Foto: DivulgaçãoMaria Beatriz Machado Bonacelli, professora livre-docente do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT), coordenadora do Programa de Pós-Graduação em PCT (Instituto de Geociências). O livro "Propriedade Intelectual Propriedade Intelectual e Inovações na Agricultura" (INCT/PPED, Ideia D), do qual foi um dos organizadores, recebeu o Prêmio Jabuti 2016, segundo lugar na categoria Economia e Administração.

Formação Profissional – não temos mais tempo a perder: atualização e valorização já!

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Ilusrtração : Luppa SilvaO Brasil apresenta condições tão díspares em algumas questões relacionadas ao ensino e à formação educacional de sua população que é difícil achar, por muitas vezes, que estamos falando de um mesmo país.

Vejamos o caso da pós-graduação, que alcança um desempenho muito satisfatório e que teve sua institucionalização no final da década de 1960. Isso em um país que saiu fortemente atrasado no processo de constituição de universidades frente a seus vizinhos e outros países de economia mais desenvolvida.

O Brasil, na verdade, foi um dos últimos países da América Latina a instituir essa estrutura de ensino, não obstante já houvesse no território brasileiro algumas faculdades, academias e escolas de nível superior desde o finalzinho do século XVIII. A figura “universidade” veio posteriormente e coloca-se a criação da USP, em 1934, como o marco deste movimento, mesmo já existindo as universidades do Paraná (1912), de Minas (1927) e a Universidade do Rio de Janeiro (de 1920, posterior Universidade do Brasil (em 1939) e depois, Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1965, como passaram a ser denominadas as universidades federalizadas). Mas a USP instituiu, naquele início dos anos 30, os elementos que caracterizam uma “universidade” em seu sentido pleno, como a dedicação exclusiva de seus professores e a regulamentação de cursos superiores em várias áreas do conhecimento, dentre outros aspectos.

Entre 1930 e 1950 criam-se cerca de 160 estabelecimentos de ensino superior no Brasil, sem, entretanto, um maior estreitamento com as atividades de pesquisa – um dos marcos da IIa. Revolução Industrial lá do século XIX, cujo origem esteve atrelada à Universidade de Berlim e a autonomia dada a seus professores para fazerem atividades de pesquisa já na década de 1820. No Brasil, essas atividades estavam mais fortemente enraizadas em institutos de pesquisa, de importância fundamental para o avanço e o sucesso do país em várias áreas do conhecimento, desde suas primeiras instalações em meados também do século XIX.

Voltando à pós-graduação, foram nos anos de 1960 que se institucionalizaram os primeiros cursos no país, no esteio de outras mudanças, como a reforma do ensino superior, o fim da cátedra e, posteriormente, o início da formação em massa de alunos de nível superior – com a participação agressiva do setor privado nesse processo.

Foto: Scarpa
Simon Schwartzman (à esq.) e Carlos Américo Pacheco: estudos expõem gargalos da formação profissional | Fotos: Antônio Scarpinetti

Dá-se então, a partir deste momento, o casamento mais do que bem-sucedido entre universidade e pesquisa, superando o nosso atraso histórico tanto na instalação de universidades no país, quanto na união entre ensino e investigação – a universidade, e portanto, o sistema de pós-graduação, contribuem de forma importante para o desenvolvimento da pesquisa básica e aplicado do país. O sucesso da pós-graduação brasileira é reconhecido aqui dentro e internacionalmente. Suas bases são desde um suporte financeiro aos pós-graduandos – um sistema de bolsa de estudos praticamente único no mundo – com um sistema de avaliação e acompanhamento dos programas de pós-graduação que é também singular e que existe desde os anos 1980.

São mais de quatro mil e cem programas de pós-graduação atualmente e levantamentos e estudos realizados apontam tanto para a sólida formação teórica e prática dos alunos, como a contribuição de tal formação tanto para o indivíduo como para o conjunto do país – dado que profissionais com pós-graduação tendem a colaborar para o aumento da produtividade e da competitividade, da complexidade tecnológica do tecido industrial e de serviços, assim como da renda individual e agregada do país.

E por que esse esforço não se difundiu de forma tão efetiva para os outros níveis de educação do país – especialmente o ensino médio e o técnico/tecnológico? Vejamos alguns elementos para contribuir com uma discussão mais do que pertinente e urgente.

