Edição nº 631

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 03 de agosto de 2015 a 09 de agosto de 2015 – ANO 2015 – Nº 631

A tourada como metáfora das guerras modernas

Artigo sobre livro de Hemingway faz pesquisador do IFCH revisitar a Paris do entre-guerras

A morte do toureiro valenciano Manuel Granero, em maio de 1922, em arena madrilhenha: tragédia inspirou o escritor Georges BatailleUma série de escritores baseados em Paris, nos anos 20 e 30 do século passado, usou da tourada espanhola para refletir sobre as realidades da guerra moderna, a partir da I Guerra Mundial, passando pela Guerra Civil Espanhola e chegando às portas da II Grande Guerra, diz a tese de doutorado “Fronteiras da Europa: A Corrida de Touros Vista da Paris Literária Entre-Guerras”, defendida por Luís Felipe Sobral e orientada por Heloisa Pontes no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.

“Sem considerar as especificidades de cada um dos autores, o que acontece é que a guerra estabelece um tipo de violência que é caótica e sem sentido, considerando-se o modelo de conflito que se instaura a partir da I Guerra Mundial”, disse o pesquisador. “As pessoas que lutaram, a maioria dos soldados, não foram inteiramente forçadas: elas viam, no início, um sentido naquilo. Mas conforme conheciam o campo de batalha da Grande Guerra, que é uma guerra moderna e que, no limite, procura aniquilar o inimigo, não simplesmente vencer, mas destruir totalmente, esse sentido se esvaiu. É isso que choca essa geração”.

Os autores então vão encontrar, na tourada, uma maneira de viver e de encarar a violência de um modo ordeiro e regrado. “Extremamente regrado, na verdade, porque o ideal da tourada espanhola é que você se coloque à prova diante do animal. Então, não adianta só fazer os passes, o toureiro tem que fazer os passes numa determinada posição, para se colocar em risco”.

Estruturada sob a forma de ensaio, a tese parte de uma resenha de Morte ao Cair da Tarde, de Ernest Hemingway, escrita pelo poeta surrealista e antropólogo francês Michel Leiris e publicada em junho de 1939, às portas da II Guerra Mundial, que começaria em setembro do mesmo ano, com a invasão da Polônia por forças alemãs e soviéticas. 

APOCALÍPTICO

Em sua resenha, depois de comentar o livro de Hemingway – que é uma espécie de “guia turístico” para as touradas espanholas, publicado originalmente em 1932 – Leiris lança uma nota pessoal, nostálgica. O trecho, citado na tese, diz: “Não é sem tristeza e mal-estar que se revive com Hemingway essa bela época do turismo espanhol, quando se podia perambular de festa em festa e apreciar livremente um gênero de existência que logo não será mais que uma lembrança para os arqueólogos”.

Luís Felipe Sobral, autor da pesquisa: “Essa relação entre a guerra e a tourada acaba se tornando política”“Ali, de repente, o que aparentemente era uma análise que estava presa ao livro do Hemingway, é invadida pela conjuntura histórica de uma maneira que você já não consegue relê-la sem pensar nisso”, disse Sobral. “Esse final apocalíptico contrasta com o resto. Aí ele olha para a tourada, mas pensa na Guerra Civil Espanhola. Uma vez que Leiris era de esquerda, é compreensível que ele se mostrasse assim em relação à situação espanhola. E em junho de 39, todo mundo sabia que ia ter guerra. Então, nisso, ele lança uma pista sobre uma relação profunda entre a tourada e a guerra. A questão que proponho é: será que isso também está presente nos demais olhares literários em Paris?”

Ainda sobre a resenha, o pesquisador acrescenta que “o valor está menos nela em si do que na maneira como olho para ela. Este é um dos pontos da tese, também: o significado que é dado nas coisas não está tanto nas coisas em si quanto no olhar que você dirige a elas. Foi a resenha que deu todo o andamento, o ponto de partida, de irradiação, do meu argumento”.

Sobral diz que esse ponto de partida levanta uma questão metodológica que se tornou um “desafio interessante”: “A questão da tese é proposta a partir dessa resenha e a partir de junho de 39, quando ela é publicada. Mas eu não poderia considerar algo que é dito num momento específico e generalizá-lo para um período histórico inteiro”, explica. “Porque eu estaria impondo um determinado sentido que pode não existir. Então, uso esse momento como uma espécie de posto de observação. É como se, ao olhar o período do entre-guerras, eu estivesse em junho de 1939 e olhasse para trás e para a frente, para apreender esse escoamento do tempo”.

