Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Melba Phillips, mulher de ciência e consciência, figurante em uma licença poética

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Oppenheimer é o grande destaque da vez nos cinemas. Conta uma história crucial, resgatada para os mais jovens, que nasceram depois da guerra fria. A figura central é a que dá o título do filme, de prenomes Julius Robert, brilhante físico e arquiteto da bomba atômica. Por tudo que li, vi, ou ouvi antes, a trajetória do Projeto Manhattan é descrita acuradamente, com o leitmotiv gravitando em torno do protagonista e um círculo de físicos. Não me atrevo a acrescentar algo por escrito a esse roteiro, talvez lembrar apenas que, além de físicos, entre as milhares de pessoas envolvidas, havia matemáticos, químicos e engenheiros de diferentes especialidades nesse primeiro grande projeto interdisciplinar da humanidade. Mas o filme não é um documentário, que também teria seus recortes na escolha do que destacar na história, sempre mais complexa do que qualquer representação. Oppenheimer é um filme de ficção e, portanto, não pode prescindir de licenças poéticas. E são elas, uma vez percebidas, que permitem divagar por outros meandros, esquecidos ou não.

A licença poética em questão está ligada à chegada de Julius Robert Oppenheimer à Universidade de Berkeley em 1929, após seu doutorado na Alemanha 1927 e algumas perambulações por outros lugares. No filme, Oppenheimer logo inicia um curso de mecânica quântica, a grande revolução na física, com novos e surpreendentes conceitos teóricos, engendrada na Europa nos loucos anos 1920. No início, aparece, apenas um aluno, e, na sequência de cenas, o professor em frente ao quadro negro passa a ser rodeado por um número crescente de estudantes, até que a sala acaba ficando lotada. A sequência deixa duas perguntas. A primeira é de como a mecânica quântica foi de fato parar na América. A segunda é sobre quem seriam aqueles estudantes, meros figurantes no filme.

Oppenheimer não conheceu a física quântica na Europa, pois já havia assistido às aulas de Edwin Kemble, durante sua graduação na Universidade de Harvard, entre 1922 e 1925. O curso certamente o instigou a continuar a formação do outro lado do oceano Atlântico, onde a novidade de fato fervia. O doutorado de Kemble, obtido em 1917, parece ter sido o primeiro no continente americano usando as novas teorias aplicadas ao comportamento de moléculas. Enquanto Oppenheimer aprendia sobre física quântica na graduação, Kemble concluiu sua primeira orientação de doutorado na área, título concedido ao jovem de 23 anos John van Vleck, que continuou a desenvolver a mecânica quântica aplicada às moléculas e ao magnetismo de um lado dos EUA (Harvard), enquanto Oppenheimer a aplicava aos núcleos atômicos e às estrelas do outro lado do país (Berkeley). Os dois se conheciam bem, e Vleck participou do projeto Manhattan junto com os outros “luminares”, apelido dado ao grupo de físicos que desenvolveram o trabalho teórico necessário para a bomba.

Como nota de rodapé, vale lembrar que, depois da Segunda Guerra Mundial, van Vleck orientou o doutorado do então físico Thomas Kuhn, que depois foi para Berkeley, onde se transformou no famoso historiador e filósofo da ciência, na época em que Oppenheimer foi para Princeton, tornar-se diretor do Instituto de Estudos Avançados. Esses são apenas alguns detalhes da genealogia da construção da expertise nesse novo arcabouço teórico, a mecânica quântica, nos Estados Unidos. Esses detalhes e outros aspectos são descritos por Stanley Cohen no artigo já cinquentenário “The Scientific Establishment and the Transmission of Quantum Mechanics to the United States, 1919-32” [i]. No Brasil, a coisa se desenvolveu quase ao mesmo tempo. O pioneiro aqui foi Theodoro Ramos, engenheiro e matemático que realizou, já em 1923, pesquisas pioneiras em nossas terras sobre a teoria quântica. Sua história é lembrada por Nelson Studart, Rogério da Costa e Ildeu Moreira [ii]. O ensino regular de mecânica quântica, no nível universitário, demorou um pouco mais, ocorrendo lá por meados dos anos 1930, com Gleb Wataghin em São Paulo e Bernhard Gross no Rio de Janeiro [iii].

