Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Vários pesos, muitas medidas

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Ilustração: Luppa SilvaAo entrar no ensino superior, estudantes de engenharia ou ciências exatas se deparam com a disciplina Física I, que quase sempre começa com uma aula (ou meia aula) sobre grandezas físicas, suas medidas e o sistema de unidades para essas medidas, o tal sistema internacional com seu metro, quilograma, segundo e etc. Se aparecem na primeira aula, podemos intuir que são fundamentais na ciência e nós sempre descontamos pontos nas provas, quando os estudantes se esquecem de indicar as unidades nas respostas, afinal unidades são importantes. Mas, se ignoram tanto, das duas, uma: ou nós professores não conseguimos passar essa importância, ou as unidades já estão tão naturalizadas, que não parece necessário indicá-las. É como chamar alguém por assovio e não pelo nome. Acho que ambas as hipóteses são se materializam: o metro e seus companheiros parecem existir desde sempre e pouca gente se lembra de que são construções sociais relativamente recentes. Por outro lado, a aula sobre o assunto costuma ser muito enfadonha, embora o tema em si merecesse uma série da Netflix. Coloco dessa forma, pois, em novembro de 2018, a 26ª Conferência Geral de Pesos e Medidas votou por unanimidade a redefinição do quilograma: empolgante episódio final da última temporada (por enquanto). Resumo abaixo o que poderia ser esta série.


1ª temporada: das categorias de pensamento à Revolução Francesa

O metro e o segundo são unidades de medidas no espaço e de tempo, categorias de pensamento bem anteriores à ciência. Empresto de segunda mão as ideias de Emile Durkheim (1858-1917, citado frequentemente como o pai da Sociologia): “portanto foram as religiões que, primordialmente, nas sociedades primitivas, formaram a base do conhecimento, fornecendo àqueles povos as categorias fundamentais do pensamento, tais como as de espaço, tempo, gênero, força, etc.” [I]. Quantificar essas categorias não faz parte de todas as culturas, mas tem papel primordial na nossa. Unidades de medida para comprimento, tempo e massa são essenciais para a construção e demarcação de impérios e o comércio em suas terras, por isso eram geralmente decretadas por reis e redecretadas pelos sucessores; precisavam ser convertidas, quando se atravessasse fronteiras, o que não era um grande problema, pois eram raras a comunicação e locomoção fora da região onde cada unidade diferente era utilizada. Soa estranho para quem se habitua ao metro e ao quilo desde criança, mas não é muito diferente das unidades monetárias: ainda hoje, em geral, cada país tem a sua.

Como a ciência entra nessa história? O renascimento e a revolução científica, bem como um crescente comércio internacional, expuseram a dificuldade desses “provincianismos das medidas”, mas as mudanças foram lentas. E só no século XVII a ideia do sistema métrico (nossos queridos metro e quilograma, sem falar no segundo) apareceu [II]. Aparentemente, a primeira sugestão apareceu na obra An Essay towards a Real Character, and a Philosophical Language de John Willkins de 1668. Nela o autor propõe uma nova língua universal, imaginada para facilitar a comunicação internacional entre eruditos, em substituição à língua franca de então, o latim. Sobre essa ideia Jorge Luis Borges escreveu um pequeno ensaio, que recomendo [III]. A informação de que a proposta do sistema decimal também se encontrava ali eu achei em um verbete na Wikipédia sobre sistemas de unidades [IV] e com apenas uma referência adicional. Em ciência (e jornalismo, ou qualquer atividade comprometida com informação correta) isso é insuficiente, assim era necessário ir à fonte original. O livro de Wilkins faz parte do acervo do Internet Archive [V] e nas páginas 191 e 192 (do capítulo VII: “Em relação ao dilema da quantidade. I. Da magnitude. II. Do espaço. III Da medida.”), cujos fac-símiles abaixo ilustram esta coluna, confirma-se a história na Wikipédia.

Reprodução

A proposta de Wilkins era determinar a unidade de comprimento a partir de um experimento: a medida do período de um pêndulo. A unidade de comprimento, o Standard, equivale ao comprimento de um pêndulo com período de dois segundos (aproximadamente 99,5 cm). Logo em seguida ele propõe que o Standard seria dividido em unidades menores equivalentes a décimos da maior e em unidades maiores multiplicados por dez. Está lá na ilustração, bem como definições para medidas de volume e a sugestão para definir unidade de massa.