Por conta disso, a tese segue um percurso cronológico: “No início de Morte ao Cair da Tarde, Hemingway explica porque ele vai à tourada na Espanha. Mas isso em 1932, quando o livro foi publicado. Só que ele foi à tourada pela primeira vez em 1923. Na verdade, quando estou analisando o começo dos anos 20, o próprio Hemingway não diz porque vai à Espanha. Ele só irá dizê-lo em 32, e não posso impor essa ideia, que só veio mais tarde, aos anos 20. Foi difícil fazer isso na tese: respeitar a passagem do tempo. Tratar cada período dentro de seu próprio contexto, mesmo eu sabendo onde ele iria desembocar”.

POLÍTICA

Além de Hemingway e de Leiris, a tese de Sobral debruça-se sobre trabalhos de Henry de Montherlant e Georges Bataille. “Trabalho sobretudo com Hemingway, depois com o Leiris. E com o Montherlant, que foi um escritor bastante popular na França e até hoje mantém um certo renome. Mas, durante a ocupação nazista, ele demonstrou uma postura ambígua diante dos alemães e isso custou sua reputação no meio literário”, disse o autor. 

“Depois de Montherlant, trato de Georges Bataille, que tem uma novela que inclusive foi traduzida para o português, História do Olho, e então volto ao Leiris. Teria ainda o Joseph Peyré, que é pouco conhecido fora da França. Mas acabei escolhendo não tratar dele, porque sem ele já tinha material suficiente para fazer a análise, que não é uma análise de crítica literária: eu preciso da recepção das obras, preciso de uma série de fontes do contexto, já que esta não é uma tese literária, é uma tese de antropologia”, explica.

“Do ponto de vista antropológico, procurei me debruçar sobre o problema segundo as categorias de entendimento dos próprios escritores, que se esforçaram, por sua vez, em apreender a tourada de acordo com a perspectiva do espetáculo. Ainda assim, há um limite para esse esforço e posso dizer que persiste um resquício de exotismo nos olhares literários, que tendem a reforçar um limite demarcado pelos Pireneus, daí o título da tese, Fronteiras da Europa”.

No caso de Hemingway e de Leiris, Sobral identifica, de início, um modo mais existencial, psicológico, de tratar tanto da tourada quanto da guerra, mas que, à medida que a década de 30 avança, vai se tornando cada vez mais político. “É como se a conjuntura política fosse inchando e se tornasse inescapável”, disse ele.

“Basicamente, na transição do começo do entre-guerras, do início dos anos 20, às vésperas da II Guerra, essa relação entre a guerra e a tourada acaba se tornando política. Normalmente, quando a gente fala de guerra, pressupõe-se falar de política. Mas, do ponto de vista literário, isso não necessariamente acontece”, explicou o pesquisador. “Na novela O Sol Também Se Levanta (1926), do Hemingway, há um questionamento sobre a guerra, mas não é político, é um questionamento existencial”.

Ernest Hemingway: escritor norte-americano mencionou medidas adotadas para atenuar a violência da tourada“Mas depois, sobretudo depois da Guerra Civil e quando se chega às vésperas da II Guerra Mundial, aí não tem jeito de falar de tourada sem falar de guerra no sentido político. Então essa é a transição geral que a relação sofre. Agora, em cada autor existem especificidades”.

“No caso do Leiris, os primeiros textos dele sobre a tourada não têm relação com a guerra, mas porque ele não vivenciou a I Guerra”, diz o autor. “Ele mesmo diz que vivenciou a guerra como se fosse um grande feriado, porque não lutou, passou intocado por aquele evento. Mas depois, conforme vai passando o tempo e vêm a Guerra Civil e a II Guerra, então a guerra passa a ser fundamental para ele pensar sobre a tourada”.

MITRAÍSMO E SEXUALIDADE

O surrealista francês Michel Leiris, o escritor francês Henry de Montherlant e o escritor Georges Bataille

Montherlant, por sua vez, se vale de uma mistura entre cristianismo e mitraísmo para tratar da tourada. O mitraísmo foi uma religião popular no mundo romano, nos primeiros séculos da era comum, onde o sacrifício de um touro pelo deus Mitra tinha grande importância como gesto criador de vida. “Montherlant procura, na simbologia da tourada, fazer uma fusão entre os símbolos cristãos e do mitraísmo”, explica Sobral. “Só que isso do ponto de vista moderno, porque o livro, que se chama Les Bestiaries, trata de um rapaz francês que vai para a Espanha tourear. O livro contém traços autobiográficos porque ele mesmo toureou, como amador”.