Aula de mecânica quântica no filme Oppenheimer
Aula de mecânica quântica no filme Oppenheimer

A segunda questão que se insinuou era sobre, afinal, quem eram os estudantes de Oppenheimer naquele curso que parecia ser pioneiro em Berkeley? O primeiro que aparece em cena revela seu nome, perguntado pelo professor: Giovanni Rossi Lomanitz. O jovem texano, cujo nome homenageia o anarquista italiano que passou pelo Brasil no final do século XIX, foi de fato aluno de Oppenheimer, mas apenas no começo da década de 1940, e não nos primórdios na década anterior. Lomanitz é personagem do filme e, depois de formado, foi trabalhar no Projeto Manhattan. E os outros, meros figurantes? Havia lá um rosto feminino na cena? Nos verbetes sobre esses anos em Berkeley, revela-se o nome de Melba Phillips, a jovem nascida na minúscula Hazleton (com menos de 200 habitantes, de acordo com o censo de 2020), no estado de Indiana, em 1907, a primeira orientanda de Oppenheimer, que se doutorou em 1933, uma época em que poucas mulheres conseguiram seu espaço na ciência. Era apenas três anos mais jovem que o orientador, mas quase todos eram igualmente jovens nos primórdios da mecânica quântica, tanto orientandos, quanto orientadores. Nesse caso, orientanda e orientador tornaram-se também amigos. Melba acabou nos jornais, não pela sua excelência em pesquisa, mas pelos rumores de um envolvimento amoroso, nunca confirmado, com seu mestre. Após o doutorado, Melba continuou a trabalhar com seu ex-orientador por um tempo, e publicaram um artigo de 1935 em que descrevem teoricamente uma reação nuclear, hoje conhecida como processo Oppenheimer-Phillips. A reação nuclear em pauta foi observada no acelerador de partículas, o cíclotron, construído por Ernest Lawrence, amigo de Oppenheimer, personagem do filme.

Melba Phillips na Universidade de Berkeley em 1930
Melba Phillips na Universidade de Berkeley em 1930

Uma carta de recomendação de Oppenheimer para sua pupila dizia que ela “possuía uma vocação genuína para a matemática e física teórica e um excepcional talento para isso”, considerando-a “um inestimável membro para qualquer departamento de física no país” [iv]. Os tempos eram difíceis, com a grande depressão somada à discriminação contra mulheres na ciência. Mesmo assim, Melba Phillips foi membro de diferentes departamentos de física. Foi agraciada com a bolsa Margaret Maltby da “Associação Americana de Mulheres na Universidade” em 1936, passando um período no Instituto de Estudos Avançados de Princeton. Essa associação foi criada ainda no final do século XIX, e Margaret Maltby foi a primeira mulher a obter, em 1895, o doutorado em física pela universidade de Göttingen, a mesma universidade em que pouco mais de 30 anos depois Oppenheimer obteve o seu título.

A equipe de Berkeley sentada no topo e no meio do magneto do cíclotron. Oppenheimer está lá de pé em cima do acelerador. Lawrence aparece sentado embaixo, de óculos e pernas cruzadas. Nem todos estão identificados na fonte da foto.[v] Entre tantos homens, temos três mulheres, porém não tenho certeza de que Melba Phillips é uma delas.
A equipe de Berkeley sentada no topo e no meio do magneto do cíclotron. Oppenheimer está lá de pé em cima do acelerador. Lawrence aparece sentado embaixo, de óculos e pernas cruzadas. Nem todos estão identificados na fonte da foto.[v] Entre tantos homens, temos três mulheres, porém não tenho certeza de que Melba Phillips é uma delas

