Edição nº 597

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 19 de maio de 2014 a 25 de maio de 2014 – ANO 2014 – Nº 597

‘Limpando’ o terreno

Dissertação mapeia movimentos sociais que atuam no âmbito da Copa do Mundo

Gentrificação é um termo derivado do inglês que não consta nos dicionários de português: refere-se a um fenômeno que altera a realidade de um bairro ou região com a criação de novos pontos comerciais ou edifícios, valorizando os custos de bens e serviços e dificultando a permanência da população de baixa renda no local. O fenômeno vem ocorrendo nos preparativos da Copa do Mundo a ser disputada em 12 cidades brasileiras e das Olimpíadas no Rio de Janeiro, havendo a estimativa de remoção forçada de mais de 170 mil pessoas, seguindo a ideia de “limpar o terreno” para grandes projetos urbanos. Acima dos impactos econômicos, fundiários, urbanísticos e ambientais, sobressaem-se os sociais.

“A Copa Fifa 2014 para além da política esportiva: estudo do dissenso entre os interesses da ‘cidade empresarial’ e os citadinos através da análise da ação dos movimentos sociais” é o título da dissertação de mestrado de Juliana Cristina Barandão, orientada pelo professor Lino Castellani Filho e apresentada na Faculdade de Educação Física (FEF). “A realização de megaeventos esportivos em solo brasileiro, desde os Jogos Pan-Americanos de 2007 e a Copa das Confederações de 2013, evidencia o surgimento de um modelo de planejamento de cidade pautado na racionalidade econômica e na gestão empresarial do espaço urbano”, afirma a autora da dissertação.

Juliana Barandão explica que, em contraposição à gentrificação, entidades e movimentos sociais se articularam para debater, acompanhar e questionar os projetos, denunciando aspectos que violem os direitos dos setores desprivilegiados da população. “O objetivo da pesquisa é o mapeamento dos movimentos sociais que fizeram e ainda fazem este embate político nas doze cidades-sedes da Copa do Mundo de 2014. A fonte principal é o portal do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas, site onde os comitês populares de cada cidade-sede dialogam em rede nacional – a Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (Ancop).”

A Copa Fifa terá jogos em Belo Horizonte, Brasília, Cuiabá, Curitiba,  Fortaleza, Manaus, Natal, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo, todas as cidades com comitês locais criados por movimentos sociais, universidades e entidades da sociedade civil. “São os próprios comitês populares que alimentam o portal com notícias sobre as lutas, vitórias e derrotas em torno dos projetos”, informa a mestra em educação física. “E, pelas notícias, percebemos que a princípio os movimentos não são contrários à realização da Copa no Brasil; prevalece a ideia de que em nosso país o futebol possui um forte poder simbólico, que também os afeta. As críticas se relacionam à forma como o megaevento está sendo organizado.”

Diante do senso comum de que a realização de megaeventos esportivos impõe às cidades-sedes um modelo de estruturação e gestão, a autora da dissertação, com base em estudos acadêmicos, conclui o contrário: que as cidades, por já possuírem um planejamento estratégico pautado na racionalidade econômica, veem nos megaeventos uma oportunidade de implementação e legitimação do seu projeto de desenvolvimento. E que as entidades e movimentos sociais, por sua vez, veem a oportunidade de discutir demandas sociais, participando dos comitês e buscando soluções que contentem todas as partes. “Na matriz da Copa no Brasil estão projetos guardados há muitos anos e que em outro contexto não seriam aprovados – é um contexto de exceção, em que as regras podem ser mudadas e tudo pode.”

Juliana Barandão afirma que alguns movimentos criticam não apenas as remoções, mas a forma como são executadas, sem o cumprimento de leis internacionais ratificadas pelo Brasil e que dizem respeito, entre outros aspectos, ao aviso com antecedência e participação dos moradores no processo e na definição do local para realocação. “Entidades procuram dialogar com o poder público propondo alternativas como de reduzir a dimensão de projetos para que menos famílias sejam afetadas. Há comunidades vivendo em áreas ocupadas de maneira pacífica, sem oposição dos proprietários e por prazo superior a cinco anos – premissa para a usucapião urbana. Geralmente, eram áreas consideradas franjas urbanas (periféricas) que valorizaram com o crescimento das cidades, tornando-se alvos da cobiça dos especuladores.”

