Edição nº 665

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 15 de agosto de 2016 a 21 de agosto de 2016 – ANO 2016 – Nº 665

Tese expõe problemas fundiários do Acre

Estudo do Instituto de Economia
propõe melhor governança de terras

O sistema brasileiro de gestão do uso e ocupação da terra é caótico, com atribuições sobrepostas e isoladas entre órgãos das diversas esferas do governo que não compartilham integralmente as informações entre si, além de ser regido por uma legislação complexa, às vezes contraditória e de interpretação instável, disse o pesquisador Elyson Ferreira de Souza, autor da tese de doutorado “Os problemas fundiários do Acre: um estudo para uma melhor governança de terras”, defendida no Instituto de Economia (IE) da Unicamp.

Para o autor, a principal contribuição do trabalho parte do conceito norteador de “governança de terras”. A governança da terra, resume ele, é “um conceito em que o conjunto de regras, processos e organizações pelo qual se determina o acesso e a gestão do uso da terra é decidido conjuntamente entre todos os setores da sociedade: governo, organizações não governamentais, setor privado e a sociedade civil.”

O conceito de governança de terras foi primeiramente desenvolvido pelo Banco Mundial, e, a metodologia LGAF (sigla de “Land Governance Assessment Framework”, ou “Quadro de Avaliação da Governança da Terra”), específica para avaliação da governança fundiária e utilizada na tese, reuniu todas as organizações ligadas ao setor fundiário e, por meio de consenso, avaliou a governança de terras no Acre. A tese foi orientada pelo professor Bastiaan Philip Reydon.

Brasil
Parte da pesquisa envolveu um estudo histórico do quadro institucional brasileiro, a questão dos direitos de propriedade e a necessidade de governança fundiária num sistema regido pela economia de mercado. “É um desenho no qual as organizações fundiárias não conversam entre si. Temos diversas leis e instituições fundiárias que atuam e se sobrepõem”, disse o pesquisador. “Há uma histórica incapacidade do Estado em gerir suas terras, e os agentes especulativos se aproveitam disso obtendo ganhos extraordinários”.

Souza cita o cenário de concentração fundiária existente no país, as elevadas extensões territoriais anualmente desmatadas, altos ganhos especulativos com terras e elevados conflitos fundiários. “Enquanto tudo isso acontece, administrativamente, cada instituição age para resolver seus problemas imediatos e terceiriza as dificuldades para as demais”, resumiu.

A tese propõe um sistema institucional integrado, a exemplo do modelo holandês ou alemão. A despeito do foco no Acre, os problemas e soluções apontados na tese, diz o autor, são gerais: “Você pode pegar um Estado ou outro, os problemas fundiários se assemelham: no meio urbano, é o surgimento de bairros sem o menor planejamento e loteamentos clandestinos; no meio rural, é o caso de grilagem de terra, ou seja, a pessoa que se apropria de terra pública por não haver fiscalização ali – é muito corriqueiro isso, especialmente na Amazônia. E essas propostas de solução aos problemas fundiários sugeridos ao Acre podem ser aplicáveis a qualquer Estado brasileiro. Dependem de vontade política para implementá-las”.

Soluções
Para o problema da desarticulação das políticas sobre uso e gestão da terra, Souza propõe a criação de comissões municipais e estaduais. “Os problemas acontecem no município. E as comissões municipais e as estaduais seriam um ‘locus’ para que cada município ou associação de municípios, inclusive o Estado, possa discutir as questões de gestão e uso do solo”.

Outra ideia obtida na pesquisa é a criação de um cadastro único, tanto para as terras públicas, como para as particulares, defendendo a integração das organizações governamentais com os cartórios com ampla transparência.

Souza propõe “que seja criado um cadastro único para terras públicas, um cadastro único para terras privadas, sempre inserindo nisso os cartórios, porque são os cartórios que registram, que emitem os títulos. Temos muitos órgãos atuando, todos eles dispersos. A proposta desta tese é que trabalhem conjuntamente”.

O pesquisador sugere, ainda, o estabelecimento de um centro de capacitação em assuntos fundiários para realização de pesquisas e capacitação de técnicos efetivos para as organizações.

“A gente vê uma rotatividade muito grande nas organizações fundiárias, com diversos cargos comissionados, nomeados. Quando a pessoa finalmente pega ritmo, sabe o que está acontecendo, muda o governo, muda a equipe, perde-se a memória”.  O centro de capacitação permitiria que os funcionários obtivessem preparação e chegassem a uma interpretação mais uniforme das regulamentações em torno da questão da terra. “Haveria seminários, reuniões, cursos e debates para que uma lei que vem sendo interpretada de uma forma por um órgão possa ser interpretada do mesmo modo por outro, para que haja uniformidade de interpretação, evitando conflitos interpretativos entre técnicos das organizações fundiárias”.