No ensino médio, houve também avanços nas últimas décadas: o percentual de jovens de 15 a 17 anos que frequenta o ensino médio passou de 20% para 56% de 1991 a 2015. Mas, dois grandes problemas se apresentam nesse caso e ambos estão longe de estarem sendo bem equacionados. No primeiro caso, o número de jovens que frequenta o ensino médio não apenas deveria ser bem maior, como a evasão é elevadíssima – quase 1 milhão de abandonos por ano! Em sua coluna na Folha de S. Paulo no dia 29 de outubro, Marcos Lisboa apresenta uma série de indicadores que mostram a enorme diferença na vida de quem completa o ensino médio – tanto no que respeita o salário, as condições de trabalho, a qualidade de vida (menos envolvimento em criminalidade, menos chances de gravidez na adolescência) até a maior possibilidade dos filhos de jovens com essa formação virem a completar as diferentes etapas de formação no ensino, e o quanto o país ganha e deixa de perder com uma população mais bem formada.

O segundo caso diz respeito à formação profissional, cujo contexto reflete as escolhas do país, que têm privilegiado ao longo da história a geração de conhecimento científico de base acadêmica em detrimento de suas aplicações, nas palavras de João Steiner, Marisa Cassim e Antonio Carlos Robazzi (2007), colocando ainda hoje – e talvez mais do que nunca – um gigantesco desafio ao desenvolvimento econômico do país – difundir e assimilar a cultura da inovação que tem como um de seus principais pilares a formação em larga escala de técnicos e tecnólogos que incrementem a capacidade tecnológica das empresas e dos serviços.

Em países desenvolvidos, a demanda por esse perfil de profissional já há muito vem sendo equacionada por meio de uma estrutura bimodal, qual seja, a geração do conhecimento conjugada com a sua aplicação, que se espalhou para a Europa e depois para o mundo. O país de maior tradição neste modelo é a Alemanha, berço da IIa Revolução Industrial como já dito, que constituiu institutos técnicos, depois transformados em universidades técnicas e faculdades de ciências aplicadas, para dar conta da necessidade de uma formação de recursos humanos mais técnicos, vocacionados a desenvolver e aplicar esses novos conhecimentos em produtos e serviços. Os institutos Max Planck e Fraunhofer são um dos principais símbolos da estrutura acadêmico-tecnológica com caráter bimodal, combinando aprendizado acadêmico com habilidades práticas.

Por sua vez, no Brasil, há um descompasso tanto da demanda como da oferta de profissionais oriundos de escolas técnicas e faculdades tecnológicas – estamos aquém daquilo que poderíamos demandar e daquilo que poderíamos ofertar. Simon Schwartzman e Claudio Moura Castro colocavam assim o problema em 2013: “Existem evidências de que há falta de mão de obra qualificada em vários setores da economia brasileira, sobretudo em atividades de qualificação técnica intermediária, gerando uma demanda por formação profissional que está sendo atendida, em parte, pelo setor privado, e mais recentemente por iniciativas do setor público. No entanto, o maior problema é a possibilidade de que a economia brasileira esteja se acomodando a um padrão de baixa qualificação de mão de obra e baixa produtividade que não tem como se resolver pela simples pressão das demandas do mercado de trabalho sobre o sistema educativo”. E prosseguem: “Quando recursos humanos de qualidade escasseiam e o sistema educacional não responde, a economia tende a se ajustar a esta situação, desenvolvendo atividades baseadas em trabalho de baixa qualificação e não criando demanda para pessoas mais qualificadas. Países como Japão, Coréia do Sul e, agora, China, conseguiram mudar o patamar de qualidade de seus sistemas educativos. Eles não esperaram que a educação respondesse às demandas da economia, mas, ao contrário, investiram pesadamente na educação e, a partir daí, conseguiram desenvolver uma economia da alta produtividade”.

No final da primeira década dos anos 2000, muito se discutiu sobre a falta de engenheiros no país – que se revelou uma falácia (alertada por professores do DPCT/Unicamp em trabalho seminal sobre o assunto). Mas pouco se discutiu sobre a possível contribuição do ensino técnico e tecnológico em tal cenário. Naquele momento, Carlos Américo Pacheco (em 2010), apontava assim para o problema da formação de engenheiro no país: “É conveniente ter em vista também que, em nenhum país, os requisitos de mão-de-obra qualificada para inovação se restringem aos profissionais de nível superior. No Brasil, em particular, há uma forte demanda e um visível gargalo no tocante à formação profissionalizante. Apesar da grande ênfase dada por algumas Unidades da Federação, como São Paulo, e apesar da intenção de expandir o ensino profissional do MEC, os déficits de formação técnica de nível médio no Brasil são enormes e vão demandar maior atenção, inclusive com melhoria do planejamento, melhoria do desempenho das ações de treinamento e mais foco nas habilitações e regiões que merecem prioridade”.

