Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Por uma etnografia das universidades

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Foto: ReproduçãoO título inicialmente imaginado seria “Estado destina 5 bilhões de reais para uma nova universidade”, que é aproximadamente a manchete de matéria publicada no início de julho no portal do Der Spiegel [I]. O Estado em questão é a Baviera, cujo chefe de governo anunciou que a decisão é histórica e visa não só o desenvolvimento da cidade sede da nova universidade, Nürnberg, mas é importante para a ciência e a economia de toda a região. Os planos são para que as aulas comecem em 2025 e o texto fornece alguns dados adicionais. A Universidade Técnica de Nürnberg deverá ter 6 mil estudantes e entre 200 a 240 docentes. Além disso, deverá ter um modelo curricular inédito na Alemanha, com 20% do conteúdo em ciências humanas e sociais. De acordo com a equivalente local à secretária estadual para ciência, “não queremos ‘tecnonerds’ unilaterais e sim expertos técnicos com habilidades sociais”.

A matéria é auspiciosa, pois é bom ter notícias de um Estado investindo em uma nova universidade (bem como na ampliação de uma mais antiga nos arredores da mesma cidade, para a qual seriam destinados o equivalente a 6 bilhões de reais). É interessante também observar o crescimento da atenção às humanidades na formação em carreiras técnicas. É o que vem acontecendo em outros lugares, incluindo a Faculdade de Ciências Aplicadas, FCA, da Unicamp, onde o núcleo de disciplinas em ciências humanas e sociais é mais modesto, variando entre 10% e 15% dos currículos, dependendo do curso. A nova universidade alemã teria também uma relação discente/docente (alta, para a percepção corrente) semelhante à da FCA.

Estabelecer comparações como essas é sempre tentador, mas elas podem levar a argumentos que se verificam frágeis, como de vez em quando sou lembrado por Flávio Ferreira, atento estudioso do tema e a quem agradeço a leitura antecipada e sugestões no que segue. Cada universidade está inserida em um contexto social próprio e tem sua história única, por mais universalizada que seja essa instituição quase milenar. E o sinal de alerta para isso nessa pequena matéria do Der Spiegel veio no anúncio de que a nova universidade na terra de Albrecht Dürer propõe “um pensar universitário completamente novo”. No conjunto das propostas a organização da universidade não seria baseada em cátedras e sim em departamentos, como na Universidade Técnica de Munique. A maioria das universidades alemãs ainda são estruturadas em cátedras, sistema que no Brasil foi substituído por departamentos há 50 anos, os quais, por sua vez, passam a ser superados em várias universidades pelo mundo, inclusive na FCA. É necessário, portanto, tentar um olhar mais aprofundado no sistema de ensino superior bávaro. Além das 30 “universidades de ciências aplicadas” (Fachhochschulen) e 10 academias de arte (Kunsthochschulen), a maioria delas públicas, o Estado mantém 10 universidades, que poderíamos chamar de multiversidades [II]: universidades modernas e complexas com múltiplos constituintes e missões, sofrendo diferentes pressões.

Foto: Reprodução | theguardian.com | Alamy

Uma rápida busca por dados a respeito da maior delas traz algumas informações tão interessantes quanto intrigantes. A Ludwig Maxmillians Universität tem cerca de 51 mil estudantes para 14 mil funcionários, com um orçamento de um bilhão e 700 milhões de euros, cerca de 7 bilhões de reais. Nesses números há uma discriminação crucial, que aparece até no verbete da Wikipédia: 14 mil funcionários no total, com o Uniklinikum (Hospital Universitário), mas sem o hospital são 6.300. O orçamento dado acima é o total, sem o Uniklinikum são 660 milhões de euros (2,6 bilhões de reais). Outro dado, que coloca uma pulga atrás da orelha, é que, dos 14 mil funcionários, apenas 738 são docentes. No portal da universidade o número atualizado é 762 [III]. Também se verifica que parte dos funcionários está em tempo parcial e o equivalente em tempo integral seria de 7.800 colaboradores. Esses números reforçam o cuidado que devemos ter com dados e indicadores, pois de acordo com os mesmos a relação entre discentes e docentes é de 67 para um. Como a LMU pode ser a melhor universidade alemã, ocupando o 34º lugar no ranking global do Times Higher Education? Voltando às tabelas, os funcionários não docentes são divididos entre técnico-administrativos e científicos (Wissenschafliches Personal) e esses últimos totalizam 5.500 em equivalente de tempo integral. Mas o que seriam esses funcionários colaboradores científicos? Nos anúncios classificados de lá se percebe que são contratos de pesquisa como pós-doutorados, mas nem sempre (também tem ofertas para doutorandos), e em geral as ofertas mencionam atividades didáticas entre as tarefas. Fica a pergunta: quanto da carga didática estaria nas mãos dos colaboradores científicos não docentes? Outra questão é que tal estrutura modifica o financiamento. O Estado (Baviera) cobre 65% do orçamento como nós o conhecemos e as agências que fomentam pesquisa (públicas na maior parte) cobrem boa parte do resto, como o pagamento dos colaboradores científicos.

