Edição nº 609

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 03 de outubro de 2014 a 12 de outubro de 2014 – ANO 2014 – Nº 609

Livro compila protocolos em proteômica

Publicação organizada por professor do IB reúne autores de todo o mundo

Depois de seis anos na Europa, onde fez um pós-doutorado no Instituto Max Planck (Alemanha), outro na Universidade de Cambridge (Inglaterra) e liderou um grupo de pesquisa na Universidade de Munique (Alemanha), o biólogo Daniel Martins-de-Souza retornou ao Brasil para ocupar a posição de professor no Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, onde se graduou e se doutorou. No IB, o biólogo tem se dedicado à instalação do primeiro laboratório de neuroproteômica da América Latina. Um dos interesses do cientista é investigar os fatores que concorrem para o desenvolvimento da esquizofrenia e depressão. 

Enquanto cria as condições para que o laboratório esteja totalmente operacional, o que deverá ocorrer a partir de novembro próximo, Martins-de-Souza também aproveita para divulgar o lançamento de um novo volume da série “Methods in Molecular Biology”, publicado pela editora Springer, da qual foi o organizador. Intitulada “Shotgun Proteomics”, a obra faz uma compilação de diferentes protocolos em proteômica, cujos autores estão entre os mais destacados pesquisadores da área em todo o mundo. Na entrevista que segue, o docente da Unicamp fala sobre a importância do livro, destaca o avanço da proteômica e reafirma o que disse em editorial publicado pela revista Proteomics, em 2012: o Brasil é o país do futuro nesta área do conhecimento.

 

Jornal da Unicamp – Em 2012, o senhor publicou um editorial da revista Proteomics no qual afirmava que o Brasil reunia uma série de condições para ser o país do futuro na área da proteômica. A edição deste livro é, em alguma medida, reflexo desse contexto?

Daniel Martins-de-Souza – Creio que sim. Eu fui convidado para editar este livro, que é uma compilação de diferentes trabalhos em proteômica, no momento em que estava voltando ao Brasil depois de permanecer seis anos no exterior. Penso que o convite veio ao encontro do que a gente previa sobre o crescimento da proteômica no Brasil. A gente tem visto esse avanço, por exemplo, através do financiamento de vários projetos de pesquisa e da consolidação e criação de novos laboratórios dedicados a essa área do conhecimento no país. Penso que estamos em pé de igualdade para competir com as grandes potências nessa área.

 

JU – Em dois anos já foi possível identificar esses progressos?

Martins-de-Souza – Na verdade, um dos fatores que contribuiu bastante para essa evolução foi que, após a publicação da edição especial da revista Proteomics intitulada “Proteomics in Brazil”, contando somente com artigos de grupos brasileiros, nós promovemos em dezembro de 2012 um encontro com pesquisadores em proteômica de todo o país. Na ocasião, fundamos a Sociedade Brasileira de Proteômica (BrProt). Com o surgimento da entidade, houve um fortalecimento ainda maior das pesquisas em âmbito local. Em dezembro próximo nós faremos um segundo encontro, que será realizado conjuntamente com o Encontro Pan-Americano de Proteômica Humano. O evento reunirá especialistas do mundo todo. Isso é uma mostra da força que o Brasil adquiriu na área.

 

JU – Como surgiu o convite para editar o livro?

Martins-de-Souza – O livro pertence a uma série intitulada Methods in Molecular Biology, que é publicado pela editora Springer. Este livro é a edição 1.156. Ou seja, é uma publicação bastante tradicional na área da biologia molecular. Cada edição aborda um tema diferente, mas sempre tendo como pano de fundo a biologia molecular. O convite surgiu porque eu encontrei o editor-chefe desta edição, o cientista norte-americano John Walker, em um evento científico na Alemanha. Tendo lido meu editorial na Proteomics, Walker perguntou se eu não tinha interesse em fazer uma edição que fosse uma referência de tudo o que se faz atualmente em proteômica baseada em espectrometria de massa.

 

JU – O senhor teve total liberdade para convidar os autores? 