“Já no caso do Bataille, o ponto de vista é o da sexualidade, porque a História do Olho é uma novela pornográfica, e, em uma das cenas do livro os protagonistas assistem a uma tourada. Trata-se de uma tourada real, a que o próprio Bataille assistiu na Espanha, em que um matador, Manuel Granero, morre de uma maneira horrenda, o touro o acerta, derruba-o e perfura-lhe a cabeça. Bataille usou esse episódio na novela, mas do ponto de vista da sexualidade, pois, enquanto ocorre o acidente na arena, desenrolase uma cena pornográfica na arquibancada”.

Sobral explica que, por uma série de outras fontes, incluindo escritos autobiográficos de Bataille, é possível ligar o episódio da tourada em História do Olho à guerra. “É uma situação desgraçada que o pai do Bataille sofreu durante a guerra: ele tinha sífilis e morreu abandonado, de maneira horrorosa. Então, através das fontes, é possível chegar dessa cena do livro, que liga a sexualidade dos personagens à morte real do matador Manuel Granero, até a morte do pai”.

TOURADAS

A tourada é, há séculos, um ponto polêmico dentro da cultura espanhola. Já no século 16 havia éditos religiosos condenando a prática. Por sua vez, em Morte ao Cair da Tarde, Hemingway se refere a medidas adotadas para suavizar a violência da tourada – como a adoção de proteções para os cavalos, cujos ferimentos, provocados pelo chifre dos touros, chocavam os turistas – como sinal de “decadência”.

Nas pesquisas para a elaboração da tese, Sobral assistiu a touradas na Espanha. “Minha tese não tem uma descrição etnográfica da tourada, do que vi, porque o trabalho que fiz é histórico, sobre o período entre-guerras”, disse. “Sim, não deixa de ser, a princípio, algo um pouco chocante, porque não é algo que estejamos acostumados a ver. Mas eu estava ali com uma bagagem cheia de leituras sobre a questão, e assisti a três dias seguidos. Meu esforço foi tentar compreendê-la em seus próprios termos, de uma perspectiva antropológica. Enfim, tendo a ser simpático e considero-a um fenômeno social e cultural bastante interessante. Mas eu acho que, no fundo, quem tem de saber se devem continuar ou não com as touradas são os próprios espanhóis”.

 Trechos da tese 

“Ao contrário de Hemingway, os críticos de Death in the Afternoon não consideraram suplementares os assuntos que ultrapassam o âmbito da corrida. Em outubro de 1932, o escritor americano Robert Coates abriu sua resenha, publicada na New Yorker, dizendo que o “tão aguardado novo livro” do autor seria “apreciado por apenas dois tipos muito distintos de pessoas”: aquelas interessadas no aspecto técnico da corrida e aquelas atraídas pela figura de Hemingway como escritor. Da mesma maneira, o escritor americano Granville Hicks, fundador em 1926 da revista comunista New Masses, afirmou em sua resenha de novembro de 1932 que não haveria muito a ser dito sobre o livro caso seu autor fosse outro; “mas porque Hemingway encontra-se tão bem posicionado entre os romancistas contemporâneos”, explica ele, “e porque mais pessoas lerão o livro porque estão mais interessadas em Hemingway do que na tourada, é justificável continuar falando sobre o autor”. As opiniões desses críticos assinalam um efeito curioso do estabelecimento de Hemingway como escritor: sua persona literária sobrepunha-se ao conteúdo de seu livro; a maior parte de seus leitores estava interessada mais nele próprio do que na corrida e, nesse sentido, os trechos suplementares, que se afastavam da discussão técnica sobre a tourada para tratar dos mais diversos assuntos — por exemplo, os motivos literários que o conduziram à Espanha —, adquiriam uma importância decisiva.” 

*** 

“A princípio, é estranho pensar a guerra de outra maneira senão política; mas no âmbito da representação literária, essa implicação não é sempre necessária. Em The Sun Also Rises, por exemplo, a experiência devastadora da guerra não incita uma reflexão política, mas existencial; vagando pela Europa, os personagens atormentados dedicam-se exclusivamente a procurar uma maneira de viver com as feridas da guerra; eles não questionam em nenhum momento as causas imperialistas do conflito, muito menos pensam em cobrar dos governos dos países envolvidos explicações sobre ele. O foco da tese não é assim a tourada e a guerra em si mesmas, mas como o olhar literário lançado à corrida da Paris entre-guerras articula essa relação.” 

 


Publicação

Autor: Luís Felipe Sobral

Tese: “Fronteiras da Europa: A Corrida de Touros Vista da Paris Literária Entre-Guerras”

Orientadora: Heloisa Pontes

Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)