Edição nº 651

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 04 de abril de 2016 a 10 de abril de 2016 – ANO 2016 – Nº 651

Chaplin a serviço de Chaplin


Em 1925, ainda na época do cinema mudo, o ator e diretor britânico Charles Chaplin lançou o filme The Gold Rush (Em Busca do Ouro, no título em português), com o qual gostaria de ficar conhecido, segundo uma de suas biografias. Decorridos 17 anos, Chaplin relançou a produção com adaptações. A principal novidade foi a inclusão do som. Além de trilha sonora composta especificamente por ele para a nova versão, o intérprete de Carlitos inseriu também diálogos e narração, todos apresentados na sua voz. As versões de Em Busca do Ouro são discutidas na dissertação de mestrado do linguista aplicado Diogo Rossi Ambiel Facini, defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, sob a orientação da professora Maria Rita Salzano Moraes.

De acordo com o autor do trabalho, Em Busca do Ouro não foi o único filme que Chaplin relançou com adaptações, mas talvez tenha sido o que mais sofreu intervenções por parte dele. “Chaplin não promoveu alterações profundas no roteiro ou no enredo. As mudanças foram sutis, mas significativas em muitos aspectos”, afirma Diogo Facini. A inclusão de recursos sonoros, considera, deu outra dimensão à obra. Isso pode ser constatado, diz, nos diálogos dos personagens e também na narração, todas feitas pelo próprio Chaplin.

O ator e diretor empresta sua voz à obra, de modo a chamar a atenção do público para os aspectos que ele, Chaplin, considera mais relevantes. “Ao modular, por exemplo, a entonação dos diálogos ou ironizar um dos personagens, ele tenta exercer um maior controle sobre a interpretação que o público pode fazer do filme”, entende o autor da dissertação. Outra inserção importante é a trilha sonora, composta pelo próprio ator e diretor. No período do cinema mudo, observa Diogo Facini, existia a trilha sonora, mas ela era executada ao vivo e mais como acompanhamento, espécie de pano de fundo para o desenrolar da trama. No caso da segunda versão de Em Busca do Ouro, Chaplin se preocupou em relacionar as músicas ao enredo.

Além dessas alterações, o diretor interviu, também sutilmente, na montagem do longa-metragem. Ele suprimiu algumas passagens, como a cena final do beijo entre Carlitos e a mocinha da história, interpretada pela atriz Georgia Hale. Há controvérsias sobre as motivações de Chaplin para ter feito esse corte. “Existe uma versão segundo a qual Chaplin mantinha um relacionamento amoroso com a protagonista durante as gravações do filme original, mas não na época do relançamento, daí a supressão da cena”, explica o linguista aplicado.

Outra explicação é que Chaplin queria dar um tom mais moralista à obra, adaptando-a ao contexto da época. Na década de 1940, destaca Diogo Facini, o ator e diretor já não era unanimidade entre o público, especialmente o norte-americano. Ele enfrentava sérios problemas políticos, que mais tarde levaram à sua expulsão dos Estados Unidos. “Penso que é possível considerar essas duas versões, mas é difícil apontar qual delas é a mais correta. Possivelmente, ambas influenciaram Chaplin, em maior ou menor grau, a cortar a cena do beijo”, infere o pesquisador.

Para Diogo Facini, a maior intenção de Chaplin com o relançamento de Em Busca do Ouro foi conferir relevância tanto à obra quanto ao personagem Carlitos. “Quando a primeira versão foi lançada, os filmes só podiam ser vistos no cinema. Assim, quando saíam de cartaz, corriam o risco de cair no esquecimento. Não era como hoje, em que uma produção pode ser assistida a qualquer momento no telefone celular ou no notebook. A segunda versão serviu, portanto, para apresentar o filme à nova geração e reapresentá-lo aos que já o haviam assistido”, avalia o linguista aplicado.

