Edição nº 635

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 31 de agosto de 2015 a 06 de setembro de 2015 – ANO 2015 – Nº 635

Muito longe da universalização

Pesquisa desenvolvida no Instituto de Economia aponta os maiores desafios do SUS

Mais de 26 anos após a sua criação, o Sistema Único de Saúde (SUS) ainda enfrenta grandes desafios para cumprir os princípios de universalidade, integralidade e equidade de acesso aos serviços de saúde para todos os brasileiros, formalmente estabelecidos na Constituição de 1988. O principal desafio para isso está na incompatibilidade do SUS com o contexto político e econômico vigente a partir dos anos 1990, quando o país aderiu à doutrina neoliberal. A conclusão é da economista Ana Paula Andreotti Pegoraro, na dissertação de mestrado “Estado e mercado na atenção à saúde no Brasil: os desafios da universalização do SUS”, orientada pelo professor Eduardo Fagnani e apresentada no Instituto de Economia (IE) da Unicamp.

“O Brasil continua sendo pautado por um tripé macroeconômico introduzido em 1999, após negociação do governo de Fernando Henrique Cardoso com o Fundo Monetário Internacional: o cumprimento de metas de inflação (tendo como instrumento a alta taxa de juros), o câmbio flutuante e o superávit primário (priorização do pagamento de juros da dívida pública em detrimento das contas correntes em saúde, educação, previdência, etc.). Isso é incompatível com o desenvolvimento social e, especialmente, com o SUS concebido para atender 200 milhões de pessoas. Os recursos para o sistema são parcos (e dificilmente virão mais), quando seriam necessários gastos muito maiores do que os efetivados”, afirma a autora da dissertação.

A economista Ana Paula Andreotti Pegoraro, autora da dissertação: “O Brasil continua sendo pautado por um tripé macroeconômico introduzido em 1999, após negociação do governo de FHC com o FMI”Em sua pesquisa, Ana Pegoraro procurou delinear as relações entre os setores público e privado na assistência à saúde no Brasil em dois períodos distintos: o primeiro contempla os determinantes históricos do sistema de saúde do início do século XX até 1988; e o segundo abarca o pós-1990, quando o país faz a opção pelo neoliberalismo. “Desde os primórdios de sua formação, sempre predominou no sistema brasileiro um forte segmento empresarial operando a saúde em seus diversos componentes, o que responde em parte pelas deficiências estruturais do Estado. Este processo foi intensificado a partir da década de 1940, quando os Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAP) passaram a contratar o setor privado para dar assistência médica aos seus filiados.”

A economista afirma que na ditadura militar este modelo foi ampliado à exaustão, tanto que quando o SUS foi criado em 1988, a grande maioria da oferta de serviços de saúde era pelo setor privado. “Na lei, o SUS é público; mas na prática, a oferta era privada. A mercantilização da saúde passou a ser motivo de grande disputa tanto no Parlamento quando no Executivo, e o SUS foi atropelado por este processo histórico de privatização reforçado pela hegemonia da agenda neoliberal. Este é o pano de fundo para se compreender os problemas atuais vividos pelo SUS, passados 26 anos da sua consagração formal pela Carta de 88.”

HISTÓRICO

Na economia cafeeira, conforme a autora da pesquisa, as preocupações dos governos no que concerne à saúde da população se limitavam à criação de condições sanitárias mínimas para as relações comerciais com o exterior e, também, para o êxito da política de imigração que pretendia atrair mão de obra visando à constituição do mercado de trabalho capitalista. “As instituições sanitárias priorizavam os grandes centros urbanos e os portos, enquanto os cuidados com a saúde da população de municípios do interior e de menor importância econômica eram bem rudimentares. Não se tratava de melhorar as condições de vida da população, e sim de defender os interesses pré-capitalistas através da acumulação cafeeira.”

A dissertação traz um histórico da previdência social desde as Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs), criadas em 1923 e organizadas por empresas e empregados de cada setor produtivo – marítimos, comerciários, bancários, ferroviários, transportes e cargas, servidores públicos. Já aos demais trabalhadores não filiados a tais entidades, restavam os serviços públicos ou outras formas de assistência médica, que eram precárias, restritas e muitas vezes provindas de doações. “As CAPs operavam em regime de capitalização e eram muito desiguais, pois quanto mais forte o setor, como dos bancários, maior era o poder de barganha com os patrões.”

Ana Pegoraro conta que, em 1930, Vargas promoveu uma reestruturação do sistema, substituindo as CAPs pelos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), na condição de autarquias em nível nacional centralizadas pelo governo federal; ou seja, decidiu-se que o Estado responderia a esta questão social de forma universal, ao invés de tratá-la de forma parcial e pontual. “A filiação passou a se dar por categorias profissionais e não mais por empresas. Os IAPs respondiam tanto por serviços de previdência (afastamento ou aposentadoria) como pelos serviços de saúde, bancados por recursos públicos, dos empresários e dos trabalhadores.”

