Foto: Antoninho PerriJosé Alves de Freitas Neto - Professor livre-docente do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e coordenador executivo da Comissão Permanente para os Vestibulares (Comvest). Autor de “Bartolomé de Las Casas: a memória trágica, o amor cristão e a memória americana” (Annablume) e coautor de “A Escrita da Memória” (ICBS) e “História Geral e do Brasil” (Harbra). É autor de diversos artigos e capítulos sobre cultura e política na América Latina (séculos XIX e XX).

 

O México e a festa dos mortos

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Ilustra: luppa SilvaTalvez não exista sentido mais paradoxal que a festa dos mortos celebrada pelos mexicanos. As cidades enfeitadas, as pessoas em êxtase, as comidas, bebidas e flores deslocam o sentido usual que associamos à morte. Os mexicanos, como parte de uma cultura de muitas ressignificações, celebram o Día de los Muertos com uma gigantesca manifestação popular e festiva. Os mortos, como parte do imaginário coletivo, servem para expor indagações sobre o como se vive: falar sobre a morte é falar sobre a vida.

O escritor Carlos Fuentes, em seu O espelho enterrado (1992), afirma que a morte é “o grande espetáculo igualitário que dissolve as fronteiras entre o cenário e a plateia, entre o autor e o espectador, entre o que olha e o que é olhado”. No México festivo está presente um conjunto de heranças dos povos mesoamericanos e suas formas de permanência no imaginário coletivo para além do processo de Conquista espanhola, iniciada em 1519, ou mais recentemente dos impactos da globalizada festa do Halloween.

A cultura dos grandes sacrifícios praticado por maias, toltecas e astecas fez surgir a humanidade, segundo as crenças de um sofisticado sistema religioso.  As celebrações e sacrifícios eram vivenciados em meio às incertezas e catástrofes que remontavam aos mitos fundacionais da Mesoamérica. A história de Quetzalcóatl, a serpente emplumada, por exemplo, tinha grande peso na cultura asteca que acreditava que o mundo já havia sido destruído anteriormente e renascera com os sacrifícios feitos pelos deuses; por isso, era necessário a continuidade de sacrifícios pelos humanos, para a preservação da vida.  Na concepção de mundo dos astecas, vida e morte não eram opostas. A ideia de ciclos que se repetiam sinalizava que o sentido do viver não era a morte, mas uma simbiose de regeneração de forças criadoras.


Uma festa, muitas ressignificações

A proximidade com a data católica do dia de todos os santos e com finados não é casual. Entre as várias datas dos antigos calendários dos povos indígenas e a data consolidada das festas, entre 31 de outubro e 2 de novembro, há a visível apropriação da efeméride e dos motivos das celebrações, como ocorre em outros fenômenos do mundo cristão, como por exemplo, no Natal.

Entre os dias 31 de outubro e 2 de novembro, as cerimônias se materializam em altares com as comidas favoritas dos mortos, além de muitas flores e velas. A construção dos altares é fenômeno familiar de rememorações e de alegrias. Segundo a tradição dos locais, os mortos regressam uma vez ao ano para visitar os parentes.  As mesas fartas, os pórticos floridos e as pessoas fantasiadas de caveiras são uma forma de bem recebê-los e de fazer com que eles não se sintam estranhos. As visitas são desejadas e os anfitriões se caracterizam para estar como os visitantes numa verdadeira festa e sem qualquer conotação macabra.

A premiada animação de Whoo Kazoo sobre o Dia dos Mortos remete a afetos, memórias e festividades da cultura mexicana

Para Octavio Paz, em O labirinto da solidão (1950), o modo como os mexicanos acariciam e celebram a morte tem significados ambivalentes. O mexicano não tem menos medo da morte, ele apenas não a oculta, nem se esconde dela. O efeito paradoxal seria que, talvez por isso, haja tanto desprezo pela vida numa sociedade marcada pela cultura do sacrifício, pela dizimação de milhões durante a conquista e colonização espanhola e na violência que marcou a história mais recente do país.

O caráter popular da festa dos mortos tem uma cara: a Calavera Catrina, de José Guadalupe Posada (1852-1913). Do olhar atento às personagens populares surgiram algumas das gravuras mais conhecidas do México. A gravura da Calavera, por exemplo, circulou em periódicos e hoje é uma das estampas mais características daquele país e foi batizada de La Catrina pelo muralista Diego Rivera (1886-1957), quando a reproduziu em sua obra Sueño de una tarde dominical en la Alameda Central.

O sucesso de Posada, como gravurista que explicitou arquétipos e tipos comuns, deveu-se a seu talento e ao aumento da circulação de uma imprensa ilustrada popular na segunda metade do século XIX. As temáticas da cultura local criaram uma bem-humorada forma de retratar o cotidiano dos mexicanos. A população pouco letrada identificava festas, críticas e uma divertida forma de representação sobre si e seus costumes.
 

Foto: Reprodução
A obra mais popular de Posada refere-se à festa mais popular do México; o sombrero florido, as fortes expressões da caveira e o olhar fixo para o espectador são algumas das peculiaridades de uma construção bem humorada sobre a morte


Uma cultura da ausência?

A peculiar celebração dos mexicanos no Día de los Muertos deveria servir para nos perguntarmos sobre porque evitamos e não queremos lidar com naturalidade ou mesmo pensar a morte de modo festivo. Como os mexicanos conseguem transformar a dor em alegria? Não seria essa alegria um desatino diante do viver?

A história mexicana, em tempos mais recentes, foi marcada por cifras e situações incômodas: mais de 1 milhão de mortos durante a Revolução Mexicana, a série de vítimas da perseguição do sistema político do Partido Revolucionário Institucional (PRI), o massacre de Tlatelolco (1968), os 43 jovens desaparecidos em Ayotzinapa (2014) e os inúmeros casos de mortos na violenta disputa do narcotráfico são pistas para pensarmos sobre os significados da vida e da morte.

A violência não é exclusividade mexicana. A banalidade da vida e da morte espraiou-se por todos os cantos. Mas, entre os latino-americanos, apenas os mexicanos conseguem transformar a morte em algo a ser celebrado e dignificado por outros caminhos. Há muito que aprender nessa forma de viver, de refletir sobre o peso de sua cultura e o modo como nuestros hermanos se reelaboram diante de cada dor e de cada ausência, ressignificando suas próprias experiências e preenchendo seus vazios.

“A morte é intransferível, como a vida”, escreveu Octavio Paz.

Saibamos viver e morrer bem! E, se possível, com muita festa!

 

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