Na segunda versão do longa-metragem, prossegue o autor da dissertação, é possível perceber que as intervenções promovidas por Chaplin também têm o propósito de dar maior destaque a Carlitos. “As alterações reduzem a importância dos demais personagens e evidenciam a figura do vagabundo. Este é um aspecto interessante, que eu discuto na dissertação. Eu procurei analisar Chaplin para além do personagem Carlitos. Entretanto, é possível perceber que Carlitos, mesmo já não fazendo o mesmo sucesso de anos anteriores, continua sendo uma referência tanto para o público quanto para o seu criador”.

Essa hipótese pode ser explicada, conforme Diogo Facini, pelo fato de Chaplin ter colocado suas funções como ator, diretor, roteirista, adaptador e compositor a serviço do personagem. “Chaplin tinha domínio completo sobre a sua obra, dado que também era produtor e distribuidor dos próprios filmes. Aliás, esta é, a meu ver, a principal razão que fez com que ele se mantivesse como uma referência na indústria cinematográfica por tanto tempo. Muitos artistas da sua época, inclusive o comediante Buster Keaton, considerado o seu principal rival, não alcançaram essa independência e tiveram que se submeter ao controle artístico exercido pelos estúdios de Hollywood”, pontua.

Na dissertação, o linguista aplicado também discute a função desempenhada por Chaplin como tradutor. Tradução, nesse caso, é tratada sob o conceito da intersemiótica, que considera não a transposição de um idioma para outro, mas sim de uma linguagem para outra. No caso, Chaplin fez a tradução da linguagem visual para a verbal entre as versões de Em Busca do Ouro. Esse processo também serviu ao objetivo do artista de reforçar a as mensagens que pretendia transmitir com o filme. Um exemplo prático dessa intervenção, aponta Diogo Facini, pode ser visto numa das primeiras cenas do longa-metragem.

Na versão original, Carlitos começa a descer a montanha, mas para repentinamente. O vagabundo pensa por alguns instantes e decide cumprir o restante do percurso escorregando. Na segunda versão, Chaplin acrescenta uma pequena frase, um jogo de palavras, para descrever a ação. “Na minha interpretação, Chaplin utiliza o recurso para ir além da construção do significado. Ele traz o efeito do humor contido na imagem para a construção verbal, reforçando assim a narrativa”, avalia Diogo Facini.

O autor da dissertação de mestrado observa que, quando apresentada sem o suporte verbal, a imagem é mais aberta a intepretações. Quando a voz é adicionada, por meio de diálogos e narração, a interpretação é, em boa medida, direcionada. “No meu trabalho, não faço juízo de valor sobre se isso é bom ou ruim. Particularmente, considero o cinema como uma arte com dupla narrativa, uma representada pela imagem e outra, pelo som”. Retornando à participação de Chaplin como narrador na readaptação de Em Busca do Ouro, Diogo Facini compreende que a decisão contribui para tornar a obra um pouco mais distanciada do público.

A voz de Chaplin, segundo o especialista, não representa a fala de nenhum dos personagens, nem mesmo a do protagonista Carlitos. “A voz é do Chaplin diretor, o que, de certa forma, é a voz do próprio filme. Isso atenua a sensação de ilusão normalmente proporcionada pelo cinema, ou seja, a sensação de que estamos vendo algo real. Dessa forma, o filme acaba se mostrando como filme. Isso é interessante porque distancia a obra do contexto em que ela foi produzida e a aproxima de filmes feitos posteriormente, nas décadas de 50 e 60. Nesse sentido, considero a segunda versão de Em Busca do Ouro bastante moderna”, assinala o linguista aplicado, que contou com bolsa de estudo concedida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), órgão de fomento do Ministério da Educação.

Publicação 

Dissertação: “Charles Chaplin tradutor/adaptador: diálogos de um criador no filme ‘Em Busca do Ouro’”
Autor: Diogo Rossi Ambiel Facini
Orientadora: Maria Rita Salzano Moraes
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)
Financiamento: Capes