José Mario Martínez

José Mario Martínez, autor da coluna (In)exata, é professor emérito da Unicamp e docente do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica (Imecc). Trabalha em Matemática, Otimização e Aplicações. Desde 1978, ano em que se incorporou à Unicamp, tem publicado artigos e orientado teses na sua especialidade. Atualmente é presidente do Conselho Científico Cultural do Instituto de Estudos Avançados (IdEA) e coordenador de Engenharia Matemática do CRIAB (Grupo de Pesquisa e Ação em Conflitos, Riscos e Impactos associados a Barragens).

Decisões técnicas

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Decisões técnicas são, em geral, tomadas com base em fórmulas ou modelos matemáticos. Existem muitos motivos não técnicos pelos quais decisões técnicas podem estar erradas. Por exemplo, relações de causa-efeito podem ser meras correlações, tautologias ou até definições. (É o caso da "equação monetária" PQ=MV, que tradicionalmente era considerada prova de que a emissão de moeda provoca inflação quando, trocando em miúdos, é apenas a definição de V.) Os modelos técnicos podem ser instáveis, no sentido de que pequenas variações nos dados poderiam provocar grandes variações dos resultados. (Tal como acontece no modelo malthusiano do Clube de Roma, cuja instabilidade foi demonstrada pelo matemático H. Scolnik ainda nos anos 1970.)

Modelos meramente ilustrativos podem ser usados indevidamente para extrapolar variáveis independentes e obter conclusões fora do alcance de validade; decisões técnicas podem esconder interesses de grupos, podem desconsiderar variáveis importantes, podem conduzir a ações com efeitos perniciosos quando a realidade é observada com perspectivas mais amplas, e assim por diante. Previsões baseadas em decisões técnicas disparatadas podem se cumprir pelo efeito autoprofético quando, por sua própria essência, a decisão afeta a realidade na qual ela se insere.

Entretanto, decisões técnicas também podem estar erradas por motivos... técnicos.

Suponhamos que um médico realiza uma pesquisa sobre influência da pressão arterial na probabilidade de infarto. Para isso, coleta dados da pressão arterial diastólica (a "mínima") de homens de 60 anos, acompanha esses homens durante dez anos e registra quantos deles sofrem infarto, dependendo da pressão diastólica que eles tinham aos 60 anos. Não surpreendentemente, registra que a probabilidade de infarto entre os 60 e 70 anos cresce em função da pressão mínima aos 60 anos. Na hora de exibir suas conclusões, desenha um histograma, no qual a primeira coluna registra a proporção de infartos para pessoas com pressão menor que 70 mmHg, a segunda entre 70 e 80, a terceira entre 80 e 90, e assim por diante até a sexta (entre 110 e 120), enquanto a sétima coluna corresponde a "Mais de 120". Cada coluna resulta um pouco mais alta que a coluna à sua esquerda, mas a coluna "Mais de 120" é muito mais alta que a coluna "Entre 110 e 120" e, portanto, muito mais alta que todas as anteriores. Daí nosso médico conclui que a pressão de 120 mmHg é crítica, a partir do que se deduzem diversas medidas preventivas. Qualquer pessoa com bom senso percebe que há uma falha na conclusão. Com efeito, a proporção de infartos na faixa "Mais de 120" é muito mais alta do que nas anteriores porque "Mais de 120" inclui "Entre 120 e 130", "Entre 130 e 140", "Entre 140 e 150" etc. A probabilidade de infarto é cada vez maior, mas não há nenhum salto qualitativo quando a pressão diastólica atinge 120 mmHg. Nenhum médico cometeria um erro técnico tão grosseiro.

Entretanto, esse foi o erro principal que dois celebrados economistas cometeram em 2010, em um artigo onde "pressão diastólica" era a porcentagem da dívida pública em relação ao PIB (Produto Interno Bruto) e "probabilidade de infarto" era a porcentagem de crescimento do PIB. É aceitável que, em média, quanto maior a dívida pública de um país, menor é o crescimento do PIB, embora a relação causa-efeito possa ser enfaticamente contestada. Entretanto, até o artigo de nossos economistas, ninguém tinha percebido que havia um número mágico: 90% de dívida. Tendo sido ultrapassada essa cifra, o PIB despencava inexoravelmente. Ninguém tinha percebido porque esse salto abrupto era falso. Os economistas produziram esse efeito cometendo um erro similar ao de nosso médico imaginário e, adicionalmente, uma penca de erros de estatística elementar. O erro foi descoberto por um estudante, descoberta essa corroborada por seu professor, e objeto, mais tarde, de comentários de economistas muito gabaritados. Era interessante observar, na polêmica suscitada à época, que, segundo os defensores dos celebrados autores, o crescimento do PIB caía com o aumento da dívida, fato que, nesse contexto, ninguém contestava, já que a novidade do famigerado artigo era que 90 era um número extraordinário e com validade universal, assim como o pi (quociente entre circunferência e diâmetro), 9,81 (aceleração da gravidade) e 13,75.

Tratou-se de um caso raro no qual o erro técnico foi constatado, reconhecido e divulgado. Se não tivesse sido assim, provavelmente muitos governos teriam adotado mecanismos para limitar o "teto da dívida" e haveria leis que puniriam severamente a ultrapassagem da cifra 90.

O prestígio dos "modelos matemáticos" é imenso. Afirmações que começam com "os modelos revelam" provocam respeito e admiração. Muitas vezes se atribui aos modelos não apenas o que dizem, mas o que jamais pretenderam dizer. Uma das razões é que muitos modelos não se propõem a revelar mais do que aquilo que já se sabe, ou que foi intuído por outros mecanismos, com modelos ou sem eles.

Em 2019, um grupo de professores da Unicamp descobriu um erro técnico nos argumentos que embasavam a reforma da previdência. O matemático H. Sá Earp explicou o erro detalhadamente em uma audiência pública realizada no Senado. A reforma foi aprovada, mas gostaríamos de imaginar que a constatação do erro provocou, em não poucos legisladores, uma dose de constrangimento.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

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