Depois de Wilkins apareceram várias outras propostas, fortalecendo a ideia do metro e do sistema decimal, mas o estabelecimento de um sistema de unidades métrico e decimal veio apenas com a Revolução Francesa. Segundo o verbete da Wikipédia: “Assembleia Nacional Constituinte Francesa pediu para Academia Francesa de Ciências criar um padrão de medidas que fosse invariável, não sendo suscetível a corrupção. Em 4 de agosto (1789), três semanas após a tomada da Bastilha, a nobreza abriu mão de seus privilégios, incluindo o direito de controlar as medidas locais”. O padrão de medidas invariável acabou sendo dado pelo metro, o segundo e o grama. Esse sistema métrico tinha mais a ver com a Política do que com a Física, mas as unidades de medida eram exatamente as necessárias para medir as grandezas físicas da época, as da Mecânica Clássica de Newton, que fornecera também a primeira constante fundamental, a da gravitação, invariável não apenas na França ou no resto da Europa e suas colônias, mas em todo universo.


2ª temporada: do crescimento da Física ao Sistema Internacional de Unidades

As definições revolucionárias para o metro, o quilo (na verdade, o grama) e o segundo, apesar de precisas para a época, não eram práticas para serem usadas para calibrar as réguas, balanças e relógios. Em particular, o metro: um décimo milionésimo da distância entre o polo norte e a linha do Equador, através do meridiano que passa por Dunquerque e Barcelona. Por isso pensou-se em uma solução que logo seria um novo problema: um protótipo, uma barra de platina com irídio de exato um metro de comprimento, que com o passar do tempo foi ficando mais curta, além de ser difícil de ser copiada (não dá para viajar a Paris a toda hora para calibrar as réguas do continente americano, por exemplo). Esse protótipo é de 1799, mas só em 1867 acordou-se na sua substituição por outra barra, mais comprida, com o metro determinado por marcas. Mas a história do metro mestre não parou por aí.

Enquanto isso, o eletromagnetismo e a termodinâmica, que na época da Revolução Francesa ainda engatinhavam, chegaram à maturidade ao longo do século XIX, ensejando aos poucos novas constantes fundamentais relacionadas aos seus fenômenos, mas deixando para o século XX as grandes surpresas. Ainda não surgira a ideia de relacionar as unidades de medida a essas constantes e nem novas grandezas foram acrescentadas ao sistema métrico, apesar dos progressos eletromagnéticos e termodinâmicos. No entanto, dois fatos merecem destaque nessa temporada. Em 1875 foi assinada por 17 países a “Convenção do Metro”, que definiu, entre outras organizações, a Conferência Geral de Pesos e Medidas, cuja edição de 2018 motivou essa coluna. E, em 1889, ao mesmo tempo em que foi proposto um novo protótipo para o metro padrão, a definição do grama da Revolução Francesa, foi também substituída por um protótipo, o quilograma padrão.

Assim, foi preciso esperar o século XX para que o sistema métrico crescesse: em 1901 foi proposta a inclusão de alguma unidade de medida usada no eletromagnetismo, já que o metro, o quilo e o segundo não dão conta de medir o que acontece com as correntes elétricas. Pontapé inicial para o Sistema Internacional de Unidades. E o Ampère, unidade fundamental de corrente elétrica, foi admitida ao clube do metro apenas em 1946. Seguiram-se o Kelvin (unidade de medida de temperatura) em 1954 (finalmente a boa e velha termodinâmica é contemplada), junto com a unidade de medida de intensidade luminosa. O último membro desse grupo seleto, o sétimo, foi incluído apenas em 1971, após longas discussões entre físicos e químicos: trata-se do Mol, unidade básica de medida de quantidade de matéria [VI].

Ao mesmo tempo, crescia outro clube, o das constantes fundamentais da natureza, passando a fazer companhia à solitária constante universal da gravitação: a carga elétrica fundamental (que é a do elétron), a velocidade da luz (que também não varia, não importa o referencial, presente da teoria da relatividade ao mundo das medidas) e a constante de Planck (impressão digital da mecânica quântica). A termodinâmica também contribuiu com a constante de Boltzmann e a química (embora com muita física pelo meio) com a constante de Avogadro (que é o número de átomos de um mol – unidade de quantidade de matéria – de uma dada substância) [VII].

Dada a importância dessas constantes fundamentais, elas foram sendo medidas com precisão cada vez maior, até que em 1983 o metro foi redefinido como sendo a distância percorrida pela luz em 1/299.792.458 de segundo. Obviamente que podemos medir o tempo com extrema precisão [VIII] e o valor (também uma medida superprecisa) da velocidade da luz foi assim definido como exato! Grande golpe (num bom sentido), que se completaria nos anos seguintes, quando os valores medidos para outras constantes fundamentais também foram definidos como exatos. Qual é o alcance do golpe? Todas as unidades de medida poderiam agora ser definidas por meio de experimentos e os valores agora declarados exatos das constantes fundamentais. Mas não foi tão simples assim, o grande problema era o que fazer ainda com o quilograma padrão, guardado desde o século XIX em um cofre do Escritório Internacional de Pesos e Medidas na França.