Segundo a pesquisadora, os motivos alegados para a remoção forçada evidentemente são outros: favorecer a mobilidade urbana, proteger as populações de riscos ambientais e inclusive melhorar suas condições de vida. Em tese, a Copa Fifa 2014 e os Jogos Olímpicos do Rio podem deixar legados para as cidades sedes na área social, novas e modernas instalações esportivas, incremento das intervenções urbanas e capacitação do setor empresarial. “Ocorre que em muitos casos estes megaeventos têm gerado efeitos negativos sobre diversos segmentos sociais, especialmente sobre os historicamente excluídos, como moradores de assentamentos informais, migrantes, moradores de rua, trabalhadores sexuais e comunidades indígenas.”
Trabalho e precarização

O problema da moradia talvez seja o que mais afeta as comunidades, mas Juliana Barandão observa que o portal do Comitê Popular da Copa também traz notícias sobre as paralisações de trabalhadores nos estádios em construção, por conta de direitos trabalhistas e denúncia de condições similares às de trabalho escravo. “Sejam empregados e subempregados em grandes obras como estádios e rodovias, sejam trabalhadores informais reprimidos no exercício de sua atividade econômica, observa-se um padrão de crescente precarização, conduzido por empresas e consórcios contratantes e pelo próprio Estado. Se é verdade que os megaeventos poderiam oferecer uma oportunidade de inclusão social dos trabalhadores, geração de empregos e ampliação de direitos, não tem sido esta a realidade no Brasil.”

A autora da dissertação considera que estes efeitos perversos são ampliados através da imposição, pelo público e comitês promotores, do que Carlos Vainer chama de “estado de exceção” instituído especialmente no contexto dos megaeventos, que permite a flexibilização das leis e suspensão de direitos antes e durante os jogos. “A chamada Lei Geral da Copa aprovou a isenção dos encargos para a Fifa, alterou o critério de entrada de estrangeiros no país para os eventos, a lei de descontos para estudantes e idosos (com a estipulação de cotas), permitiu a venda de bebida alcoólica nos estádios (depois de tanta luta para proibi-la) e limitou uma área exclusiva no entorno dos locais de competição para a entidade, prejudicando os comerciantes que já estavam estabelecidos ali.”  

A Lei da Copa, na opinião de Juliana Barandão, não é apenas contrária ao Código de Defesa do Consumidor e ao Estatuto do Torcedor, como flexibiliza a legislação das próprias práticas urbanísticas no Brasil. “No Estatuto da Cidade foi aprovada a possibilidade de aplicação de operações urbanas consorciadas, ou seja, de um conjunto de intervenções pelo poder público em parceria com proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o objetivo de alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e valorização ambiental. E para essas parcerias está prevista a modificação de índices e características de parcelamento, uso e ocupação de solo, regularização de construções ou reformas executadas em desacordo com a legislação vigente.”

De acordo com Juliana, a Articulação Nacional e os Comitês Populares locais estão atentos às violações do ordenamento jurídico brasileiro e ao estado de exceção, somando-se ações que partem de instâncias do próprio governo, visando questões como das isenções ficais à Fifa. “As novas legislações visam conceder exceções e privilégios para assegurar o lucro da Fifa e de seus parceiros comerciais e patrocinadores em detrimento dos interesses da população brasileira. Encontrei 34 notícias postadas sobre o tema, entre elas da urbanista e professora da USP Raquel Rolnik, relatora da Comissão Especial de Direito à Moradia da ONU. Ela dirá que não era prioridade do Brasil organizar um evento tão dispendioso; que em 1950 o Brasil organizou a Copa que podia, e que a mesma postura poderia ter sido adotada agora. Já há indicações de quatro estádios superfaturados e que deverão ficar como elefantes brancos, em cidades que nem possuem times nas séries A ou B.”

Portal tem notícias de 255 entidades

Juliana Barandão informa em sua dissertação de mestrado que no Portal Popular da Copa e das Olimpíadas estão indicados todos os comitês das 12 cidades-sedes, bem como notícias, cartilhas, panfletos e documentos relacionados à Copa do Mundo 2014 e Jogos Olímpicos 2016, produzidos sobre os seguintes temas: luta e resistência, remoções e despejos, trabalho e precarização, exceções e ilegalidades, discriminação e segregação, recursos públicos para interesses privados, criminalização e repressão, elitização e mercantilização da cidade, autoritarismo e processos decisórios e ameaças à soberania.

As notícias possibilitaram identificar 255 entidades/organizações sociais articuladas em torno da temática da Copa 2014, a partir da denúncia de violações dos direitos humanos e da resistência de comunidades afetadas pela organização do evento, seja pela necessidade de remoções em decorrência das obras para os estádios e mobilidade urbana; pelo aumento da especulação imobiliária e, consequentemente, expulsão de parcela da população para as franjas periféricas; pelo alto custo do evento financiando por recursos públicos; e pelo ataque ao sistema jurídico vigente, aos direitos sociais e de certa forma à soberania do país.

Publicação
Dissertação: “A Copa Fifa 2014 para além da política esportiva: estudo do dissenso entre os interesses da ‘cidade empresarial’ e os citadinos através da análise da ação dos movimentos sociais”
Autora: Juliana Cristina Barandão
Orientador: Lino Castellani Filho
Unidade: Faculdade de Educação Física (FEF)