Edição nº 673

Nesta Edição

1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12

Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 24 de outubro de 2016 a 06 de novembro de 2016 – ANO 2016 – Nº 673

Edison Carneiro em seu labirinto


As questões são precisamente analíticas. As categorias são sensivelmente nativas. O estilo é conciso e de um autor curioso. Com seus três capítulos, além da introdução e das considerações finais, Gustavo Rossi nos lança às turbulentas três primeiras décadas do século XX para acompanhar – de perto e de dentro – as metamorfoses da vocação e da trajetória de Edison Carneiro e do campo de estudos das relações raciais no Brasil.

O livro se inicia pelo fim. O mote é a homenagem quase póstuma a Edison Carneiro, na forma de um artigo publicado em 1972, pelo grande amigo Aydano do Couto Ferraz, o qual celebra o fiel estudioso do elemento negro no Brasil. Se parte da tarefa etnográfica consistiria em encontrar bons informantes, desde as primeiras linhas anunciam-se os bons resultados da pesquisa, que nos leva ainda ao diálogo com Jorge Amado, Arthur Ramos, Gilberto Freyre, Ruth Landes e membros da família Souza Carneiro.

Na introdução ficamos sabendo um pouco mais de um olhar sobre a “vocação perdida”, que diz tanto sobre Edison como sobre o espaço intelectual em que ele se move. Longe de se deixar envolver nas tramas das ilusões biográficas, vamos sendo apresentados aos principais objetivos do percurso, e que se referem à “maneira como Edison, sua produção e seus universos de experiências expressam processos e condicionantes mais abrangentes do modelamento da atividade intelectual no Brasil: sobretudo aqueles que nos remetem ao desenvolvimento dos estudos sobre raça...” (p. 29).

Mas como compreender as ambivalências de uma trajetória e de um campo de estudos em momentos decisivos de suas metamorfoses?
Eis o desafio sem fórmula de partida, mas com maestria analítica ancorada nas miradas de Norbert Elias, Pierre Bourdieu e Heloísa Pontes, entre outros. Os recortes operados pelos três capítulos compõem um denso labirinto em que classe, raça e gênero podem ser vistos em construção mútua e instável, tal como sugere Anne McClintock.

No capítulo sobre os Souza Carneiro somos confrontados com a família de Edison em suas relações com as elites baianas da época, capitaneada pela figura polivalente do pai, Antonio Joaquim de Souza Carneiro, o engenheiro “mulato” que morre “branco”. Os efeitos de tais relações nas identidades sociais e raciais dos membros da família são exemplificados especialmente para os casos do pai e do filho Edison, este último comparecendo com seus primeiros experimentos poéticos em que se objetivam autopercepções de cor, classe e gênero.

A “modernidade e o modernismo vistos da província” é o convite do capítulo seguinte, em que se delineiam aspectos da Academia dos Rebeldes, o grupo de jovens aspirantes “à projeção intelectual”, e no qual Edison Carneiro teve papel ativo. Tanto pelo espaço de distinção e inscrição que tal grupo constituía no espaço social baiano, quanto através do cenário de conversão ideológica de Carneiro ao comunismo, podemos acompanhar a frustração e a melancolia de outros modernistas, motor para a disposição ambivalente de muitos dos intelectuais que se lançaram então em direção ao “povo”.

No último capítulo são os estudos afro-brasileiros, como um campo de ressonâncias e disputas múltiplas, que emergem e se consolidam, principalmente, a partir dos ditames de Gilberto Freyre e Arthur Ramos, os “donos do assunto”. Gingando em meio aos padrões acadêmicos que reconheciam “o negro” como objeto de valor no campo do conhecimento, mas impunham sua tutela na vida civil, Edison Carneiro mobilizava “de maneira difusa e um tanto desprovida de métodos e de teorias mais bem articuladas” (p. 206), a análise sobre o negro no Brasil nas fronteiras de classe social e raça, ao mesmo tempo em que levantava a bandeira da autonomia dos grupos religiosos afro-brasileiros.

Esse excelente capítulo de conclusão demanda algumas promessas de desenvolvimentos futuros, tais como as fases seguintes da trajetória de Carneiro, das quais apenas destaco a relação com o chamado “movimento folclórico”. Este, embora plenamente visível apenas na década de 1940, apresentava já então suas expressões iniciais em alguns escritos de Carneiro, e sugere que na própria articulação entre saberes – etnografia e folclore – poderia residir mais uma de suas feitiçarias.
Sensível à lógica outra que traçava Edison Carneiro, O intelectual feiticeiro é uma irrecusável companhia para pesquisadores, educadores e todos aqueles interessados nos labirintos em que raça, classe e gênero gestam trajetórias e campos, na mesma medida em que vão sendo produzidos por estas.

Mauricio Acuña é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (USP) e do Department of Spanish and Portuguese (Princeton).

Serviço
Título: O intelectual feiticeiro — Edison Carneiro e o campo de estudos das reações raciais no Brasil
Autor: Gustavo Rossi
Editora da Unicamp
Páginas: 280 páginas
Área de interesse: Antropologia
Preço: R$ 48,00
www.editoraunicamp.com.br