Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

O ethos e seus predadores

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Ilustração: Luppa SilvaJohn Ziman (1925-2005), craque em duas posições diferentes (física e sociologia da ciência), publicou há pouco mais de vinte anos um comentário bastante interessante na Nature: “A ciência está perdendo sua objetividade?” [I] A linha fina anuncia que “A filosofia da ciência não é independente da maneira que a pesquisa é organizada”. O parágrafo de abertura descreve a metáfora traduzida abaixo.

“Cientistas conhecem filosofia e sociologia como peixes conhecem água. Eles entendem instintivamente como viver nela sem se darem conta que assim o fazem. Isto é, até que o aquário é agitado ou (o horror!) é entornado. Parece que estamos vivendo exatamente desse jeito. Ciência está sendo agitada e forçada a abandonar muitos dos costumes até então apreciados. Nós precisamos pensar seriamente sobre o que está acontecendo e o que devemos fazer, não para meramente sobreviver, mas para servir e deleitar a humanidade.”

Foto: Reprodução
Cena de “Cidadão Kane”, filme de Orson Welles

Aqui eu substituo a filosofia pelo mercado editorial científico no parágrafo acima para começar outro jogo, deixando a referência do texto de Ziman para os leitores interessados. Durante a minha formação como pesquisador nos anos 1980 e começo dos 1990, fazia parte conhecer, familiarizar-se e, eventualmente, publicar no grupo de revistas que constituíam o cânone da área do conhecimento. Várias eram (e ainda são) publicadas por associações sem fins lucrativos. Muitas outras o eram (e ainda são) por grupos editoriais, estes sim com fins lucrativos. Independentemente disso interessava a reputação dos conselhos editoriais e a seriedade das avaliações por pares dos artigos. Nos anos 1990 o aquário ficou imperceptivelmente turvo, uma dessas revistas passou a ser publicada pelo grupo Elsevier, que comprou o grupo Pergamon, que a editava antes. Não sabíamos então que o publisher da Pergamon, Robert Maxwell, teria feito inveja ao Cidadão Kane de Orson Welles. Logo depois desaparece uma tradicional revista de Física, que foi fundida a outras, para dar origem a uma nova, um movimento de gestão dentro da casa editorial Springer.

Atualmente, Springer (que também assumiu a revista Nature), Elsevier e o grupo Wiley-Blackwell controlam a metade de um mercado de 80 bilhões de reais por ano, com margens de lucro que chegam a 40%. Grande modelo de negócio, para o qual as tecnologias de informação e comunicação contribuíram para diminuir os custos, enquanto os ganhos são mantidos pelos altíssimos valores das assinaturas. Detalhes e meandros dessa história são descritos em belo artigo de Stephen Buranyi [II].

No começo deste século, o aquário chacoalhou com o movimento de acesso aberto em ciência: os autores pagam a publicação de seu artigo, que passa a ser de livre acesso a quem quisesse e tentando acuar o plano de negócio por assinaturas. Os custos para os autores seriam cobertos pelos seus recursos de pesquisa, programas específicos das universidades ou fundações. A volta da ideia do conhecimento como bem público, que ganha contornos interessantes com o movimento de enfrentamento de universidades e agências de fomento contra os grandes grupos editoriais, como ocorre na Alemanha e mencionado nesse espaço há algumas semanas.

Os aquários agora estão turvos, agitados e ameaçam tombar em algumas salas de estar. O começo do século XXI não trouxe apenas a ideia de ciência aberta, mas também a da intensificação da produção científica e sua internacionalização (que, quase sempre, significa publicar em inglês, para pesquisadores de países não anglófonos, e em revistas editadas no exterior, se os pesquisadores estão em territórios emergentes). Eis que surge o cenário para novos modelos de negócios, aberto a novos predadores, desde cursos sobre como publicar em inglês e, principalmente, as chamadas revistas predatórias. São revistas online, sediadas em países de pouca tradição científica, anunciando editores e conselhos editoriais obscuros, que maquiam supostas avaliações por pares, que apresentam falsas indexações, mas...cobram. Bem mais barato, é verdade, que as revistas não predatórias, mesmo porque o custo dessas predatórias é praticamente nulo: manter um sítio fajuto no ar e alguém que poste os artigos, que não são revisados e nem editados. Como fazem isso? O fenômeno é lembrado sempre que aparece um email convidando o destinatário a publicar em uma revista de nome um pouco estranho, mas sugestivo ou sedutor, muitas vezes com o “international” no início ou parecido com o nome de alguma revista já estabelecida. São, em geral, revistas de ciclo de vida curto, lucram enquanto o alerta à tramoia não é disseminado, como é o caso da Business and Management Review (BMR), editada(?) pela Business Journalz (??, isso mesmo, com z no final). Ela surgiu em 2011, mas ainda não publicou um único artigo em 2017. Anuncia, entre outras coisas, revisão por pares, mas os artigos não trazem a data de submissão e aceite, como seria praxe. O último artigo, de 2016, está lá em português, mesmo que no suposto comitê editorial não apareça ninguém de algum país lusófono. Ah, a revista também não tem endereço.

Esse é mais ou menos o estilo compartilhado por todas as revistas chamadas predatórias. Se a BMR parece ter chegado ao fim, outras surgem como as dezenas de revistas, muitas sem nenhum artigo publicado ainda, nem comitê editorial, mas prometendo as mesmas coisas, do portal IOSRD. Nele a revista International Journal of Chemistry já tem 3 artigos publicados, que parecem bem editados e constando data de submissão, de recebimento de versão revisada e de publicação. Parece em ordem, mas aí nota-se que as datas de submissão e recebimento das versões revisadas são as mesmas nos três artigos. O cargo de editor-chefe está vago, segundo o mesmo sítio.

Revistas predatórias dispararam o alarme em várias partes do mundo acadêmico [III] e foram criadas listas de advertência, que também são controversas [IV]. Inicialmente tomado como uma ameaça às comunidades científicas de países emergentes, hoje se espalhou também pelo primeiro mundo [V]. No meio dessa turvação vale nova citação direta, agora de um editorial do Journal of Epidemiology.

“...proponho que os esforços se concentrem na transformação do ambiente acadêmico de pesquisa e do sistema de recompensas, subindo os padrões e desenvolvendo a verdadeira colegialidade  intra e interinstitucional. Com isso o mercado predatório desapareceria ...” [VI]

Sim, mas nós tínhamos isso antes lá nos anos 1980. Como desapareceu a capacidade de conhecer e reconhecer a boa literatura científica? Não só a filosofia e a sociologia viraram água, o ethos científico também.

Hora de dar comida aos peixes.

 


[I] Nature vol. 382, 751-754

[II] https://www.theguardian.com/science/2017/jun/27/profitable-business-scientific-publishing-bad-for-science

[III] http://www.palavraimpressa.com.br/2016/08/05/as-revistas-open-access-predatorias/

[IV] http://revistapesquisa.fapesp.br/2017/06/20/nova-lista-de-periodicos-predatorios/

[V] https://www.nature.com/news/stop-this-waste-of-people-animals-and-money-1.22554

[VI] Why we should worry less about predatory publishers and more about the quality of research and training at our academic institutions. Elizabeth Wager Journal of Epidemiology 27 (2017) 87-88

 

 

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