Edição nº 616

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 27 de novembro de 2014 a 31 de dezembro de 2014 – ANO 2014 – Nº 616

Linha de pesquisa aproxima alunos de medicina da realidade do paciente

Com ênfase na empatia, novas práticas pedagógicas privilegiam formação da identidade profissional

Já no primeiro ano de faculdade, os nossos alunos de medicina se deparam com isso, revela o professor Marco Antônio de Carvalho Filho, apontando para a tela Criança morta, de Cândido Portinari. O aspecto dramático da obra, em que uma mãe se curva diante do cadáver de seu filho, é uma amostra da realidade com a qual o estudante passará a conviver dali para a frente. A metáfora empregada pelo médico e docente da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp exprime a perplexidade vivenciada, muitas vezes, pelo jovem estudante na faixa dos 18 aos 20 anos ao ingressar em um curso de medicina.

“Já no primeiro ano, esses estudantes passam a conhecer, de fato, a realidade social do país: visitam unidades de saúde, entram em contato com a pobreza, sofrimento, morte e desigualdade social. Mas, no geral, os cursos não refletem sobre isso. Convivemos com a morte diariamente, e não conversamos sobre ela com os alunos. Ninguém chega e pergunta: o que você sentiu, quando viu, pela primeira vez, uma pessoa morrer? Como foi quando se deparou com o primeiro cadáver na sala de anatomia? Quando participou do atendimento daquela pessoa que morreu, apesar de todos os seus esforços? Quais foram as emoções que vieram à tona?”, reflete o docente.

“Nunca ninguém me perguntou sobre isso no curso. Às vezes, você deixa o estudante ou recém-formado sozinho e ele lida muito bem com isso. Outras vezes, não. Expomos o estudante ao problema, o que é bom, mas, ao mesmo tempo, não criamos oportunidades para ele refletir sobre aquilo com a ajuda de profissionais que já se debruçaram sobre isso várias vezes”, completa Marco Antônio de Carvalho Filho.

Na outra ponta desta relação, está o paciente. Num caso recente, embora extremo, um médico do município paulista de Sumaré diagnostica as dores de cabeça e problemas com pressão arterial de uma paciente como “falta de ocupação”. Revoltada, a paciente torna a situação pública e entra com uma ação por danos morais.

“O médico, de modo geral, tem falhado no seu contrato social. O modelo é falho também. Os modelos de prática médica estão afastados do paciente. Muitos profissionais estão insatisfeitos com a atividade e reproduzem isso na sua relação. Especialistas de grande parte das escolas de medicina do mundo, quando analisam a empatia - que é a capacidade de compreender o sentimento ou reação da outra pessoa imaginando-se nas mesmas circunstâncias – concluem que ela cai progressivamente durante o curso. Isso é ruim porque o estudante entra na faculdade com mais capacidade de ser empático do que quando ele sai. Tem alguma coisa errada no curso. E lidar com tudo isso é um desafio”, reconhece o docente.

Carvalho Filho está à frente de um trabalho pioneiro da Faculdade de Ciências Médicas (FCM), cujo foco é a incorporação de novas práticas pedagógicas para aprimorar a formação da identidade profissional dos futuros médicos. As atividades, resultados de anos de pesquisas e estudos interdisciplinares, vêm permitindo uma verdadeira renovação na prática médica, impactando positivamente, sobretudo, no relacionamento entre médicos e pacientes.

 

Empatia

O médico e pesquisador Marcelo Schweller, orientado pelo professor Marco, acaba de defender tese de doutorado em que avalia uma série de intervenções, visando manter ou aumentar a empatia de estudantes de medicina da Unicamp em diferentes estágios de formação. Entre as principais intervenções promovidas junto aos graduandos da FCM, está a simulação de consultas médicas com casos clínicos complexos.

O trabalho, realizado com a ajuda de pacientes-atores, formados pelo Instituto de Artes (IA) da Universidade que integram uma companhia teatral, suscita emoções desencadeadas pela doença e pela própria condição de vida do paciente. As simulações são gravadas para subsidiar, posteriormente, o debate em grupo. Há também o treinamento de habilidades interpessoais e de comunicação, além do emprego da narrativa reflexiva em palestras com médicos e pacientes, com ensaios sobre experiências pessoais. 

“Precisamos, na condição de médicos, nos colocarmos no lugar da outra pessoa e sair daquele encontro com uma proposta que faça sentido para ela. O médico não tem que aprender somente com o médico, ele tem que aprender com o paciente também. A medicina esteve isolada durante muito tempo, perdendo a capacidade de aprender com outras profissões. O professor, por exemplo, precisa se colocar no lugar do aluno para elaborar uma proposta que faça sentido para ele. O ator, também. Portanto, por que atores, professores e médicos não podem ter aula juntos sobre isso?”, propõe o orientador.

