Edição nº 659

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 13 de junho de 2016 a 19 de junho de 2016 – ANO 2016 – Nº 659

Judicialização da saúde expõe
divergências entre instâncias

Estudo mostra que usuários nem sempre
obtêm êxito quando lutam por seus direitos

A judicialização da saúde no Brasil é o fenômeno pelo qual as pessoas buscam garantia de acesso às ações e aos serviços públicos de saúde por meio de ações judiciais. Ela às vezes é necessária pois a política de saúde pública é permeada de contradições. É o caso do Sistema Único de Saúde (SUS). No discurso, trata-se de uma política universal com princípios e diretrizes que deveriam ser aplicados uniformemente a todo território nacional. Não é o que ocorre. Desta forma, os usuários acabam tendo que procurar alternativas para garantir seus direitos, sendo uma delas a judicialização.

Ocorre que, enquanto instituições como o Conselho Nacional de Justiça, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS e a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgam recomendações diante da complexidade do tema, o Judiciário ignora boa parte das principais discussões, que nem sempre chegam aos autos. Existe também um distanciamento decisório entre a primeira e a segunda instâncias e da atuação das Organizações não Governamentais (ONGs).

Essas conclusões estão no estudo de mestrado da advogada Keyla Ketlyn Passos Pimenta, que foi desenvolvido na Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) e realizado na comarca de Campinas. A legitimação nas decisões pelos magistrados, quando o tema é o SUS, ainda não está livre dessas divergências. “O trabalho com essa comarca revela muito sobre a judicialização da saúde pública no país, sinalizando uma realidade ignorada em nível dos ‘autos processuais’ dos tribunais: existe muita incongruência entre as posições dos juízes de primeira e de segunda instâncias.”

Em uma realidade local, em que o fenômeno da judicialização da saúde pública não contempla os extratos mais baixos da sociedade e é permeado pelas pouco esclarecidas relações entre seus atores, o Judiciário se mantém à margem da realidade dos fatos, que vai muito além dos aspectos jurídicos.

Na opinião da pesquisadora, essas conclusões não deslegitimam ou desqualificam completamente a interferência judicial, mas apontam sim que o Judiciário carece de conhecimento sobre os elementos da realidade em que atua e que, agindo de forma não articulada, como os outros membros do poder público, não consegue mitigar o problema da saúde pública brasileira.

Campo
No estudo, Keyla avaliou o fenômeno da judicialização com foco em um conjunto de ações judiciais, partindo da análise de uma amostra recente de processos judiciais da comarca de Campinas. Buscou descrever como a justiça comum civil de primeiro e de segundo graus do Estado de São Paulo, nas ações advindas da comarca de Campinas, tem se manifestado sobre o acesso às ações e aos serviços públicos da saúde; e em descrever e analisar os elementos do contexto dessas demandas judiciais.

A autora do estudo entendeu como elementos todas as informações constantes dos processos que tenham sido julgadas pertinentes para a análise do fenômeno, como a idade do autor, a patologia que o acometia, a descrição do pedido, o lapso temporal da decisão.

Também entraram nessa análise os elementos não explicitados nas ações, mas que foram do conhecimento de Keyla por meio de advogados ou de outras instituições envolvidas nos processos, como a atuação de organizações, a condição econômica do autor, entre outros.

Ela contou que, como o estudo nasceu de um programa interdisciplinar da FCA, o enfrentamento da problemática trouxe uma análise integrada entre elementos do direito e da gestão pública.

A sua expectativa é contribuir para propiciar uma visão com referencial e direção diferentes dos tradicionais, estritamente disciplinares. É ajudar a alimentar as informações do Estado sobre o tema, colaborando para uma melhor gestão das políticas públicas de saúde, especialmente em âmbito local e regional. “Que essas informações sejam lidas pela comunidade local e que a comunidade jurídica, os membros do Judiciário, as instituições governamentais e não governamentais, e os cidadãos possam discutir juntos sua realidade, seus problemas, caminhando para as soluções do problema social referido no estudo.”

Resultados
As pessoas recorrem ao Judiciário, no caso da saúde pública, quando não têm suas demandas atendidas pelo SUS. Isso ocorre das mais diversas formas. São muitos os casos, desde pessoas que pedem por tratamentos milionários no Exterior até aquelas que pedem medicamentos rotineiros que não foram disponibilizados.

Há pessoas que pedem medicamentos não registrados na Anvisa por serem ainda experimentais; há aquelas que pedem serviços ou insumos não disponibilizados pelo SUS, principalmente próteses e órteses específicas, em razão de determinado material e estrutura; há ainda aquelas que pedem medicamentos de determinada marca por não estarem satisfeitas com o genérico fornecido pela rede pública; e também há aquelas que recorrem ao Judiciário em razão da falta de algum produto já padronizado, mas que está em falta por problemas de aquisição ou distribuição.