Martins-de-Souza – Sim, total liberdade. O que eu procurei fazer foi convidar os líderes de pesquisa em proteômica no mundo, dos mais diferentes países. Primeiramente, dividi o livro em algumas seções que contêm capítulos sobre um determinado assunto. O resultado é uma compilação bastante abrangente, que conta com a visão e a experiência de cientistas de diferentes locais e instituições. Nesse sentido, há abordagens referentes às técnicas utilizadas em proteômica para identificação e quantificação de proteomas, à importância da bioinformática, entre outros temas, sempre associados à espectrometria de massas. Quanto à nacionalidade dos autores, nós temos brasileiros, norte-americanos, israelenses, espanhóis, alemães, sul-coreanos, britânicos, finlandeses, noruegueses, canadenses etc. Ao todo, são 28 capítulos.


JU – Foi muito difícil mobilizar tantos cientistas de tantos países diferentes?

Martins-de-Souza – Foi desafiador. Para chegar a esses autores, eu tive que convidar aproximadamente 65 deles. Nem todos, obviamente, puderam atender ao convite por causa de compromissos já assumidos. Ainda assim, fiquei feliz porque temos no livro autoridades reconhecidas internacionalmente por seus trabalhos na área da proteômica. 

 

JU – Entre a ideia e a impressão do livro, quanto tempo foi necessário?

Martins-de-Souza – Foi preciso quase dois anos para concluir o projeto. Primeiro, eu tive que fazer a divisão das grandes áreas do livro para depois fazer os convites. Conforme os protocolos iam chegando, eu lia cada um deles e, eventualmente, pedia uma ou outra explicação adicional ao autor. E cada protocolo foi ainda avaliado por revisores externos. Foi um longo processo.

 

JU – O livro se destina a um público formado somente por pesquisadores da área ou é acessível também ao aluno de graduação interessado no tema?

Martins-de-Souza – Uma das preocupações que tivemos ao delinear o livro foi justamente construir capítulos que fossem acessíveis a um público que tivesse um mínimo de compreensão sobre o assunto em pauta. No caso desta edição, o leitor não precisa saber muito sobre espectrometria de massas. Se a pessoa tiver acesso aos reagentes necessários, ela poderá executar um experimento e eventualmente se associar a quem tem um espectrômetro de massas. Os capítulos apresentam um passo a passo que ajuda na execução dos experimentos. Então, um aluno de graduação é perfeitamente capaz de seguir os protocolos propostos, sem grandes dificuldades. Além disso, os capítulos também trazem notas que explicam com mais detalhe um ou outro aspecto mais complexo. 

 

JU – O livro já foi lançado oficialmente?

Martins-de-Souza – Sim, a editora Springer fez um lançamento oficial em seu website e tem apresentado esta edição em alguns eventos científicos. No ASMS [encontro da sociedade americana de espectrometria de massas], tanto a venda quanto a repercussão foram muito boas, segundo a Springer. O livro também pode ser comprado e acessado por via digital, tanto pelo site da Springer quanto via PubMed.

JU – Duas perguntas inescapáveis em termos de divulgação científica: o que é e qual a aplicação da proteômica?

Martins-de-Souza – A proteômica é a ciência que estuda o proteoma. E o proteoma pode ser definido de forma simplificada como o complemento proteico do genoma. O termo proteoma foi cunhado há pouco menos de 20 anos. A proteômica emergiu a partir do momento em que se teve em mãos dados sobre o genoma, mais especificamente o genoma humano. Foi quando os pesquisadores ficaram mais interessados em estudar o que o genoma produz. A informação genética contida no genoma é expressa a partir da produção de uma proteína. A ideia da proteômica é entender quais proteínas estão sendo produzidas por um organismo, tecido ou célula e dessa forma compreender os processos moleculares contidos nesse organismo. 

 

JU – No seu caso em particular, essa busca por entendimento está relacionada aos fatores envolvidos no desenvolvimento da esquizofrenia, é isso?

Martins-de-Souza – Sim, aqui no Laboratório de Neuroproteômica do IB estudamos doenças psiquiátricas, dentre elas a esquizofrenia. Um tipo de análise que a gente faz é comparar as proteínas produzidas no cérebro de um paciente com esquizofrenia com as produzidas por uma pessoa que não apresenta a doença. Ao quantificar essas proteínas, a gente consegue entender como a doença funciona molecularmente. A proteômica também tem sido muito utilizada para identificar biomarcadores. Um exemplo de um trabalho que temos aqui é a comparação das proteínas do sangue de um paciente que respondeu bem ao tratamento de esquizofrenia com as proteínas presentes no sangue de um paciente que não respondeu bem à terapia com antipsicóticos. Dessa forma, nós podemos identificar proteínas que podem predizer se alguém tem disposição ou não de responder bem a uma dada medicação.

