Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

E, no entanto, se modificam!

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Ilustração: Luppa Silva Na coluna anterior nos demos conta, com a ajuda do artigo de Dwight Atkinson, que os artigos científicos mudaram muito ao longo desses três séculos de ciência [I]. A pergunta que fica é se eles continuam se modificando, o que é difícil de ser percebido por quem escreve esses artigos: ocupado em escrevê-los não nos damos conta das mudanças nas escalas de tempo da nossa atividade profissional. Além disso, pelo menos em ciências naturais, os artigos que lemos e citamos são, na maioria das vezes, bem recentes, ou seja, bem parecidos. Raros artigos clássicos mais antigos podem até causar estranhezas na leitura, mas são os craques da época, que talvez não representem a maioria dos jogadores de seu tempo, se me permitem a metáfora futebolística.

Outra pergunta é sobre quem induz mudanças e no artigo de Atkinson surge também uma pista.  “O papel das políticas editoriais em revistas longevas e influentes como os Transactions – e a relação dessas políticas ao desenvolvimento textual do artigo científico de pesquisa – são questões interessantes, mas difíceis de serem estudadas, pois poucas declarações explícitas dessas políticas editoriais parecem ter existido anteriormente aos últimos 50 anos”. Assim temos uma possibilidade: ler essas declarações. Escolho uma, o prefácio de uma edição recente da revista Scientometrics (sim, sobre cienciometria), na qual os editores manifestam o desejo de não publicar mais estudos de caso, recomendando a publicação de artigos com novas metodologias e/ou visões sobre o tema. Estudos de caso teriam interesse mais restrito e seriam menos citados, alegando, no entanto, que o impacto não deve determinar a política editorial. Mencionam por fim que a decisão final seria dos editores (não da revista, que escrevem o prefácio, mas da editora). Assim explicita-se uma dinâmica curiosa: a política editorial de uma revista científica é resultado de um embate entre os editores (membros da comunidade científica) e os publishers (e seus interesses comerciais).

Se os estudos de caso devem ter seus espaços restringidos, que tal pensar em um conjunto de estudos de caso? Uma mudança proposta agora não por editores, mas pelos autores: um trabalho de crowdsourcing relatado por Raphael Silberzahn e Eric Uhlmann, descrito na Nature em 2015. O que seria? Silberzahn e Uhlmann propõe uma pergunta de pesquisa e disponibilizam um grande conjunto de dados a grupos de pesquisa recrutados pelo Facebook e pelo Twitter. Tiveram a adesão de 29 grupos em todo mundo com um total de 65 pesquisadores envolvidos. A pergunta: “a cor da pele do jogador de futebol influencia na frequência com que recebe cartões vermelhos?”. O conjunto de dados: compilações de escalações de times, posições em que joga cada jogador, juízes, número de jogos, cartões amarelos, vermelhos, resultados dos jogos, etc. de quatro grandes campeonatos de futebol europeus.

Cada análise em separado seria um estudo de caso, mas neste crowdsourcing foram realizados em conjunto, com críticas anônimas (capitaneada pela dupla nomeada acima) das propostas entre os grupos, discussão das sugestões, análise também anônima dos resultados e, por fim, a publicação conjunta. Vale a pena ler: são 29 respostas diferentes para a mesma pergunta e o mesmo conjunto de dados; 29 metodologias diferentes para recortes de dados distintos. Lá no meio do texto uma apreciação sobre a elaboração e revisão de artigos científicos que merece ser destacada: “em alguns casos os autores utilizam uma estratégia de análise porque é a que sabem como usar, em vez de ser parte de uma racionalidade específica. Pareceristas de artigos podem comentar os resultados e sugerir mudanças na metodologia escolhida, mas raramente os comentários emergem da análise do conjunto de dados utilizados. Similarmente não é incomum que os pareceristas assumam a metodologia como correta, sem questioná-la, e detenham-se exclusivamente em outros aspectos do manuscrito.” O crowdsourcing, que não deve ser tomado como panaceia, é uma resposta a essas questões, retomando a questão metodológica para o centro das atenções. O artigo coletivo “Muitas análises, um conjunto de dados: tornando transparente como escolhas analíticas afetam os resultados” é...um novo tipo de artigo [II].

Foto: Reprodução
“Scientific Data”, revista ligada à “Nature”: compartilhamento e reúso de dados

Falando em dados e lembrando os deslocamentos do foco retórico descritas por Atkinson, temos agora um tipo de artigo com o foco retórico longe da metodologia de um experimento ou da descrição teórica e sim centrado nos dados propriamente ditos! Em algumas áreas do conhecimento a coleta de dados é cada vez mais extensa e sofisticada. O grupo de pesquisa responsável pela coleta talvez não possa explorar os dados na totalidade, assim, uma das variantes da ciência aberta é o compartilhamento desses dados. Como? Publicados em revistas de acesso aberto. E com isso surgem revistas de artigos de dados. Uma delas é a Scientific Data, ligada à Nature (https://www.nature.com/sdata/). Qual é o objetivo desta revista? “É uma revista de acesso aberto com revisão por pares para descritores de conjuntos de dados cientificamente válidos e pesquisas que avancem o compartilhamento e reúso de dados científicos.” A revista propõe por fim o formato desse novo tipo de artigo e o foco central, para o qual não há limite de tamanho, são os métodos de coleta, o registro dos dados propriamente ditos e a validação técnica dos mesmos. Quem quiser pode (o acesso é aberto!) fuçar livremente esses artigos.

Os artigos se modificaram durante três séculos, no dia a dia contemporâneo podemos não prestar atenção nisso, mas, parafraseando Galileu Galilei: e, no entanto, eles se modificam.

 


[I] http://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/matou-cascavel-e-publicou-o-pau

[II] https://psyarxiv.com/qkwst/

 

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