A LMU tem suas faculdades estruturadas em cátedras, como seria na Universidade Técnica de Munique, já estruturada em departamentos? Busca rápida nos números mais recentes: 40 mil estudantes e 9.595 funcionários, dos quais 545 são professores (73 estudantes por docente?). O orçamento em 2016 foi de cerca de 1 bilhão e 400 milhões de euros: 822 milhões para a universidade e 585 milhões para o hospital universitário. Dos funcionários, mais de 6.000 são funcionários colaboradores científicos. Os anúncios classificados revelam situação semelhante: contratos temporários para pesquisadores incluindo atividades didáticas.  Entre aqueles que ministram aulas estão também os professores adjuntos[iv], que não estão discriminados na brochura de “fatos e dados” aberta ao público, porém, entrando nas páginas dos departamentos lá estão eles, junto com os pós-doutorandos e  os “Junior Fellows”, algo como os Jovens Pesquisadores da FAPESP. Todos eles têm carga didática, segundo o sítio, pelo menos do departamento de Física. E os professores estáveis de dedicação exclusiva? A página web do departamento é bem organizada e pode-se ver a atribuição didática dos professores. Como são muitos, tomei a amostragem mínima, ou seja, um deles. O curso de Física tem a duração de três anos, seguindo o protocolo de Bolonha, quatro disciplinas por semestre.  O professor da minha “amostragem” no último semestre deu aula de Física Experimental Básica (3,5 horas), Tópicos Avançados (2 horas) e compartilhou mais três disciplinas especializadas (com Wissenschafliches Personal) que totalizavam mais seis horas. Ou seja, responsável por uma carga didática de 11,5 horas. Seria interessante conversar com ele sobre como ele divide o tempo, pois, além das aulas ele tem 18 estudantes de doutorado e quatro de mestrado. Como é a formação desses estudantes? Qual é a dinâmica do seu grupo de pesquisa? Quais são as relações em um departamento no qual 107 pessoas cobrem as atividades de ensino, mas apenas 45 são professores estáveis e o resto tem que renovar contratos, às vezes ano a ano? Como são as aulas e o tamanho das turmas? A pergunta sobre o tempo já foi abordada por um antropólogo em uma universidade pública estadunidense [V], mas em universidades com organizações diferentes qual seria a diferença no uso do tempo?

Perguntas semelhantes poderiam ser feitas a respeito de universidades em outros locais, com estruturas, histórias e relações diferentes. E todas são tabeladas nas mesmas classificações (rankings) e não é incomum ouvir opiniões de que devemos subir nessas classificações. Almejando que posição? Aquela ocupada por uma universidade em um contexto social e com cultura e história completamente diferentes? Em geral, quando visitamos essas e outras universidades, não prestamos atenção a esses complexos sistemas e colhemos impressões muito vagas sobre quase todos os aspectos, exceto aqueles ligados única e exclusivamente ao projeto de pesquisa que vamos desenvolver lá. E essas impressões tendem a ser idealizadas. Não tomamos os cuidados para os quais François Hartog chama a atenção em O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro. Será que os problemas em São Paulo são os mesmos em Nüremberg? O que fazer?

Lembrando que mencionei um antropólogo em parágrafo acima, ocorreu-me que, além de olhar dados secundários, é hora de pensar em uma etnografia das universidades, que parece ser tema ainda muito pouco explorado. Não a etnografia da ciência, que já tem clássicos consagrados, começando por Bruno Latour, mas da universidade, que tem pelo menos um parcialmente, Academic Tribes – Intellectual enquiry and the culture of discilines de Tony Brecher e Paul Trowler. [VI] Por aqui achei “Da sala de aula a defesa de tese: processo, ritualização e legitimação do conhecimento, uma etnografia da Unicamp”. Não li ainda, mas vai o link do trabalho de Lea Carvalho Rodrigues [VII]. Achei projetos de “Etnografia da Universidade” em Toronto [VIII] e Chicago [IX]. A apresentação do projeto na Universidade de Toronto vai aos pontos que não levamos tanto em consideração, como os indicadores fáceis de obter e podem ficar de lado em uma etnografia só da ciência:

“A universidade é um microcosmo da sociedade, com sua grande e diversa população de estudantes, funcionários e docentes; suas hierarquias e hábitos; e as relações de poder e sentido que moldam as práticas cotidianas em salas de aula, laboratórios, refeitórios, escritórios, associações e moradias. Exclusão, moda, amizade, sexo, competição, religião, burocracia, medo, fé, educação – tudo acontece em uma universidade.”

O tema talvez ganhe corpo se considerarmos o chamado publicado por Hugh Gusterson, presidente da American Ethnological Society entre 2015 e 2017, na revista American Ethnologist: “Dever de casa: rumo a uma etnografia crítica da universidade” [X].

 


 

[I] http://www.spiegel.de/lebenundlernen/uni/nuernberg-bayern-will-neue-technische-universitaet-gruenden-a-1216640.html

[II] https://alumni.berkeley.edu/california-magazine/winter-2013-information-issue/clark-kerr%E2%80%99s-classic-uses-university-turns-50

[III] https://www.uni-muenchen.de/ueber_die_lmu/zahlen_fakten/index.html

[IV] Que às vezes, em determinados lugares, quando pagos são mal pagos (Não sei o caso da TUM) https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/essa-estranha-carreira-chamada-docencia-universitaria

[V] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/o-tempo-do-homo-academicus

[VI] https://www.mheducation.co.uk/openup/chapters/0335206271.pdf

[VII] http://repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/279039

[VIII] http://anthropology.utoronto.ca/people/faculty/tania-li/ethnography-of-the-university/

[IX] http://www.eui.illinois.edu/

[X] https://anthrosource.onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/amet.12520

 

 

 

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