Marcelo Schweller explica que o estudo utilizou uma escala psicométrica para medir a empatia do estudante. Os resultados demonstraram que a empatia aumentou consideravelmente em praticamente todos os alunos que passaram pelas atividades de intervenções. “A relação médico-paciente é o fundamento da prática da medicina. Entre os fatores que permitem o sucesso dessa parceria, a empatia se destaca como um dos mais importantes. Existem evidências científicas que associam a atitude empática do médico com a satisfação do paciente, melhor adesão ao tratamento e melhores desfechos clínicos”, fundamenta o pesquisador.

Ele exibe outros resultados relevantes dos trabalhos. “Apesar da exposição, de atender na frente dos colegas e dos professores, mais de 80% dos alunos ficaram à vontade nas consultas simuladas. Quase 100% se sentiram à vontade durante a discussão. Depois da atividade, 94% deles acharam que a capacidade de ouvir o paciente estava melhor; mas não só de ouvir o paciente: 91% acreditam que a capacidade de ouvir o próximo também está melhor.”

A motivação dos estudantes após as atividades também aumentou como consequência das intervenções. Depois da atividade, cerca de 60% dos estudantes ficaram motivados a estudar não somente a relação médico-paciente, mas os conteúdos de medicina como um todo. Quase 100% consideraram uma aplicação deste aprendizado na vida profissional e mais de 90%, também na vida pessoal.

“O processo pedagógico é baseado no reforço positivo, não sendo raro os alunos se emocionarem durante a intervenção. Para alunos e professores, a atividade resgata a motivação inicial que os levou a escolher a profissão. Os resultados, por outro lado, sugerem que é possível manter ou mesmo aumentar os níveis de empatia por meio de metodologias ativas de ensino em diferentes estágios da formação médica”, conclui Marcelo Schweller.

O grupo da Unicamp conta com a colaboração da professora Eloisa Helena Rubello Valler Celeri, do Departamento de Psiquiatria Infantil da FCM; do docente Flávio César de Sá, do Departamento de Saúde Coletiva da FCM e da professora e educadora, Márcia Maria Strazzacappa Hernandez, da Faculdade de Educação (FE). Há, ainda, mestrandos e doutorandos desenvolvendo novas pesquisas na área de metodologias ativas para o ensino de graduação em medicina.

Os resultados, conforme o docente Marco de Carvalho, vêm sendo apresentados periodicamente em congressos mundiais de educação médica, como os da Association for Medical Education in Europe (AMEE), realizados em Lyon, na França, em 2012; e em Praga, na República Tcheca, em 2013.

“Este é um dos primeiros projetos do país em educação médica apoiado pela Fapesp. Também contamos com o apoio da Capes. Simulação muitas escolas de medicina fazem, mas do modo como é feito aqui, é pioneiro não só no Brasil, mas no mundo. Juntamos dois universos para lidar com a parte afetiva da relação médico-paciente: o da psicologia médica e o da simulação. Somos um dos poucos grupos brasileiros que têm apresentações orais anualmente em congressos europeus de educação médica, onde está a vanguarda da área”, destaca.  

 

Currículo oculto

A perda da empatia ao longo dos anos do curso de graduação tem como umas das causas principais o que os pesquisadores denominam de currículo oculto. “O estudante têm várias experiências na faculdade que não são somente as experiências em sala de aula e supervisionadas. Essas experiências também vão moldando a personalidade e a identidade profissional desses alunos. E nem todas essas experiências são positivas. Isso é o que chamamos de currículo oculto em medicina. O risco é o estudante chegar ao final da faculdade e virar um super-herói diferente”, brinca o professor Marco de Carvalho.

Durante o estudo de doutorado, Marcelo Schweller identificou, por meio dos relatos dos estudantes, uma relação conflituosa entre as experiências do currículo oculto em oposição à ideia de uma prática médica pautada na ética, com interesses do paciente em destaque. Conforme o pesquisador, o estudante sente o desconforto proveniente desse conflito, mas não reflete sobre ele, vivenciando suas experiências de maneira anestesiada ou cínica, o que adia o estabelecimento de uma identidade profissional virtuosa.

“Queremos formalizar o currículo oculto, trazer para o debate. A formação dos futuros médicos precisa estar pautada em valores e virtudes, que surgem da necessidade primordial de colocar os interesses do paciente acima dos interesses do próprio médico. Para respeitar isso, o médico precisa ter uma fidelidade à verdade científica, mas também à verdade humana”, salienta o docente.

Além do conhecimento técnico e das humanidades, como sociologia, antropologia e filosofia, ele precisa ser um bom médico, cuja prática esteja fundamentada na compaixão ou mesmo na caridade, completa. “Precisa ativamente se colocar no lugar do outro, e preservando sua própria alteridade, reconhecer, entender e compartilhar o sofrimento e angústia causados pela doença. Só assim ele poderá individualizar o plano terapêutico de seus pacientes e elaborar propostas que façam sentido para a pessoa que se encontra doente.”