3ª temporada: a consagração de Wilkins e da Mecânica Quântica

A essa altura da história, qual o papel da primeira das constantes universais, assinatura da primeira grande teoria da física moderna, a gravitação universa? Isaac Newton demonstrou que o famoso G seria uma constante, mas medi-la em laboratório só foi possível 70 anos depois de seu falecimento. Experimento difícil e, pior, impreciso. Até hoje é assim [IX], e o erro de algumas partes por milhão não é nem de longe tão preciso quanto as medidas de outras constantes[x]. Qual seria essa precisão? O erro tem que ser menor do que a sua chance de ganhar na mega-sena!

Voltando ao quilograma, como defini-lo a partir de um experimento, ou seja, realizar a proposta de Willkins e envolvendo constantes fundamentais com valores definidos como exatos? A aventura começa com a invenção de uma balança em 1975, que hoje leva o nome de seu inventor, Bryan Kibble [XI]. Essa balança mede um “quilograma elétrico”, que nada mais quer dizer do que o peso de um objeto sendo contrabalançado por uma força eletromagnética. Em resumo, trocamos o peso por medidas de corrente e voltagem elétricas. A balança é engenhosa, pois faz duas medidas, que eliminam a dependência do que não pode ser medido com muita precisão. E assim o peso (massa) é relacionado com duas constantes exatas: a constante de Josephson (Prêmio Nobel de 1973) e a constante de Von Klitzing (Prêmio Nobel de 1985). Ambas são razões entre constantes fundamentais: carga do elétron e a constante de Planck, medidas com uma baita precisão por outros experimentos.

Reprodução

A nova definição do quilograma completa a mandala (ilustração acima) que conecta todas as unidades do Sistema universal (os símbolos coloridos) a constantes fundamentais (os símbolos externos). A 3ª temporada da nossa série mostra como uma aventura que começou com a Revolução Francesa termina mostrando como a mecânica quântica ajudou a definir o nosso bom e velho quilo.

 



[I] “A sociologia do conhecimento de E. Durkheim e do programa forte”, Tiago Ribeiro Duarte, in Investigações contemporâneas em estudos sociais da ciência e tecnologia, orgs.: Adriano Premebida, Fabrício Monteiro Alves e Tiago Ribeiro Duarte, FAPEAM, Paco Editorial , 2015.

[II] Quanto ao tempo, a ideia do dia ser dividido em 24 horas remonta ao antigo Egito. A divisão em 60 partes era útil geométrica e astronomicamente, primeiro em minutos (partes minutae prima) e depois uma segunda divisão (partes minutae secundae, daí o nome segundo) de cada minuto novamente em 60 partes. No entanto, o primeiro relógio com precisão suficiente para que o segundo tivesse algum sentido prático apareceu também apenas no final do século XVII

[III] https://2serieintegralpaulinia.files.wordpress.com/2018/02/jorge-luis-borges-o-idioma-analc3adtico-de-john-wilkins.pdf

[IV] https://pt.wikipedia.org/wiki/Sistema_de_unidades

[V] https://archive.org/details/AnEssayTowardsARealCharacterAndAPhilosophicalLanguage/page/n7

[VI] https://www.bipm.org/en/measurement-units/history-si/

[VII] Cada uma dessas constantes merece um texto à parte, mas para o leitor leigo em Física não ficar completamente alheio do que existe por trás dessas constantes, recomendo a Wikipédia:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Constante_gravitacional_universal

https://pt.wikipedia.org/wiki/Velocidade_da_luz

https://pt.wikipedia.org/wiki/Constante_de_Planck

https://pt.wikipedia.org/wiki/Constante_de_Boltzmann

https://pt.wikipedia.org/wiki/Constante_de_Avogadro

[VIII] Aqui eu me lembro de ter esquecido de mencionar uma constante fundamental para a definição do segundo: a frequência de transição da estrutura hiperfina, mas aí a coisa se complica além do necessário. Não mencionei também a eficácia luminosa, que não tem importância na terceira temporada.

[IX] https://physicsworld.com/a/gravitational-constant-mystery-deepens-with-new-precision-measurements/

[X] Essa precisão, no entanto, é mais que suficiente para garantir que a Terra é redonda mesmo, e não plana.

[XI] https://en.wikipedia.org/wiki/Kibble_balance

 

 

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