Edição nº 637

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 14 de setembro de 2015 a 20 de setembro de 2015 – ANO 2015 – Nº 637

Diálogos possíveis

Livro narra processo de negociação entre gestores
e comunidades tradicionais que vivem no Parque Estadual da Serra do Mar

A pesquisadora Eliane Simões, autora do livro, com o líder quilombola Genésio dos Santos: “Um aspecto importante no processo de diálogo foi o entendimento de que a presença das comunidades tradicionais nesses territórios não era indesejada. Ao contrário, ela é histórica e precisa ser garantida e desenvolvida, além de valorizada”Ao contrário do que considera a maioria dos gestores, os conflitos são inerentes à vida em sociedade. Portanto, não são solucionáveis, mas geradores de oportunidades de diálogo e de construção de consensos temporários. A compreensão permeia, em boa medida, o livro Territórios em disputa: do impasse ao jogo compartilhado entre técnicos e residentes - Parque Estadual da Serra do Mar, escrito por Eliane Simões, pesquisadora colaboradora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam) da Unicamp. A obra, resultado da sua tese de doutoramento, orientada pelos professores Lúcia da Costa Ferreira e Carlos Alfredo Joly, traz detalhes acerca dos processos decisórios decorrentes da gestão da presença de comunidades tradicionais (quilombolas e caiçaras) em Unidades de Conservação, particularmente no Parque da Serra do Mar, localizado em Ubatuba, no Litoral Norte de São Paulo.

De acordo com Eliane Simões, os conflitos tratados na publicação decorrem da diferença de posições entre as comunidades tradicionais, que ocupam há décadas os territórios transformados em Unidades de Conservação, e os atores governamentais, responsáveis pela gestão destas. “As Unidades de Conservação, tanto no âmbito nacional quanto estadual, começaram a ser criadas na década de 1970, ainda no período do regime militar. Na ocasião, a proposta se baseava primordialmente na preservação ambiental. Assim, quando da efetivação destas unidades, as comunidades tradicionais e suas atividades econômicas foram relegadas a um plano secundário”, explica.

Na prática, conforme a autora do livro, foi instaurada uma situação de predomínio da conservação ambiental em detrimento da qualidade de vida de quilombolas e caiçaras. Esta visão perdurou por longo tempo, até que, a partir dos anos 2000, o entendimento a respeito da questão começou a mudar. Nessa fase, observa a pesquisadora do Nepam, diálogos entre as partes envolvidas com o tema começaram a ser exercitados e consensos, construídos. “Obviamente, por se tratar de um assunto complexo, determinadas propostas geraram tensões de diferentes graus”, pontua.

Naquele instante, o principal desafio a ser superado era a busca por políticas públicas que conciliassem a manutenção das diversidades ambiental e cultural presentes nos territórios sobrepostos, formados pelas Unidades de Conservação e pelos Territórios Tradicionais. “Um aspecto importante foi o entendimento de que a presença das comunidades tradicionais nesses territórios não era indesejada. Ao contrário, ela é histórica e precisa ser garantida e desenvolvida, além de valorizada. A partir dessa compreensão, começou a ser desenhado um modelo de gestão compartilhada, que gerou ações muito interessantes. O livro procura narrar esse processo, marcado por dificuldades, mas também por avanços”, afirma Eliane Simões.

Canoa na comunidade de Camburyocupação pacífica de parque por moradores de Ubatumirimreunião entre quilombolas da Fazenda e representantes da Fundação FlorestalNa obra, são consideradas quatro comunidades tradicionais de quilombolas e caiçaras, situadas nos núcleos de Cambury, Vila de Picinguaba, Sertão de Ubatumirim e Sertão da Fazenda. Ao todo, elas são constituídas por aproximadamente 1.200 moradores. Foram esses residentes que deflagraram o processo de conversação, ao reivindicarem acesso a direitos de cidadania, como fornecimento de eletricidade, comunicação, transporte etc. A mobilização, segundo a autora do livro, deixou claro para todos os envolvidos que a garantia desses serviços era necessária à sobrevivência das comunidades e, consequentemente, também à conservação ambiental, já que os residentes estabelecem relações intrinsecamente integradas com a paisagem local.

Entretanto, os agentes governamentais se viram diante da dificuldade de garantir aos quilombolas e caiçaras o acesso a esses direitos, sem que isso atraísse a atenção de especuladores imobiliários, visto que estes já estavam presentes na região. “Num primeiro instante, ocorreram diversos conflitos, alguns deles violentos. Tivemos registros de ameaças à integridade física de funcionários e ocupações das sedes administrativas do Parque. De outro lado, à medida que foram impossibilitados de exercer suas atividades econômicas, os moradores, assediados por turistas ou especuladores, passaram a vender suas áreas de uso e ocupação. Isso criou um problema socioambiental importante, porque muitas dessas pessoas que se desfizeram de seus bens foram ocupar trechos localizados em áreas de riscos, como encostas de morros e margens de rios”, relata Eliane Simões.

Aos poucos, porém, os momentos de tensão foram atenuados, graças ao amadurecimento das partes e ao avanço do diálogo. “Atualmente, nós estamos em um patamar bem mais avançado. Instalou-se a compreensão de que a presença das comunidades nos territórios contribui para a conservação ambiental, principalmente se é constituído um processo participativo para interpretação do conflito e estabelecidas negociações conciliatórias, reinterpretando o arcabouço jurídico que assegura os direitos socioambientais. Uma consequência importante dessa mudança de posição foi a formulação do Plano de Uso Tradicional, cujo objetivo foi traçar um planejamento para o território ocupado pelas comunidades quilombolas e caiçaras. Esse instrumento, que funciona como uma espécie de microplano diretor, estabeleceu critérios para o uso da terra e projetou o crescimento dessas comunidades”, detalha a pesquisadora do Nepam.

As ações e diretrizes, continua Eliane Simões, foram discutidas e trabalhadas no âmbito da Câmara Técnica de Cambury. Foram realizadas oficinas, traçados mapas, ministrados cursos de capacitação e promovidos estudos técnicos. Houve também o cadastramento dos residentes e a avaliação de iniciativas envolvendo comunidades próximas, como Trindade, no Rio de Janeiro, onde o foco das ações foi o turismo. “Tudo isso contribuiu para a formulação do arcabouço técnico e jurídico do plano, que contemplou medidas voltadas à preservação tanto dos aspectos sociais quanto ambientais. Esse instrumento tem servido de referência para as negociações relativas a outras comunidades tradicionais e entes governamentais, inclusive de fora do Estado de São Paulo”, destaca a autora da obra.

O livro Territórios em disputa: do impasse ao jogo compartilhado entre técnicos e residentes - Parque Estadual da Serra do Mar já teve duas sessões de lançamento, uma na Unicamp (25 de junho) e outra em Ubatuba (28 de maio), esta última durante o Festival da Mata Atlântica.

 

Serviço

Título: Territórios em disputa: do impasse ao jogo compartilhado entre técnicos e residentes - Parque Estadual da Serra do Mar

Autora: Eliane Simões

Editora: Annablume/Fapesp

Páginas: 448

Preço sugerido: R$ 72,75