Ainda de acordo com o professor da Unicamp, o debate sobre a formação de uma identidade profissional dos futuros médicos passa por um processo de empoderamento do próprio estudante. “Queremos que o aluno se conscientize sobre isso: ‘bom, eu estou neste momento sendo submetido a vivências e experiências que vão me ajudar a definir quem eu serei.’ Mas que seja um processo ativo de escolha. E neste meio tempo queremos incorporar o debate dos valores e das virtudes para garantir que a prática profissional seja realmente dele, e não um processo repetido. Se na área de humanas este debate é corriqueiro, na área médica ele praticamente não existe. A nossa vontade é que o aluno assuma as rédeas sobre isso, mas baseada em valores e virtudes.”

O pesquisador Marcelo Schweller ressalta, por sua vez, que as atividades com apelo realístico que apresentem a medicina de uma forma positiva podem se tornar um fórum para o debate de temas relacionados ao currículo oculto, o que estimula a reflexão sobre o tema. Esse tipo de atividade pode motivar o estudante no processo de ensino-aprendizagem, permitindo a recuperação do significado pessoal e social da prática da medicina, argumenta.

“Durante a simulação, cada paciente tem uma dinâmica emocional principal. Tem um caso que trabalhamos com a perda, com o luto. Tem outro caso em que trabalhamos com a questão da autonomia, de como valorizar e incluir a autonomia no plano terapêutico. Outros ainda são centrados no sentimento de raiva, no conflito, na resistência em não aceitar o tratamento. Toda consulta simulada tem uma ambiência emocional por trás”, revela. 

 

Fragmentação

O desenvolvimento tecnológico da medicina passou por um crescimento exponencial no último século, acentua o médico Marco de Carvalho. Com as especialidades e o aperfeiçoamento técnico, o número de doenças que são tratadas atualmente é muito superior àquelas tratadas no passado. Embora tenha contribuído para o bem-estar da sociedade, esta fragmentação impulsionou a prática médica a focar mais na doença do que no paciente, pondera o professor.

“Isso é um grande problema. Muitas vezes, quando o profissional vai tratar um caso complexo, ele divide em um monte de casos específicos, mas não necessariamente a solução de todas as partes será a solução do todo. Esse é o nosso desafio porque a medicina fragmentou o paciente demais, mas ele continua sendo um só. Às vezes o profissional tem a habilidade de ir até a parte, mas nem sempre tem a habilidade de voltar ao todo. Portanto, a medicina corre o risco de se esquecer do paciente enquanto está cuidando da doença”, alerta.

A tese defendida por Marcelo Schweller mostrou que determinadas especialidades médicas também estão associadas aos níveis de empatia de estudantes de medicina. Aqueles que pretendem especialidades com contato direto com os pacientes, como medicina de família, clínica médica, psiquiatria e pediatria, apresentam níveis de empatia maiores que os estudantes que buscam especialidades orientadas por tecnologia ou procedimentos, como anestesiologia, radiologia e patologia.

 

 

Publicações

Artigo

Schweller M, Costa FO, Antônio MÂRGM, Amaral EM, Carvalho-Filho MA. The impact of simulated medical consultations on the empathy levels of students at one medical school. Acad Med. 2014;89(4):632-7.

Congressos

Apresentação oral do trabalho “The impact of simulation of medical consultations on medical student empathy levels”, de autoria de Marcelo Schweller, Felipe Osorio Costa, Eliana Martorano Amaral, Maria Angela Reis de Goes Monteiro Antonio, Marco Antonio Carvalho Filho no congresso internacional AMEE 2012, em Lyon (França), realizado entre 27 e 29 de agosto de 2012.

Apresentação oral do trabalho “It is good to be a doctor: preserving empathy through a positive look into the practice of medicine”, de autoria de Marcelo Schweller, Eloisa Celeri e Marco Antonio de Carvalho Filho no congresso internacional AMEE 2013, em Praga (República Tcheca), realizado entre 24 e 28 de agosto de 2013.

Apresentação em forma de pôster eletrônico “Simulated medical consultations with an extended debriefing: Students’ perception of learning outcomes, de autoria de Marcelo Schweller, Silvia Passeri e Marco Antonio de Carvalho Filho no congresso internacional AMEE 2014, em Milão (Itália), realizado entre 30 de agosto e 03 de setembro de 2014.

 

Tese: “O ensino de empatia no curso de graduação em medicina”
Autor: Marcelo Schweller
Orientador: Marco Antonio de Carvalho Filho
Unidade: Faculdade de Ciências Médicas (FCM)
Financiamento: Fapesp e Capes