Edição nº 597

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 19 de maio de 2014 a 25 de maio de 2014 – ANO 2014 – Nº 597

O samba mediado


Há mais semelhanças entre o chamado samba de raiz e o pagode romântico da década de 1990 que muita gente possa supor. Esta é a tese desenvolvida pelo pesquisador Waldir de Amorim Pinto em seu trabalho de doutorado: “O estúdio não é o fundo de quintal: convergências na produção musical em meio às dicotomias do movimento do pagode nas décadas de 1980 e 1990”. Para Waldir, tudo é pagode e tudo é samba, sem melindres. Mas ele explica.

 “Quando o samba, no caso específico, o pagode, é gravado, automaticamente precisa passar por uma mediação, e um dos principais mediadores é o produtor musical. Na mediação ocorre a conexão e a tradução de mundos, pessoas, valores e ideias díspares, em suas várias formas”. Waldir usa diversas vezes a palavra “mediação”. A insistência no termo deve-se ao fato de que, analisando diversas obras, o doutorando verificou que nas mãos do produtor musical e, em estúdio, o que significa sob a influência de muitos fatores, o samba não é o mesmo que o tocado na roda e apresenta elementos de sua variação mais comercial ou até mesmo de outros estilos musicais.

Ao passar por um estúdio de gravação, a música reflete o processo de mediação que seria de responsabilidade do produtor musical. A necessidade de criar “rótulos” advém, segundo a tese, do mercado fonográfico. Divide-se o produto para criar um novo nicho mercadológico, acredita Waldir. “O público de modo geral tem a visão que os meios de comunicação passam, já os músicos têm, em tese, uma visão mais técnica e aprofundada.” Waldir de Amorim Pinto é contrabaixista de formação prática e acadêmica, graduado em música pela Unicamp, com mestrado nos Estados Unidos. Ele analisou mais de 30 discos de grupos de pagode dos anos 80 e 90.

Um dos exemplos dos resultados da mediação, ou influência, de que trata Waldir, é Samba pras Moças, de 1995. A música título do primeiro disco de Zeca Pagodinho, lançado pela gravadora Universal, na época Polygram, ganhou uma tonalidade baiana, por conta do sucesso da axé music, que imperava na década. Foi o produtor musical Rildo Hora o responsável por acrescentar dendê ao samba carioca. “Os anos 90 marcaram a explosão da música sertaneja e da axé music com percussão massiva. Grande parte do casting da Universal era ligado ao axé. Rildo me disse que a simulação de percussão baiana foi a sacada neste trabalho de Zeca Pagodinho. A introdução com sonoridade baiana foi um sucesso”.

Da mesma forma, afirma Waldir, o grupo Katinguelê, inspirado no partido alto e no modelo de sonoridade do Fundo de Quintal faz o samba Meu Cavaco, com a participação de Zeca Pagodinho. Waldir ressalva que Katinguelê, Exaltasamba, Soweto e Grupo Raça, entre outros, são grupos da década de 1990 conhecidos como representantes do chamado pagode romântico, mas que, em muitos fonogramas, utilizam o paradigma musical da geração do pagode da década de 1980.

 

Instrumentos

É em relação à utilização dos instrumentos que Waldir afirma ter encontrado mais pontos convergentes. Desde que Pelo Telefone, de Donga e Mauro de Almeida foi gravada, em 1917, o samba se tornou mais popular. Nessa época, as fronteiras ainda não eram tão definidas. Havia a polca e o maxixe, que se confundia com o samba. “Tal qual conhecemos hoje, o samba veio após 1928, 1929, por conta da inserção de alguns novos instrumentos como surdo, cuíca e tamborim, usados pelo bloco carnavalesco Deixa Falar, do Rio de Janeiro, para facilitar a marcação do cortejo do carnaval”, sinaliza. 

Quanto maiores e mais organizados, os cortejos cariocas mais atraíam a atenção do público, do estado e mais tarde da mídia, até chegar ao grande espetáculo que é visto hoje na Sapucaí. “Com o passar do tempo, os desfiles foram deixando de ser uma coisa comunitária e passaram a ser um grande espetáculo midiático. O samba foi se restringindo ao samba-enredo e muitos compositores acabavam à margem desse processo”.

O refúgio de vários sambistas chamava-se Cacique de Ramos, o bloco carnavalesco formado na década de 1960, cujo presidente, “Bira Presidente”, fundou posteriormente o grupo Fundo de Quintal. “As reuniões informais começaram a ocorrer em outros espaços, fora do carnaval. Ali, no Cacique, se tocava o samba na roda, sem amplificação, reunindo figuras como Jorge Aragão, Arlindo Cruz, Zeca Pagodinho, Almir Guineto, Jovelina Pérola Negra, entre outros. O Cacique foi o principal ponto irradiador do pagode dos anos 80”.