Interesses
O caos institucional no setor fundiário “foi desenhado”, disse o pesquisador. “A literatura enfatiza que desde a lei de terras de 1850, a gente vê a formação de um conjunto de brechas de legislação que propicia a caótica situação fundiária do país. Hoje existem decisões sob demanda. O governo age quando provocado, quando há um grave conflito, uma denúncia, um caso que atinge a mídia”.

O pesquisador aponta, ainda, o profundo desconhecimento do governo sobre a situação das terras no meio rural, principalmente na Amazônia. “Há uma falta de conhecimento sobre o que se tem, falta de fiscalização da quantidade de terra, não se sabe hoje quanta terra devoluta há na Amazônia, e nem onde estas terras estão”, descreve. “Já os agentes especulativos sabem onde estão essas terras sem fiscalização. Eles se apropriam dessas terras, conseguem a emissão de títulos falsos, e se apropriam de milhões de hectares, é o caso das grilagens”, descreve.

“Depois, essas pessoas têm ganhos astronômicos: apropriam-se de terra pública, desmatam e têm ganho econômico com a venda de madeira, depois vendem a terra desmatada para pastagem”. O cenário é de leis ultrapassadas, especulações fundiárias, males sociais e ambientais, conflitos por terras e incapacidade do Estado em gerir as terras, enumerou o pesquisador.

“Terras desconhecidas, intervenção de agentes especulativos, uma concentração fundiária muito grande, derrubada de madeira para vender, expulsão de pessoas que estão ali, dos moradores tradicionais, o que desemboca em conflitos”, prosseguiu. “E aí o que se vê hoje é um cenário caótico das terras brasileiras, especialmente com a investida de agentes especulativos para se apropriar, seja para vender a terra, para explorar os recursos minerais, para vender madeira, ou explorar recursos hídricos... Então os interesses são vários. O que se tem hoje é uma falta de governança sobre as terras. Leis ultrapassadas, que se contradizem, e uma classe política que não está muito interessada em resolver o problema. Uma ou outra iniciativa é feita, mas com pouco fôlego, poucos recursos, equipe reduzida, como é o caso do Programa Terra Legal”.

Acre
O objetivo da pesquisa foi identificar o nível de governança nas terras do Acre, à luz da avaliação das organizações fundiárias do Estado, propondo políticas alternativas para os possíveis problemas encontrados. 

Para atingir aos objetivos da pesquisa, Souza buscou identificar quais os determinantes da complexa situação fundiária no Acre. O Estado do Acre, disse ele, foi escolhido como base para a tese por conta de uma série de características especiais.

“O Acre é uma região de fronteira com Peru e Bolívia, e as terras que são hoje o Estado do Acre eram desses países; passou pela condição de Estado Independente de Galvez, depois de Plácido de Castro; foi Território Federal e por fim, foi elevado à categoria de Estado. Sendo expedidos títulos de posse de terras em todas estas situações”.

O Estado também tem a peculiaridade de ser uma área de fronteira, com legislação específica para administração de terras. E foi palco de uma luta intensa contra o desmatamento e a apropriação de terras por especuladores, especialmente, nos anos de 1970. Souza cita os “empates”, quando ativistas se punham diante dos tratores e motosserras para evitar a derrubada da floresta, “empatando” o avanço do desmatamento.

Desse movimento, participaram várias lideranças da academia, imprensa, igreja e movimentos sociais, incluindo Chico Mendes e Marina Silva. A partir disso tudo, algumas iniciativas interessantes surgiram, destaca o pesquisador, como a criação das Reservas Extrativistas, o pioneirismo na elaboração do Zoneamento Ecológico Econômico e a diminuição das áreas em conflito. “Contudo, a exemplo do que acontece em todo o país, ainda há muito que avançar para a efetiva governança de terras urbanas e rurais no Estado, como é o caso dos problemas de integração de ações e informações, e o compartilhamento disto com a sociedade”, afirma.

Publicação

Tese: “Os problemas fundiários do Acre: um estudo para uma melhor governança de terras”
Autor: Elyson Ferreira de Souza
Orientador: Bastiaan Philip Reydon
Unidade: Instituto de Economia (IE)