Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

O que Michelangelo faria em Porto Alegre?

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Foto: ReproduçãoEm 1991, passear pelos sítios do mundo significava visitar os sítios reais e não virtuais, que são os alvos dessa série de colunas. Foi o ano em que passeei pelo sítio do Vaticano e tentei encontrar um pouco de paz na Capela Sistina atulhada de turistas como eu. Maravilhei-me com o teto, mas o fantástico “O Juízo Final” estava encoberto para restauro. Como não voltei mais ao Vaticano, esse imenso afresco que cobre toda a parede do altar da Capela Sistina continua no meu acervo de memórias por meio das inúmeras reproduções disponíveis em livros e sites dedicados à obra de Michelangelo. Hoje também é possível uma visita virtual (mas sem turistas obstaculizando a visão). [I]

A pintura do altar, com um Cristo sem barba no centro, foi completada em 1541 e logo à primeira visita (das autoridades da igreja) gerou polêmicas, sendo criticada a insensibilidade do autor ao decoro apropriado em relação à nudez (total, incluindo a de Jesus Cristo) e outros aspectos do trabalho (inclusão de figuras pagãs, por exemplo) e pelo fato de que o pintor estaria mais preocupado com “efeitos artísticos” do que em seguir a descrição dada pelas escrituras ao evento retratado. Segundo Giorgio Vasari, contemporâneo de Michelangelo e tido como o primeiro historiador da arte, na “pré-estreia” do altar, o mestre de cerimônias do Vaticano, Biagio da Cesena, declarou que “era a maior vergonha que em um lugar tão sagrado fossem retratadas todas essas imagens nuas, expondo-se de maneira tão vergonhosa, não sendo uma obra para uma capela papal e sim para um banho público ou uma taverna”. Michelangelo reagiu imediatamente, repintando a face da figura de Minos (canto inferior direito do altar), um dos juízes do inferno, com as feições de Cesena, ornado com orelhas de burro e a nudez coberta por uma serpente. Aos protestos do mestre de cerimônia, o papa respondeu que ele não tinha jurisdição sobre o inferno, portanto o retrato teria que continuar assim. O próprio papa foi criticado por não intervir na obra e continuaram os constantes pedidos de que fosse refeita. Mais de vinte anos se passaram e a sessão final do Concílio de Trento (1563) traduziu em texto as “atitudes frente à arte da Contrarreforma católica”. Havia um decreto explícito de que as pinturas da capela apostólica fossem cobertas e de que as de outras igrejas fossem destruídas, se representassem obscenidades ou fossem claramente falsas frente às escrituras. A história é longa com idas e vindas, mas após a morte de Michelangelo as genitálias foram cobertas com pinturas de suaves cortinados. Algumas intervenções mais tardias foram removidas na restauração cujos tapumes eu vi na minha visita.

Foto: Reprodução
Depois de ser alvo de censura do mestre de cerimônias do Vaticano, Michelangelo pôs Biagio da Cesena com orelhas de burro no lugar da figura de Minos | Reprodução

O caso do “Juízo Final” é o primeiro de uma linha do tempo que eu encontrei em um post [II], quando fazia buscas com a palavra chave “art censorship” pelo Google. Imperdível, embora assustador pelo conteúdo, é o sítio Freemuse – defendendo a liberdade artística. Assustador pela percepção de como as coisas pioraram desde Michelangelo. O Freemuse é responsável por relatórios anuais sobre atentados à liberdade artística em todo mundo. O último [III], lançado em maio desse ano, refere-se a 2016, além de ensaios traz uma tabela que resume o mundo. São 1.028 violações à liberdade artística em mais de 70 países no mundo, divididos em três assassinatos, dois sequestros, 16 ataques, 84 prisões, 43 processos, 40 perseguições ou ameaças e 840 censuras. O Brasil aparece com um caso de censura a um poema [IV] no relatório. O número do relatório do ano que vem será maior. No sítio do Freemuse apareceu no começo de outubro a notícia sobre a interrupção da exposição Queermuseu, em Porto Alegre [V]. As fontes são artigos do The Guardian e do NYT. Ali pode-se acessar o vídeo postado no Facebook que desencadeou uma lamentável sequência de reações que culminaram com a caladura da expressão e debate de ideias pela arte em questão. As consequências se desdobraram levando a calação, às vezes até anunciada de forma tristemente orgulhosa, para outros lugares, fazendo lembrar a letra de Chico Buarque. Falando em lembranças, o vídeo acima referido lembra também algumas cenas de o Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, que “continua bastante atual na sua defesa da arte como antídoto à intolerância religiosa em tempos apocalípticos” nas palavras de Ricardo Calil.

        Fico tentando imaginar o que Michelangelo teria feito em Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro se por aqui estivesse.

 


[I] http://www.museivaticani.va/content/museivaticani/en/collezioni/musei/cappella-sistina/tour-virtuale.html

[II] http://www.huffpostbrasil.com/entry/art-censorship_n_6465010

[III] http://en.unesco.org/creativity/sites/creativity/files/freemuse-annual-statistics-art-under-threat-2016.pdf

[IV] http://artsfreedom.freemuse.org/news/brazil-poet-censored-in-bahia/

[V] http://artsfreedom.freemuse.org/news/brazil-exhibition-closed-early-controversial-works/

 

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