Melba seguiu uma carreira de docência e, durante a Segunda Guerra Mundial, não participou de nenhum projeto de pesquisa ligado ao conflito. Ela voltou aos noticiários, novamente não pelo seu trabalho, mas por ter sido intimada a depor para um subcomitê do senado na esteira da caça às bruxas “comunistas” da era McCarthy nos anos 1950. Melba compareceu para depor em 1952, concordando em responder perguntas sobre seu trabalho como cientista e educadora em física, mas se recusou a colaborar, por questão de princípio, em relação a envolvimentos políticos, seu ou de outros. Isso custou-lhe a cátedra no Brooklin College, bem como a condição de pesquisadora na Universidade de Colúmbia, ficando cinco anos desempregada. Ela sobreviveu graças a suas modestas economias e direitos autorais de dois livros-texto de física, escritos em parceria. Um deles é o “Classical Electricity and Magnetism”, redigido com Wolfgang Panofsky. Sim, isso mesmo, é o livro usado até hoje nos cursos de física por aqui. Em caso de alguma dúvida sobre eletromagnetismo, sempre ouvimos ou dizemos pelos institutos de física: “dá uma olhada no Panofsky”.

Melba Phillips, sem data. (AIP – Arquivo Visual Emilio Segrè)
Melba Phillips, sem data. (AIP – Arquivo Visual Emilio Segrè)

Melba Phillips voltou a lecionar em 1957, passando por diferentes universidades, continuando também as atividades na Associação Americana de Professores de Física (desde 1943), tendo sido sua primeira presidente mulher em 1966-1967. Sobre essa associação e sua militância, ela declarou que “as pessoas nas universidades, cujos futuros dependem em escreverem mais e mais artigos sobre suas pesquisas científicas, têm pouquíssima paciência com os problemas da educação pré-universitária. Isso está em parte relacionado com o porquê da criação da Associação Americana de Professores de Física”. Um bom recado, cuja necessidade parece imorredoura, independente da latitude e longitude.

A ex-orientanda de Oppenheimer teve seu trabalho multiplamente reconhecido ao longo dos anos, após sua aposentadoria pela Universidade de Chicago em 1972. O Brooklin College pediu desculpas pela sua demissão em 1952 e instituiu uma bolsa com o seu nome em 1997. Detalhes de sua longa trajetória estão reunidos em um blog de história em duas partes [vi],[vii]. Para quem quiser se aprofundar, o artigo de Dwight E. Neuenschwander e Sallie A. Watkins é uma bela fonte, com citações diretas e referências de seus artigos científicos [viii]. Ela também mereceu uma página do American Institute of Physics, já citada acima, onde fac-símiles de documentos podem ser apreciados. Quase centenária, Melba faleceu em 2004.

Em alguns lugares, grandes histórias passam despercebidas, mas, olhando para outras paragens com um pouco de atenção, elas ressurgem. Em mais uma breve busca, encontro uma citação a ela atribuída:

“Na história do desenvolvimento científico, os aspectos pessoais do processo são usualmente omitidos ou apequenados para enfatizar que o que é descoberto é independente do descobridor e que o resultado pode ser checado. No entanto, como Einstein frisou, conceitos científicos são ‘criados nas mentes dos homens’ e, de alguma forma, os aspectos não profissionais da vida e da mente estão inevitavelmente relacionadas ao profissional.”

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.


[i]  The American Historical Review , Apr., 1971, Vol. 76, No. 2, pp. 442-466 

[ii] Física na Escola, 2004, vol. 5, nº2, pp. 34-36.  

[iii] Entrevista com Amélia Hamburger.

[iv] https://www.aip.org/history-programs/news/melba-phillips-papers-now-online

[v] https://www.kron4.com/news/wwii-history-unfolds-at-uc-berkeley-as-christopher-nolan-films-oppenheimer-movie/

[vi] https://blog.history.in.gov/physicist-melba-n-phillips-indianas-oppenheimer-connection/

[vii] https://blog.history.in.gov/melba-phillips-leader-in-science-and-conscience-part-two/

[viii] https://link.springer.com/content/pdf/10.1007/s00016-007-0373-z.pdf

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