Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Tabagismo, ciência, língua, ideologia e omissão

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Ilustração: Luppa SilvaHá alguns anos li um dos inúmeros artigos sobre a importância de escrever artigos científicos em inglês, a língua franca da ciência, pois isso que garantiria uma maior divulgação da pesquisa e, consequentemente, aumentaria seu impacto. O movimento de adesão à língua franca é assunto corrente ao mesmo tempo em que resistências são recorrentes. O tema desta coluna é outro, mas tem origem em um argumento apresentado neste artigo lido há tempos. O texto proclama que não é novidade que a proficiência em inglês é indispensável para pesquisadores em todas as áreas do conhecimento, afirmando que isso já era verdade nos anos 1930. O exemplo dado era de pesquisadores alemães publicando em seu idioma estudos que relacionavam o fumo ao câncer de pulmão: “devido à barreira do idioma, os dados mantiveram-se praticamente desconhecidos até os anos 1960, quando britânicos e norte-americanos chegaram à mesma correlação.”

O exemplo é estranho, pois nos anos 30 do século passado o inglês ainda não havia se afirmado como língua franca e, dada a época, a barreira mais provável a esses estudos não seria linguística, mas ideológica, afinal fariam parte do esforço científico nazista. Ou seja, valia a pena investigar um pouco o assunto, que se revela incômodo e passou a ser discutido apenas na última década do século passado por historiadores e epidemiologistas: os estudos alemães (que começaram antes da era nazista) subsidiaram a agressiva campanha antitabagista na Alemanha nazista.

A política antitabagista nazista era baseada em campanhas publicitárias, aumento de impostos sobre cigarros, pesquisa científica e crescentes proibições de locais para consumo de tabaco. A partir de 1938 foi sendo paulatinamente proibido fumar em repartições públicas, hospitais, bondes e trens. Fumar em público foi proibido para menores de 18 anos em 1943. Robert Proctor, em seu artigo “The anti-tobacco campaign of the Nazis: a little known aspect of public health in Germany, 1933-45” [I], menciona que o consumo de tabaco cresceu nos primeiros anos do regime nazista, talvez uma possível resistência cultural da população. De um modo geral, parece que o antitabagismo na Alemanha foi fortemente associado ao fascismo por muito tempo no pós-guerra e Proctor conclui seu artigo de 1996 levantando uma lebre: “A ciência e as políticas antitabagistas daquela era não atraíram muita atenção possivelmente por que a motivação desse movimento (salvaguardar o povo alemão contra “venenos raciais”) foi vinculada à ideologia nazista como um todo. Isso não significa, no entanto, que movimentos antitabagistas sejam inerentemente fascistas; significa simplesmente que memórias científicas são frequentemente obscurecidas... e que a história política da ciência é ocasionalmente menos agradável do que desejamos.” Além disso, é bom lembrar a seletividade com que essas questões foram tratadas: os norte-americanos não tiveram nenhum problema, por exemplo, em “desnazificar” rapidamente o coronel da SS Wernher von Braun, que se tornou figura chave do programa espacial  americano.

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Campanha antitabagista: governo nazista aumentou impostos sobre cigarros e investiu em pesquisas científicas

Voltando ao terreno da pesquisa científica, na década de 1920 havia algumas hipóteses concorrentes para tentar explicar o aumento notável da incidência de câncer pulmonar a partir de 1900. Uma dessas hipóteses atribuía esse aumento ao aumento de vias pavimentadas (efeito do asfalto) e outra apontava para os gases da exaustão dos carros, cujo número crescia rapidamente. Um trabalho considerado por muitos como seminal, por focar no hábito de fumar de uma série de pacientes com câncer, foi publicado ainda na República de Weimar por E. Schönherr em 1928. Nessa mesma década, uma sequência de trabalhos desenvolvida por Fritz Lickint deixou pouca margem de dúvida para o fumo como causa majoritária de câncer de pulmão. Essas pesquisas continuaram a ser desenvolvidas no período nazista e, segundo o artigo “Smoking and health promotion in Nazi Germany” [II], o que é considerado o primeiro estudo controlado sobre o assunto foi realizado por Franz Müller em 1939. Em 1943 teria surgido na Alemanha o primeiro estudo clínico controlado formal sobre fumo e câncer de pulmão, uma “investigação convincente, na qual E. Schairer e E. Schöniger mostraram um sofisticado entendimento dos vieses que poderiam distorcer os resultados”.

Isso encerraria um capítulo dessa história com um reconhecimento parcial de trabalhos pioneiros no bojo de uma análise da ciência e de políticas de saúde pública em um dado país em um dado período. A relação causal entre fumar e câncer de pulmão é creditada normalmente a pesquisadores britânicos e norte-americanos, entre eles Richard Doll, cujo trabalho junto com Bradford Hill sobre essa relação foi publicado em 1950. É Doll que em 2001 comenta que “o trabalho de Schairer e Schöninger marca uma importante fase no desenvolvimento do conhecimento sobre os efeitos danosos do tabaco e não recebeu até agora o reconhecimento merecido. No entanto, seria errado afirmar que eles provaram, sem sobra de dúvida, que fumar era uma importante causa da doença, uma conclusão que os próprios autores nunca reivindicaram.” [III]

Como começaria um novo capítulo dessa história? Dois dos autores do artigo de 1994 comentado acima publicam em 2005 uma carta no “Bulletin of the World Health Organization” [IV] em que se perguntam “por que os trabalhos pioneiros (no caso os alemães comentados acima) são consistentemente ignorados?” Nessa carta, Smith e Egger mencionam um artigo de revisão (inglês) sobre o tema escrito em 1929 acrescentando que “revisões já eram publicadas 20 anos antes da “descoberta” de 1950. O problema central talvez seja esse: como evidências claras sobre um problema de saúde pública importante foi ignorado por 20 anos? Na mesma toada da carta de Smith e Egger, Nathaniel Dostrosky, no artigo “Anti Smoking initiatives in Nazi Germany: Research and Public Policy”, credita também a ignorância desses trabalhos à sua vinculação ao nazismo, acrescentando evidências de que muitos desses cientistas não seriam nazistas sendo, às vezes, alvo de investigação pelas autoridades da época.

