José Mario Martínez

José Mario Martínez, autor da coluna (In)exata, é professor emérito da Unicamp e docente do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica (Imecc). Trabalha em Matemática, Otimização e Aplicações. Desde 1978, ano em que se incorporou à Unicamp, tem publicado artigos e orientado teses na sua especialidade. Atualmente é presidente do Conselho Científico Cultural do Instituto de Estudos Avançados (IdEA) e coordenador de Engenharia Matemática do CRIAB (Grupo de Pesquisa e Ação em Conflitos, Riscos e Impactos associados a Barragens).

Porcentagens

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Sejamos claros: não se deve fazer porcentagens de porcentagens!

Se um economista prognostica uma inflação de 0,001 por cento e a inflação resulta ser 0,004 por cento, ele não é demitido do emprego porque errou em 300 por cento.

Se o PIB (Produto Interno Bruto) cresceu 0,9 por cento quando a previsão era de 0,3 por cento, podemos ficar moderadamente felizes porque não caiu, mas não devemos desqualificar os que previam 0,3 por terem "errado" em 200 por cento.

Se no mês passado foram fabricados mil tratores e neste mês, 1.009 tratores, ótimo, mas isso não é um resultado três vezes superior ao de fabricar 1.003 tratores.

Se o enfermeiro registra que nossa temperatura evolui, em intervalos de 12 horas, de 37 graus para 37,1 e depois para 37,4, ele não corre espantado a avisar a diretoria do hospital porque a variação da temperatura em 12 horas se multiplicou por três.

Se o consumo de ração para cachorro aumentou 0,1 por cento em março e 0,3 por cento em abril, isso não é um boom no consumo de ração para cachorro. Pode ser até uma flutuação da medição.

Se a taxa de desemprego em Oslo diminui de 4 por cento para 2 por cento, ela diminui 2 por cento, não 50 por cento.

Se a China passou de crescer 10 por cento ao ano para crescer 5 por cento ao ano, isso não significa que a China está decrescendo.

Ah! E se a inflação passou de zero em um mês para 0,1 no mês seguinte? E se o economista tinha previsto zero? Em que porcentagem ele errou? Ops, deu pane...! Infinito por cento?

Muitos analistas abusam do uso de porcentagens. Há muitos anos, um famoso economista desqualificava um instituto de pesquisa inglês em artigo na Folha de S.Paulo porque tinha errado a previsão de inflação em 300 por cento. Com efeito, de 0,01 para 0,04. Na imprensa, todos os crescimentos são exponenciais. Alguma vez se ouviu falar em um noticiário de um crescimento que não fosse exponencial? Eles gostam da palavra “exponencial”. A violência, a inadimplência, a contaminação, as neuroses, tudo cresce exponencialmente, ou não cresce. De fato, crescimento exponencial significa taxa de crescimento constante, portanto é natural que os fanáticos por colocar porcentagens em tudo também vejam crescimentos exponenciais. Pior ainda, se a porcentagem cresce, talvez ela também esteja crescendo de maneira exponencial. O que dá exponencial de exponencial, mas não há palavras para isso.

Qual é o impacto social das fake news aritméticas? É de se imaginar que elas influam na tomada de decisões. Por exemplo, se você acredita que a economia está bombando (ou definhando) em função da última porcentagem fake divulgada no noticiário, você poderá decidir expandir (ou contrair) seus gastos, tomar um crédito (ou poupar o dinheiro que está sobrando), investir no seu negócio ou despedir parte do pessoal. Se essas decisões são tomadas por muitas pessoas, elas podem contribuir para disseminar a falsa análise, fenômeno conhecido como "profecia autocumprida", o principal motor dos mercados altamente sensíveis. É difícil prever quando "a realidade" finalmente se impõe e os atores passam a decidir racionalmente. Talvez nunca, o que certamente dificulta a possibilidade de quase qualquer tipo de previsão matemática que envolva decisões humanas. Pessoas racionais não deveriam se endividar com juros de 400 por cento ao ano (essa, sim, uma porcentagem pertinente e bem calculada). Entretanto, o fazem, porque as pessoas consideram engraçado serem ruins em matemática, mas jamais se orgulham de ter dificuldades para interpretar um texto elementar ou entender um comentário na TV.

O caso das porcentagens é significativo porque seu uso errado atinge não apenas amplos setores de população sem treino aritmético, mas também profissionais, jornalistas, formadores de opinião, autores de livros e até cientistas. É muito tentador, quando nossas previsões sobre a evolução de “uma coisa” fracassam, transportar a previsão para “a variação da coisa”. Por exemplo, se somos pessimistas sobre a evolução da violência na nossa comunidade, mas os números indicam que o número de ocorrências diminuiu, podemos apelar para a porcentagem salvadora e detectar que a taxa de diminuição das ocorrências aumentou. Astutamente redigidas, notícias desse tipo resultam em manchetes que circulam na parte inferior da tela de nossas TVs todos os dias.

O mau uso de porcentagens leva a considerar fatos iguais como diferentes e fatos diferentes como iguais. A variação da inflação entre 1 por cento e 2 por cento é muito diferente da variação entre 40 por cento e 80 por cento. A expressão “a taxa de inflação aumentou 100 por cento” se aplica aos dois casos e, portanto, não significa nada.

Tanto nas questões mais complexas como nas mais simples, a abordagem crítica é necessária. E, diga-se de passagem, o mundo assombrado pelas redes sociais não ajuda.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

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