Segundo a pesquisadora, a nova dinâmica de acumulação subordinada ao capital industrial fez surgir outras necessidades e aumentar a pressão pela ampliação e criação de políticas sociais. “A política nacional de saúde estava organizada em dois subsetores: de saúde pública, prestada por instituições estatais para toda a população; e de medicina previdenciária, com serviços oferecidos de forma restrita a alguns trabalhadores urbanos. Havia uma significativa diferença na forma de financiamento: as instituições públicas contavam com escassos recursos orçamentários, enquanto as instituições previdenciárias eram financiadas por contribuições dos trabalhadores, impulsionadas com o desenvolvimento econômico e o crescimento da massa salarial.”

A economista acrescenta que o setor de atenção médica no Brasil, à semelhança do que ocorre em outros países, cresce aceleradamente em importância econômica, mobilizando um volume cada vez maior de recursos e permitindo maior acumulação de capital em seu interior. “Este modelo de organização institucional, calcado na segmentação e na discrepante diferença de financiamento, beneficiou o financiamento do setor privado através da canalização de recursos da saúde previdenciária para a construção e expansão de hospitais privados. Nesse sentido, criou mecanismos para que o setor privado ganhasse força e se estruturasse de forma a ter capacidade de defender seus interesses em possíveis tentativas de reestruturação do sistema público.”

TENSÃO PREVALECE

Ana Pegoraro destaca em seu estudo que a saúde ainda não podia ser considerada um negócio em 1964, mas a clara divisão entre medicina curativa e medicina preventiva, e as abordagens distintas para distintos segmentos da incipiente classe trabalhadora brasileira, deram os primeiros sinais do grande mercado que se tornaria a saúde no Brasil. “Durante a ditadura militar, de 64 a 85, temos um período de modernização conservadora, com uma expansão dos bens públicos ofertados pelo setor privado. Uma modernização, porém, assimétrica em termos regionais, concentrada na região sudeste, que privilegiava a medicalização em detrimento da prevenção. Além disso, não era universal: para ser atendido no sistema ainda era preciso apresentar a carteira de trabalho.” 

A pesquisadora destaca, por outro lado, a existência de diversos serviços públicos de atenção à saúde, como Fundação Oswaldo Cruz, Instituto Butantan e escolas, hospitais e centros de saúde que asseguraram uma das bases para o projeto de um sistema nacional de saúde no Brasil. “Nesse aspecto, a construção do Sistema Único de Saúde (SUS), inspirado nos valores do sistema de proteção social (Welfare State) formado na Europa do pós-Guerra, veio se opor ao modelo médico assistencial privatista hegemônico durante a ditadura militar. A lógica do seguro, em que se paga para ser assegurado, prevaleceu até a Constituição de 88, quando então se implantou o conceito de seguridade, em que basta ser cidadão brasileiro para ter acesso ao sistema de saúde.”

A autora da pesquisa afirma que a globalização dos anos 80 e a adesão do país ao neoliberalismo nos 90 tiveram como consequências a desestruturação dos pilares do Estado brasileiro e a fragilização dos seus instrumentos de atuação, dificultando manter e garantir os direitos de acesso a bens e serviços de saúde. “A agenda liberal e conservadora, com destaque para as diretrizes e orientações políticas do Banco Mundial de incentivo à expansão da iniciativa privada nos serviços de saúde, é antagônica aos princípios do SUS. Na prática, o sistema de saúde passou a viver tencionado entre o que reza a Constituição e o contexto político e econômico favorável aos mercados desregulados – e a privatização da saúde ganhou novo fôlego.”

Ana Pegoraro recorda um debate surgido na banca examinadora, dando conta de que embora a Constituição garanta a todos os brasileiros o direito à saúde universal, igualitária e equitativa, esta garantia é muito mais formal do que efetiva. “A Carta de 88 diz que a oferta será pública, mas para isso seriam necessários hospitais públicos, especialmente nas regiões mais pobres do país, o que teria demandado enormes investimentos; mas, no contexto do ajuste macroeconômico ortodoxo, central na agenda dos governos, esses investimentos não ocorreram de forma significativa. Recentemente, o Congresso aprovou um projeto prevendo o ingresso de capital internacional nos serviços de saúde do Brasil. Trata-se de mais um golpe no SUS, ampliando ainda mais a participação privada na captura dos recursos públicos.”

A mestre em economia finaliza com outro aspecto discutido na banca, relacionado aos planos de saúde, serviço privado que floresceu com o neoliberalismo. “A história econômica do século XX é marcada pela diferenciação social. A desigualdade faz com que as pessoas busquem ascender socialmente e o tipo de assistência à saúde também é uma forma de diferenciação. Talvez a classe média não queira que o SUS dê certo, pois significaria ser atendida por um mesmo médico ou hospital, ainda que isso seja perfeitamente natural nos países desenvolvidos. Plano de saúde também é demonstração de status, juntamente com o carro e a casa própria. Sem mudar essa estrutura social, não haverá respaldo para manutenção do SUS.”

 

Publicação

Dissertação: “Estado e mercado na atenção à saúde no Brasil: os desafios da universalização do SUS”

Autora: Ana Paula Andreotti Pegoraro

Orientador: Eduardo Fagnani

Unidade: Instituto de Economia (IE)