Segundo o pesquisador, por sua característica mais intimista, a roda de samba do Cacique acabava “expulsando” alguns instrumentos que dificultavam às pessoas ouvir as composições, tais como o surdo e o tamborim. Outros entraram: o banjo com braço de cavaquinho, o repique de mão, o tantan. Na roda utilizava-se o partido alto e a improvisação. 

Novos grupos como o Raça Negra, Negritude Junior e Só Pra Contrariar apareceram no início dos anos 1990, ficando conhecidos como representantes do pagode romântico, que fez muito sucesso. “A batida era inspirada no swing de Jorge Benjor, no samba joia de Benito de Paula. Os grupos apareceram utilizando bastante o teclado, saxofone e metais, com músicas e letras mais simples, românticas ou de duplo sentido”. Alguns, como o Negritude Junior, se inspiravam na soul music norte-americana, nos grupos como Jackson Five. 

“Na década de 1990 os músicos ligados ao Cacique não quiseram se vincular ao chamado pagode romântico que seria supostamente um samba aberto às influências internacionais”, pondera Waldir. No entanto, os sambistas vinculados à década de 1980 por sua vez, já utilizavam teclados, bateria, baixo elétrico e, em menor proporção o saxofone e a guitarra elétrica nas gravações. “Até mesmo o surdo e outros instrumentos de percussão do samba que tinham sumido nas rodas do Cacique, no estúdio estão todos lá. Não é só no pagode romântico que estes instrumentos são utilizados”. As supostas diferenças, relembra, seriam usadas para separar o termo pagode em duas vertentes. “Pagode nada mais é do que o samba” enfatiza.

 

Raízes

A definição está nas origens. “Pagode é o encontro social regado à comida, bebida e música com predomínio de instrumentos de percussão, ou seja, samba e pagode originalmente significavam encontros comunitários. Mais tarde o termo pagode foi utilizado para rotular uma maneira específica de se tocar samba e vinculado a um determinado grupo de sambistas ligados ao Cacique de Ramos”. As dicotomias, nos termos da pesquisa, são criadas pelo mercado e com a influência dessa figura tão comentada na tese, que é a do produtor musical.

Além de Rildo Hora (produtor de Zeca Pagodinho, Martinho da Vila, entre outros), o pesquisador entrevistou Milton Manhães, Ivan Paulo, Jorge Cardoso e Alceu Maia. Acreditava que, a partir da multiplicidade de experiências de cada produtor, poderia salientar as diferenças, e não as semelhanças entre o pagode romântico e o chamado samba de raiz. “Os parâmetros dos produtores são diferentes, e eles influenciam no produto. Eu acreditava que as marcas individuais de cada produtor fossem motivos para endossar diferenças, mas, conversando com eles, as semelhanças vieram à tona. As divisões e fronteiras são mais turvas, a linha divisória é tênue”.

Milton Manhães é um nome ligado ao pagode da década de 1980 e aos primeiros discos do Fundo de Quintal. Ivan Paulo produziu Zeca Pagodinho, Almir Guineto. Jorge Cardoso produziu João Nogueira, Alcione, Só Pra Contrariar e Negritude Jr. Alceu Maia, cavaquinhista, produziu Leci Brandão, entre outros sambistas. 

O produtor musical passou a ter importância fundamental na carreira dos artistas a partir dos anos 1950, quando a fita magnética e as gravações de áudio em diversos canais passaram a ser utilizadas em estúdio. “Passou a ser possível editar sons, gravar em canais e mixar. Aí surge o produtor musical como conhecemos hoje. É alguém com visão artística, técnica e de mercado e que, em tese, conhece música e pode interferir no resultado do trabalho”.

Apontando as semelhanças entre o pagode das décadas de 1980 e 1990, Waldir acredita que acabou contribuindo para a questão do juízo de valor que se atribui especialmente à corrente classificada como romântica. “O Zeca Pagodinho hoje é um artista da música popular brasileira. Na década de 1980, ele não tinha esse status. Acredito que o trabalho pode contribuir para diminuir as fronteiras. Como diz o maestro Ivan Paulo (produtor), o samba tem muitas vertentes e você pode brincar com ele do jeito que você quiser”.

 

Publicação

Tese: “O estúdio não é o fundo de quintal: convergências na produção musical em meio às dicotomias do movimento do pagode nas décadas de 1980 e 1990”
Autor: Waldir de Amorim Pinto
Orientador: José Eduardo Ribeiro de Paiva
Unidade: Instituto de Artes (IA)