As matrículas em cursos tecnológicos no Brasil representam menos de 14% das matrículas no ensino superior; em São Paulo elas chegam a quase 20% das matrículas no ensino superior do estado. Tanto no Brasil, como em São Paulo, a imensa maioria das matrículas nessa modalidade de formação é ofertada pelo setor privado: quase 82% em São Paulo e quase 86% no Brasil (PDCTI, 2015). O país está, assim, não apenas perdendo uma enorme oportunidade de sustentar um processo de inovação mais robusto, mas está também fechando as portas para uma legião de jovens que, na maioria dos casos, tem um perfil muito mais afeito a uma formação prática e aplicada, do que teórica e conceitual do ensino superior.  

Além dos enormes desafios de trazer e manter os jovens na escola e transformar a demanda das empresas para patamares de mais alta qualificação, outras superações se impõem, como bem argumentam as professoras Elizabeth Balbachvsky (do NUPPS/USP) e Helena Sampaio (da Faculdade de Educação da Unicamp), em elementos que podem ser assim colocados: a excelência técnica da formação profissional tem que incluir outros tipos de competências, como aquelas que integrem novos e complexos conhecimentos; o aprendizado que vise o trabalho em grupo, o desenvolvimento de habilidades cognitivas, a solução de questões complexas e o instinto de liderança; a elaboração de currículos flexíveis, que permitam que o aluno organize o portfólio de sua formação e que esta possa ser realizada em diferentes instituições – na universidade e mesmo na empresa, por exemplo.

Os argumentos das duas professoras para além da superação da evasão e da rigidez da formação profissional continuam: “o primeiro é o aumento da atratividade do ensino técnico/tecnológico entre jovens de diferentes setores da sociedade, para que a formação tecnológica possa ser uma opção de profissionalização. Nem todos os jovens têm perfil acadêmico, mesmo os oriundos das ‘elites educadas’. Mas, tal formação deve ir além da concepção de oferecer ao jovem novas oportunidades de aprendizado, trabalho e remuneração, mas concebê-la de forma a integrá-la a outros valores da contemporaneidade, como flexibilidade e rapidez de formação, contato com novas tecnologias e novas formas de aprendizado. O segundo desafio é repensar a nossa oferta de formação profissional, pois ela ainda foca o estudante do ensino médio mais bem qualificado, com maior “vocação acadêmica”, e deixa descoberto justamente o estudante que mais precisaria de uma formação vocacional precoce – que é o estudante menos interessado, com menor vocação acadêmica, que tem maiores chances de evasão no ensino médio”.

É mais do que urgente repensar nossas trajetórias e escolhas de “país” no que respeita o ensino em todas as suas magnitudes. É mais do que urgente construir um novo paradigma de ensino, capaz de realizar a integração entre a geração do conhecimento e a sua aplicação em produtos, processos e serviços. É preciso formar profissionais altamente capacitados para lidar com questões complexas do mundo atual, flexíveis e aptos a aprender e a inovar. Precisamos fazer da formação profissional uma opção que atraia jovens de diferentes setores da sociedade. Precisamos valorizar a reputação de técnicos e tecnólogos na sociedade. Esse deve ser um projeto de Nação. Todos nós só temos a ganhar com isso.

Referências Bibliográficas

PACHECO, C. A. A formação de engenheiros no Brasil: desafio ao crescimento e à inovação, in IEDI, São Paulo, 2010. Acesso em http://www.iedi.org.br/admin_ori/pdf/20100723_engenharia.pdf.

PLANO DIRETOR DE CT&I DE SÃO PAULO, FAPESP (2015). SDECTI e Fapesp, 2015.

SCHWARTZMAN, S.; MOURA CASTRO, C. “Ensino, formação profissional e a questão da mão de obra”, in Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v. 21, n. 80, p. 563-624, jul./set. 2013. Acesso em http://www.scielo.br/pdf/ensaio/v21n80/a10v21n80.pdf.

SCHWARTZMAN, S.; MOURA CASTRO, C; “Ensino técnico e profissional: a falta que faz, e como fazer”, in Fábio Giambiagi, Cláudio Porto. (Org.). Propostas Para o Governo 2015-2018 - Agenda Para Um País Próspero e Competitivo. 1ed.: Elsevier - Campus, 2013.

STEINER, J.; CASSIM, M.; ROBAZZI, A.C. “Parques Tecnológicos: Ambientes de Inovação”, Instituto de Estudos Avançados. USP, 2007.

 

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