Por outro lado, Alfredo Morabia dedicou-se a desqualificar os mesmos trabalhos do ponto de vista científico (elogiados por Proctor, Smith e outros na década anterior).  Sobre o trabalho de Müller de 1939 ele comenta “a qualidade da comparação entre grupos foi modesta e não acrescentou novo conhecimento qualitativo a trabalhos anteriores.” [V] No mesmo ano  Morabia publica uma avaliação técnica do artigo de Schairer e Schoeniger de 1943 no Journal of Epidemiology & Community Health [VI]. O argumento de Morabia é que considerações ideológicas em vez de técnicas dominaram a discussão sobre se os cientistas na Alemanha nazista fizeram pesquisas adequadas. Morabia assevera que é essa análise técnica que deve preponderar. Seu artigo é longo e a conclusão é que o artigo de Schairer e Schöniger era falho metodologicamente e não trazia novas evidências ao problema. Curiosamente acrescenta que o desconhecimento desses trabalhos se deve ao fato de terem sido publicados em alemão (o que é desmentido por Richard Doll em seu comentário mencionado aqui) e só recentemente (no presente século) traduzidos para o inglês. Esse argumento linguístico talvez seja a origem do exemplo no artigo mencionado no início dessa coluna, mas de qualquer forma a versão traduzida para o inglês vem sendo citada, enquanto a original desapareceu da Web of Science.

A questão parece estar ainda em aberto e recentemente o pesquisador Peter Lee contemporiza da seguinte forma: “embora estudos clínicos controlados tenham sido realizados anteriormente na Alemanha, só após os estudos conduzidos no Reino Unido e nos Estados Unidos publicados nos anos 1950 é que foi dada atenção à possibilidade de que fumar poderia causar câncer de pulmão” [VII]. Dois aspectos, no entanto, continuam chamando a atenção. Por que alguns estudos ficaram até 20 anos ignorados? O argumento de que eram fracos metodologicamente não procede, pois as boas práticas de pesquisa recomendam exatamente a reprodução e verificação de resultados [VIII], que no caso demoraram até duas décadas como denuncia Smith[ii]. Morabia, em vez de justificar a ignorância desses trabalhos, deveria ter lamentado que não tenham sido reproduzidos na época, dada a importância da hipótese. É debate de cachorro grande: Morabia, que justifica, é editor da AJPH (American Journal of Public Health) e George Smith, que insinua que a comunidade científica teria se omitido, é editor do International Journal of Epidemiology.

Com o fim da Segunda Guerra, a campanha nazista antitabagista foi desmantelada, o que foi conveniente para as empresas tabagistas norte-americanas, pois lucraram bastante, tanto com o contrabando, quanto com o Plano Marshall na Alemanha ano zero e nos anos vindouros. O papel dessa indústria nessa história a partir de 1950 é apresentada por Tim Harford, colunista do Financial Times, que tem o mesmo Richard Proctor como fonte para a coluna “The problem with facts” [IX], na qual discute a produção intencional da ignorância: “Os fatos relativos ao tabagismo – fatos indiscutíveis, fornecidos por fontes de valor inquestionável – não foram os vencedores do embate. Os fatos incontestáveis foram contestados. As fontes inquestionáveis foram questionadas. O que se descobriu é que os fatos são importantes, mas não garantem a vitória nesse tipo de discussão”. Uma vez esquecidos os trabalhos de 1928 e 1929, a refundação desse tema veio em 1950 com Doll e colegas e apenas em 1957 o Serviço Público de Saúde dos Estados Unidos declarou sua posição oficial de que “a evidência aponta para uma relação causal entre fumar e câncer de pulmão”. Poderia ter sido 20 anos antes.

 


 

[I] https://www.bmj.com/content/313/7070/1450

[II] de George D. Smith, Sabine A. Ströbele e Mathias Egger, publicado no Journal of Epidemiology and Community Health (1994), vol. 48, pp 220-223.

[III] https://academic.oup.com/ije/article/30/1/30/619022

[IV] https://www.scielosp.org/article/bwho/2005.v83n10/799-800/

[V] publicado em Prev. Med. (2012), vol. 55 pp. 171-177.

[VI] http://jech.bmj.com/content/67/3/208.short

[VII] The Epidemiology of Tobacco and Lung Cancer: Some Conclusions from a Lifetime of Research (acesso aberto por esse nome no Google)

[VIII] http://revistapesquisa.fapesp.br/2018/03/20/para-prevenir-novas-crises/?cat=boas-praticas

[IX] https://www.ft.com/content/eef2e2f8-0383-11e7-ace0-1ce02ef0def9

 

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