 

JU – Em última análise, esse conhecimento pode ajudar na prescrição de um medicamento “personalizado”, voltado especificamente ao problema de uma dada pessoa? 

Martins-de-Souza – Exatamente. A proteômica também é uma ferramenta muito útil àquilo que os especialistas classificam de medicina translacional. O objetivo, nesse caso, é o desenvolvimento de produtos e processos que possam ser aplicados clinicamente. 


JU – A espectrometria de massas é um recurso fundamental para as pesquisas na área, não?

Martins-de-Souza – Sim. A espectrometria de massas, que é a base para a proteômica tratada no livro, é utilizada na grande maioria dos estudos da área. Toda a parte de identificação das proteínas é feita por espectrometria de massas. Provavelmente a proteômica é a ciência que mais evoluiu e mais tem evoluído em relação a qualquer outra ciência, muito em função dos avanços das técnicas em espectrometria de massas. Cada vez mais a gente consegue identificar mais proteínas. Há cinco anos, quando eu ainda estava na Alemanha, nós conseguíamos identificar cerca de mil proteínas no nosso tecido cerebral. Atualmente, conseguimos identificar perto de cinco mil. É um progresso muito rápido.

 

JU – O senhor foi contratado em maio último como docente da Unicamp. Sua proposta foi criar na Universidade o primeiro laboratório de neuroproteômica da América Latina. Em que estágio está o projeto?

Martins-de-Souza – De fato, fui contratado em maio. No momento, estamos na fase de adequação de espaços do laboratório e aguardando a chegada do espectrômetro de massas, que já foi embarcado e deverá chegar nos próximos dias. Nossa expectativa é de que o equipamento já esteja funcionando a partir de novembro. Por outro lado, temos outras técnicas que já estamos utilizando. Ainda não estamos a pleno vapor, mas estamos dando os primeiros passos.

 

JU – E em termos de formação de equipe?

Martins-de-Souza – Como você disse, a nossa expectativa é de que o laboratório se torne uma referência em neuroproteômica. Ele é o primeiro da América Latina. Nós contamos com financiamento da Fapesp [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo], e certamente contaremos com uma estrutura muito competitiva comparada a de outros laboratórios espalhados pelo mundo. Atualmente, eu tenho uma aluna de iniciação científica e uma aluna de mestrado, além de dois alunos de doutorado, que devem começar as pesquisas a partir de março do ano que vem. O interessante é que estes dois estudantes de doutorado são estrangeiros: um é da Índia e outro de Cingapura. Conto também com uma pós-doc em tempo integral na Unicamp e outra que atua metade do tempo aqui e outra metade no Rio, desenvolvendo um projeto colaborativo com o professor Stevens Rehen, da UFRJ, que trabalha com células-tronco.

 

JU – A sua trajetória incluiu seis anos de experiência na Europa, onde teve a oportunidade de estudar no Instituto Max Planck de Psiquiatria (Alemanha) e na Universidade de Cambridge (Reino Unido). Com base nessa vivência, como o senhor analisa esse movimento feito pelo Brasil em direção à internacionalização da sua ciência?

Martins-de-Souza – Eu vejo como muito importante esse movimento. Um reflexo dessa iniciativa são os novos professores que têm ingressado aqui no IB, todos eles com alguma experiência no exterior. É importante que as pessoas saiam do país para aperfeiçoar a sua formação, mas é igualmente importante que elas voltem para poder compartilhar esse conhecimento adquirido com os que estão aqui. Isso não é uma crítica, pois a decisão e voltar ou não está vinculada a uma série de fatores. Outra coisa importante a se dizer é que enviar estudantes para o exterior é muito válido, mas igualmente válido é atrair pesquisadores e estudantes estrangeiros para as nossas universidades. Uma parte importante da internacionalização passa por essa iniciativa. O pesquisador ou estudante estrangeiro traz toda uma carga cultural e de conhecimento que normalmente é compartilhada com o restante da comunidade universitária.