depois da Segunda Guerra - teve altos e baixos depois do final dos anos 1960 – junto com as oscilações do conjunto do sonho. Nos anos 1970, a demanda pelos bacharelados arrefeceu e declinou seu diferencial de salários, isto é, o que ganhavam a mais, comparados com os trabalhadores detentores de certificados de ensino médio, apenas.

Nessa conjuntura, começou a vicejar uma literatura crítica ao College for All. Alguns mencionavam a “sobre-educação” dos americanos, outros, a ilusão ou má relação custo/benefício do bacharelado.  Alguns altos e baixos atingiram o CA, em suma. Mas no começo do novo milênio a crítica voltou a crescer, agora mais robustecida pela sugestão de alternativas mais claras, tais como aquelas sugeridas nos livro de  Kenneth Carter Gray e Edwin L. Herr – Other Ways to Win: Creating Alternatives for High School Graduates  (Corwin Press, Thousand Oaks-CA, 2006) - e de Kevin Fleming  - Redefining the Goal: The True Path to Career Readiness in the 21st Century (CreateSpace Platform, 2016).

Tento representar, no diagrama abaixo, uma das ideias centrais do diagnóstico traçado no livro de Gray e Herr.

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Os dados são oficiais (Depto. de Educação). Cada quadrícula representa 5% das crianças e adolescentes (escolares). Apenas 10% deles podem ser considerados  "vencedores" se o padrão for este: tirar um diploma de bacharelado (qualquer) e obter um bom emprego no campo desse diploma. O resto é feito de "perdedores". Bom, o problema é o tempo e o dinheiro que se perdeu para produzir tantos perdedores. Sem contar o gasto em auto-estima. Ou seja, na opinião dos críticos, é preciso ter uma politica melhor para esses 90%, não apenas despejar nas suas cabeças que é este o caminho. Se ficarmos na ilusão do "universidade para todos", dizem eles, estamos levando em conta e estimulando corretamente apenas os 10% que “vencem”.

O diagnóstico desemboca em uma receita: a difusão de “outros caminhos para vencer”. Basicamente, esses outros caminhos são a escolha de educação técnica pós-secundária, aquela que, por exemplo, oferecem os community colleges em seus programas vocacionais. Dada a debilidade dos programas norte-americanos de formação de força de trabalho – comparados, por exemplo, com seus competidores europeus - , a proposta tem encontrado razoável repercussão entre empresários e analistas de políticas. Contudo, é bem menos acolhida entre estudantes e suas famílias, que ainda sonham com o College e o emprego bem pago e “na carreira”.

A recusa dos “other ways” é ainda reforçada pelo fato de que, em geral, o ensino superior “alternativo” é, com muita frequência, aquele que pensamos “para os filhos dos outros”. Na sociedade americana, diferentemente da alemã ou da sueca, por exemplo, é enorme a distância entre o trabalhador “blue collar”, mesmo altamente qualificado, e os engenheiros e executivos. Tanto no que diz respeito ao salário quanto ao prestígio. Assim, a promessa do College for All segue sendo ouvida, ainda que manifestamente condenada ao fracasso. Haverá modo de ser diferente? Esse é um problema exclusiva ou tipicamente americano? Bom, não esperem deste artigo resposta a tais questões. Enunciá-las já nos parece relevante, por enquanto.

 

 

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