No Brasil, a tentativa de resolver conflitos políticos em saúde por meio do Poder Judiciário tornou-se relevante somente após a promulgação da Constituição Federal de 1988. A Carta Magna possibilitou a atuação do Judiciário em matérias que eram a priori apenas da alçada dos poderes Legislativo e Executivo.

Afastando-se do sistema constitucional anterior – que permitia, por meio da legislação infraconstitucional, limitar a assistência terapêutica aos segurados da Previdência Social (art. 165, inciso XV, da Carta Magna de 1967) –, a Constituição consagrou a saúde pública como direito social de todos os brasileiros (art. 6º). A partir daí, o fenômeno se desenvolveu.

Keyla escolheu a comarca de Campinas por encontrar boa parte dos dados disponíveis já em meio digital e pela sua familiaridade com o sistema judicial local, porque já trabalhou nessa comarca. Foi assim que constatou incongruências entre as posições dos juízes de primeira e de segunda instâncias.

Verificou que os de primeira instância mostraram mais elementos de convicção em suas decisões em relação ao deferimento ou indeferimento do pedido dos autores das ações estudadas. Tal variedade ligou-se à patologia dos autores, ao tratamento pedido, à urgência e às convicções de cada julgador.

De forma geral, em primeira instância, 58% das decisões deferiram (houve concessão) o pedido do autor, 37% indeferiram e 5% deferiram parcialmente. Já, em segunda instância, observou-se padronização das decisões para o deferimento dos pedidos dos autores, sendo que 89,5% das decisões do tribunal foram totalmente favoráveis aos autores, 7% parcialmente favoráveis e 1% não favoráveis.

Esse distanciamento decisório tem relação com a posição adotada pelo tribunal estadual, que segue as orientações dos tribunais superiores. Por outro lado, a maior variedade de decisões encontradas em primeira instância é mais complexa de ser explicada.

Uma hipótese é de que a proximidade entre o juiz, patronos, autor, réu e inclusive administradores públicos locais é maior e faz com que o julgador pondere mais em suas decisões, considerando elementos específicos de cada caso concreto, não se vinculando tão fortemente às orientações dos tribunais superiores.

Com relação à atuação de instituições, o aspecto mais curioso foi a identificação de duas entidades sem fins lucrativos que atuam no tema, servindo de ponte entre advogado e cliente em parte das ações da amostra. São elas a ONG Saúde em Vida (Associação de Assistência a Portadores de Hepatites e Transplantados Hepáticos do Estado de São Paulo) e a Afag (Associação dos Familiares, Amigos e Portadores de Doenças Graves).

A ONG Saúde em Vida desempenha um papel atuante no fenômeno de judicialização na Comarca de Campinas, na medida em que informa os pacientes sobre a via judicial, indica advogados e tem sua própria assessoria jurídica para esse fim específico. A Afag informa a população sobre o recurso judicial e como buscá-lo.

“Um aspecto impactante é que as informações coletadas sugerem relações entre laboratórios, clínicas, médicos, advogados e associações sem fins lucrativos. Estas relações podem estar sendo usadas pela indústria na formação e articulação de mecanismos para vender melhor seus produtos ao setor público”, sinalizou a autora.

Os dados dessa pesquisa, comentou, comprovam que a indústria farmacêutica movimenta significativa monta de recursos financeiros no Estado em razão do fenômeno da judicialização e, por isso, é necessário considerar que as relações estabelecidas entre clínicas, farmacêuticas, médicos, advogados e associações sem fins lucrativos podem ser articuladas de modo a maximizar o ganho do mercado, em supressão aos interesses públicos.

Caso essa hipótese se confirme no futuro, também é possível que alguns atores envolvidos possam não ter plena consciência dos estímulos que recebem para divulgação de determinadas informações e não discussão/disseminação de outras desfavoráveis a esse mercado.

Keyla salientou que os resultados desse estudo podem ser extrapolados para outros Estados e comarcas. Mas o fenômeno da judicialização da saúde não é necessariamente permanente ou uniforme e também não se esgota no ativismo de minorias políticas. “Muitos atores e interesses estão envolvidos no fenômeno, em escala local e global, e cada tema demanda minuciosa reflexão”, ponderou.

Publicação

Dissertação: “Judicialização da saúde pública no Brasil: o que nos mostra o caso de Campinas”
Autora: Keyla Ketlyn Passos Pimenta
Orientador: Oswaldo Gonçalves Junior
Unidade: Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA)