Edição nº 656

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 16 de maio de 2016 a 29 de maio de 2016 – ANO 2016 – Nº 656

‘Os termos, em política, envolvem
sempre um jogo de forças e poder’


(Continuação da página 5)

Como o sr(a). vê, tanto do ponto de vista legal quanto do impacto institucional, o processo de impeachment conduzido contra a presidente Dilma?

Eduardo Fagnani

Do ponto de vista da gestão orçamentária, está provado que não há crime de responsabilidade. Juristas que ignoram a dinâmica do capitalismo estão criminalizando a gestão macroeconômica num contexto de crise estrutural. Como disse recentemente um senador da República, o objetivo não é o impeachment de Dilma Rousseff, mas o “impeachment de Keynes”. Entre 1999 e 2013, o Brasil fez superávit primário – sem despesas financeiras – de cerca de 3% ao ano, em média. Foi um dos poucos países do mundo que fez isso. A dívida líquida em relação ao PIB caiu de 60% para 33%. A crise do capitalismo pós 2007 restringiu as possibilidades da economia doméstica. Um déficit primário de 0,6% a 1,5% do PIB – obtido em 2014 e 2015 – é irrelevante na comparação internacional. Diversos países têm déficits superiores a 7% do PIB desde 2008.

O impacto institucional do golpe será dramático. Uma irresponsabilidade assombrosa do poder econômico nacional e internacional que, mais uma vez, não respeitou o veredicto das urnas.  Marionetes desses interesses, políticos da oposição jogam na lata do lixo o interesse nacional em favor de objetivos pragmáticos de curtíssimo prazo. Nossa democracia é extremamente frágil. O último ciclo foi iniciado há menos de 30 anos. A nova fratura da democracia poderá ter efeitos devastadores por muitos anos, interditando o futuro e o processo civilizatório nacional.

Francisco de Oliveira

Trata-se de um golpe de Estado, mas o Brasil é sempre muito inventivo. É um golpe de Estado constitucional, está previsto na Constituição. Não é nada original. Temos por hábito copiar muito os Estados Unidos – [Richard] Nixon renunciou para evitar o impedimento, mas o Brasil é mais realista. No caso de Fernando Collor, por exemplo, ele renunciou, assim como Nixon, para evitar o impedimento, mas o Congresso assim mesmo o destituiu. O que importava era cassar os direitos políticos, o que naquele momento só era possível por meio do impeachment.

Na verdade, Dilma já havia perdido força política, e o PT não saiu em sua defesa no primeiro momento. Não haveria o que evitasse esse desfecho.

José Arthur Giannotti

O processo é, a meu ver, totalmente normal quando há vácuo de poder. Sabemos que a presidente Dilma Rousseff ganhou a eleição, mas não levou. Apresentou-se na reeleição com um projeto de continuidade que negou tão logo propôs o ajuste fiscal, e assim por diante. Deixando de lado os pormenores mais ou menos ridículos do confronto entre o governo e oposição, importa que o processo decisório ficou emperrado, e tudo se dissolve no ar. Até mesmo aquele “projeto de novo capitalismo” que os ideólogos inventaram para dar nome à bagunça causada pelo intervencionismo esdrúxulo da política econômica. O processo político passa pelo impeachment para que se forme um novo grupo governante, seja do lado que for.

O ponto de partida é uma acusação de um crime de responsabilidade ou de algum outro semelhante. Como todo processo criminal, uns acreditam na inocência, outros na culpa da vítima, mas a decisão agora não é tomada pelo juiz, mas pelo Congresso: é o modo de mostrar que o vencedor tem força para iniciar um novo governo. Todos os passos têm seguido os trâmites determinados pelo STF. Aonde está o golpe?

Impressiona, porém, como os atores tendem a transformar as leis e os regimentos em alavancas para abrir espaços que lhes beneficiem. A despeito da ambiguidade de qualquer lei, cada uma exige uma zona de definição que precisa ser compartilhada para que o processo jurídico-político funcione. As zonas cinzentas não transformam tudo numa diarreia generalizada.  Mas se cada ator pode intervir no processo, sem levar em conta sua articulação no sistema, instala-se a mais pura anomia. O que fez o impávido Waldir Maranhão? Este país nem sempre foi considerado sério. Não corremos, porém, o risco de virar um país de palhaços?

Leandro Karnal

Os termos, em política, envolvem sempre um jogo de forças e poder. Os dois lados que estão se enfrentando têm projetos políticos distintos, mas têm em comum o fato de que podem travestir de justiça, constitucionalismo, fidelidade às leis, distribuição de renda – mas o que está em jogo é poder. E toda política é orientada em nome de um jogo de poder, um poder que se tenta de todas as formas, a todo instante. Então, utilizar a expressão “impeachment por pedalada fiscal” ou utilizar a expressão “golpe” são argumentos retóricos dos dois lados, para justificarem só e unicamente o que desejam, que é a questão do poder. Poder é o grande objetivo da política. Se para isso é preciso fazer acusações de golpista ou de pedófilo, isso é secundário. A verdadeira grande questão diz respeito ao poder.

Rogério Cezar de Cerqueira Leite

Discordo do processo de impedimento da presidente. Inicialmente, porque é institucionalmente ilegítimo, pois as assim chamadas “pedaladas” eram uma prática tradicional, realizada não somente pelos governos anteriores como também pelo próprio vice-presidente Michel Temer, que no caso do impedimento, será o próximo presidente da República. Não há nada mais obscenamente estapafúrdio do que você tirar da Presidência uma pessoa reconhecidamente honesta e passar para as mãos de outra que efetuou as mesmas transgressões e que, além do mais, é indiciada em muitos outros processos.

Simon Schwartzman

Eu acho que o processo de impeachment é completamente normal e legal. Foi feito de acordo com o que está previsto na Constituição. E o crime de responsabilidade está configurado, de acordo com o entendimento da Câmara dos Deputados, que tem a autoridade para definir isso. As alegações de golpe são completamente infundadas – é um argumento de retórica, que não tem nada a ver com a realidade. É um processo perfeitamente legal, sancionado pelo Supremo Tribunal Federal, votado pelos deputados, sem problema nenhum.

Walquíria Leão Rego

Não sou jurista, mas leio os juristas, dialogo bem com eles, leio sempre que posso suas análises e a maioria esmagadora considera ilegal o impeachment da presidente Dilma. Além do que, conheço muitos professores de Direito, de várias partes do país. Então, digamos, não sou a pessoa adequada para falar do ponto de vista estritamente jurídico.  Falo apenas como cidadã de uma democracia constitucional. Sabe-se que o impeachment é, fundamentalmente, um processo político, mas que exige sólida fundamentação jurídica. Não está disponível apenas para satisfazer apetites de poder de certos setores políticos. Afinal, constitui uma figura do Estado de Direito, que por definição é um estado organizado por normas jurídicas.  

Em nosso caso presente não só é ilegal, por tudo que já li, como pelas provas que foram apresentadas a favor da inocência da presidenta: ela não cometeu crime de responsabilidade.  Além do quê, créditos suplementares como causa de impedimento de uma presidenta eleita legitimamente seria um casuísmo absurdo, pois semelhante prática administrativa foi feita por governos anteriores e nunca suscitou esse tipo de dúvida, esse tipo de problema. O argumento a que os golpistas têm recorrido denota um cinismo, uma desfaçatez inacreditável. Tentam sofismar grosseiramente. Ah, mas o instituto do impeachment está previsto na Constituição. Bom, também está previsto na Constituição que o Brasil pode declarar guerra. Está previsto na Constituição que o governo pode declarar estado de sítio. O cinismo está em ocultar, do argumento, as condições em que tais preceitos podem ser acionados.  Não se sai declarando guerra e estado de sítio a torto e a direito.

A questão dos créditos suplementares foi o pífio pretexto que arrumaram. Levaram a cabo, desde as eleições, uma politica de enfraquecimento do governo, obstruindo na Câmara sistematicamente, através das tais pautas-bombas, qualquer medida governativa. Em síntese, não deixaram a presidenta governar. A isto tudo se soma a aliança perversa com a mídia, com os grandes meios de comunicação, e uma parte significativa da Polícia Federal e do Judiciário. É um golpe muito articulado, se apossaram de todos os recursos de poder.  Não tenho a menor dúvida de que há um golpe, pois não há crime de responsabilidade. A presidenta não o cometeu e eles sabem disso. 

O que querem de verdade é interromper o projeto de um governo popular, assim como fizeram com Getúlio Vargas em 1954, e em 1964 com o presidente João Goulart.  É disto que se trata. Aliás, praticamente são as mesmas forças políticas que protagonizam o golpe de agora. Sequer escondem que se apossam da mesma linguagem lacerdista de vestal da moralidade publica: mar de lama invade o país. Caos governativo, etc e tal.

Do ponto de vista conceitual, pode-se dizer que já estamos mergulhados em casuísmos jurídicos e arbítrio desenfreado, portanto estamos vivendo em Estado de Exceção. Destruiu-se nosso Estado de Direito. Basta ver o arbítrio realizado com essas prisões, as delações premiadas que vazam seletivamente para a mídia, as conduções coercitivas, a humilhação pública dos simplesmente citados pelos delatores.  Como não conseguiram derrotar o projeto popular pelo voto, demonstram sua fúria destrutiva recorrendo a vários instrumentos de arbítrio, visando a destruição de certas forças políticas. Para tanto, não hesitam em manipular informações, aterrorizar a população através de um massacre midiático se utilizando de técnicas manipulatórias nazistas. Perderam qualquer pudor na sanha ensandecida de eliminar da cena pública seus adversários políticos. Ou seja, não visam apenas derrotar o projeto, mas sim destruí-lo completamente. 

Foi isso que fizeram em 1964, com a ajuda dos militares que, no contexto da Guerra Fria, eram seu mais eficiente instrumento de Estado.   Utilizaram-no e, agora, utilizam-se de instrumentos como a PF, e uma parte do Ministério Público. Neste arco de aliança, destaca-se tragicamente a grande imprensa, que com as honrosas exceções se constituiu no ator fundamental deste atentado à democracia.  

Se você prestar atenção, basta acompanhar as falas dos comentaristas, os noticiários por rádio e televisão, o massacre mental começa às 5h da manhã e vai o dia inteiro. Seu cardápio se compõe de injúrias e calúnias a certo partido e a certas figuras. Como faziam os nazistas, que se referiam à esquerda se utilizando fartamente da acusação sem provas, repetindo dia e noite palavras como ladrões, bandidos, corruptos. A literatura sobre isto é farta e está presente em nossas bibliotecas.

 Outro ângulo importante de ser destacado nesta história é a demonstração cabal do desrespeito absoluto ao voto popular, à soberania popular. Que estão dizendo ao povo? Seu voto não vale nada. Qualquer maioria congressual, formada pelos métodos mais ilegais e imorais, qualquer grupo de empresários de grande poder, pressiona, e nós derrubamos o presidente que você elegeu. Estão desmoralizando o voto. E, assim sendo, demonstrando, mais uma vez, sua prepotência de donos do país e dos sentimentos públicos.

É bom lembrar que no dia seguinte à eleição já começaram a pedir recontagem dos votos, anulação das eleições, e, no ponto culminante da desfaçatez, que se diplomasse o candidato derrotado e não o vencedor.  Então, desde o início, deram provas eloquentes de que não aceitavam os resultados eleitorais.  Romper com as regras básicas do jogo democrático só tem um nome: golpe. A grande mídia envenenou de tal modo a classe média – que por sua própria posição social, tende a ter horror do povo. Sua tendência principal é olhar para cima da escala social. Os exemplos destas construções midiáticas são inúmeros.  Basta examinar um pouco como são feitas as fotografias e os textos que falam da presidenta e de figuras como o ex-presidente Lula. Um fotógrafo estrangeiro observou isto e ficou escandalizado.

Tudo somado, temos diante de nós uma configuração complexa. Os analistas terão que relacionar cada elemento dela para fazer uma boa análise sociológica.  Não é simples, não.

Se consumado o impeachment, quais suas perspectivas para o futuro?

Antonio Marcio Buainain

Vejo o futuro de maneira muito pessimista. Acredito que a verdadeira dimensão da crise ainda não veio à tona. O iceberg ainda não mostrou todo o seu volume, apenas uma ponta robusta: 11 milhões de desempregados, empresas fechando, Estados incapazes de pagar seus funcionários, desânimo...

A crise é maior do que se pensa. E, do mesmo modo que a oposição que defende o impedimento não se interessou em revelar a natureza do crime de responsabilidade fiscal, também não se preocupou em construir uma base política sólida para implementar as políticas que serão necessárias para tirar o Brasil da crise.

A base do vice-presidente Michel Temer é uma geleia mole e disforme, que não dá condições de se fazer as reformas necessárias, e nem para apenas mitigar os efeitos da crise. Unir forças contra a presidente Dilma tem sido uma tarefa fácil, tamanha a inabilidade política e a incompetência dela como executiva. Quero saber se será suficiente para manter a união pelas reformas. Porque já se vê, dentro da base, gente falando que não vai aceitar mudanças na lei trabalhista, na Previdência. A base já revela sua fragilidade. Isso fica evidente, por exemplo, no recuo da boa intenção de cortar ministérios. Talvez se possa dizer, com ironia, que o vice-presidente acabará tendo de aumentar os ministérios, para atender a todos.

Acredito que o impedimento da presidente é necessário, porque um crime grave, cujo resultado é a situação atual, foi cometido. O processo é legal. Mas não haver a construção de uma base programática é problemático. Dentro da base, cada um tem uma receita para o país. Não há um time escalado, não há um plano claro – cada ator entra em campo pensando em fazer seu jogo particular, o que é receita para um novo 7 a 1. Contra o país.

Augusto de Campos

Não sei o que pode acontecer. Precisaria ter bola de cristal. Mas eu vejo tudo com muita apreensão, porque está claro que assoma o poder o mesmo grupo que sempre esteve associado às faixas mais conservadoras e reacionárias da nossa sociedade.  De certa forma deu-se, voluntária ou involuntariamente, uma espécie de conspiração, que envolveu todas as áreas institucionais.  E a grande mídia teve muita responsabilidade nisso. Sou inteiramente favorável a que se penalizem malversadores dos dinheiros públicos, que se obtenham restituições e reparações de danos daqueles que se comportaram desonestamente. Mas o que ocorreu nos últimos tempos ultrapassou toda a medida. Houve uma inversão de valores jurídicos e éticos relevantes. 

Citem-se a complacência e a heroicização de delatores intimidados, a imprensa a divulgar antieticamente matérias que ainda estavam sub judice, acarretando inversão de princípios básicos do direito como a presunção de inocência, de sorte a inculpar o denunciado antes de julgado. Acho que houve muito direcionamento também da Justiça. Procedimentos seletivos, em relação a pessoas, partidos e momentos políticos, com apressamento de alguns casos e retardamento de outros. 

Apesar de louvar a punição dos empresários que superfaturaram produtos e receberam lucros ilegítimos, assim como a dos políticos que se deixaram seduzir por eles, é evidente que isso também não foi invenção do último partido que estava no poder, por isso mesmo mais vulnerável a corrupção, mas sempre foi uma prática, infelizmente, costumeira da política brasileira.

Se fizermos uma análise retrospectiva, vamos encontrar os mesmos defeitos e a mesma contaminação entre empresas e políticos de toda sorte e de todos os partidos em todos os governos anteriores. Louve-se o Judiciário por seu combate à corrupção. Mas que se condenem os seus excessos, quando desrespeita os direitos humanos, ameaçando impelir o nosso país para um regime policialesco e inquisitorial incompatível com os valores democráticos.

O que ocorreu foi na verdade uma grande manobra política, iniciada feroz e implacavelmente pela oposição derrotada e inconformada, com o objetivo de destituir a presidente vitoriosa.  Mas, para o escárnio da história, os oposicionistas chegam ao poder como meros coadjuvantes, apêndice subalterno da mediania majoritária de sempre.

A meu ver, o arremedo de impeachment perpetrado coloca o Brasil num declive de retrocesso no concerto das nações latino-americanas, onde até aqui tinha reconquistado posição proeminente, não só pelo seu poder econômico e sua grandeza territorial e populacional, mas pela suposta consolidação de sua democracia.

(Continua na página 8)