Edição nº 595

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 28 de abril de 2014 a 11 de maio de 2014 – ANO 2014 – Nº 595

No pombo-correio, os gatilhos da memória

Grupos de aves foram submetidos a dois tipos de treino

Orientado pela professora Elenice A. de Moraes Ferrari, do Departamento de Biologia Estrutural e Funcional, do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, o biólogo Fernando Canova se propôs a avaliar a memória espacial em pombos, em situação de escolha alimentar, em função da duração do período de treinamento e também da administração de droga específica.  

Utilizando um experimento de extrema simplicidade, ele determinou como o treinamento influi na capacidade de aprendizagem, na consolidação e na persistência da memória espacial de pombos da espécie Columbia Livia, o conhecido pombo-correio, em situações que envolvem procura por alimento. Embora clássico, os efeitos do treinamento, amplamente aplicado em animais e humanos, devem ser reconsiderados e avaliados em cada espécie estudada.

Fernando Canova, autor da pesquisa, na sala onde foram feitos os treinamentos: utilização de substância específica potencializa resultadosO pesquisador constatou ainda, como era mais ou menos esperado, que a utilização de substância específica potencializa sobremaneira os resultados obtidos nos treinamentos desses animais. Então surge a questão: se os efeitos do treinamento e da administração de droga em pombos eram de certa forma previsíveis, embora ainda não dimensionados em pombos, qual o objetivo da pesquisa? Seus resultados se restringiriam apenas ao comportamento desses animais?

O que efetivamente chama a atenção nessa pesquisa básica é a possibilidade de seus resultados alcançarem o homem. Com efeito, os benefícios advindos da continuidade desse estudo estão atrelados ao desenvolvimento de compostos que não apresentem efeitos colaterais significativos e que, a exemplo de um complemento alimentar, possam ser consumidos para a melhora da memória do ser humano. Para Canova, “esse deve ser o foco principal da pesquisa. Mas o advento dessas possibilidades demanda ainda um longo percurso, que pode vir a ser inviabilizado pelos efeitos colaterais das substâncias utilizadas”.

Primeira etapa
Basicamente o trabalho desenvolveu-se em duas etapas. A primeira visou confirmar os efeitos do treinamento de longo prazo na melhora da memória do animal e serviu de suporte para o experimento. A escolha do pombo-correio se deu pelo fato de a espécie Columbia Lívia apresentar grande capacidade de se localizar no espaço, o que lhe permite conduzir mensagens por extensas distâncias graças à grande memória visual, e ainda devido à circunstância do treinamento estar relacionado à percepção do ambiente para localização do alimento.

Grupos de animais foram submetidos a dois tipos de treino: um de curta duração, em dois dias, e outro de longa duração, em sete dias. O objetivo era mostrar que quanto maior o período de treinamento, maior a possibilidade de os animais conseguirem localizar o alimento na primeira tentativa. E, de fato, os animais com dois dias de treino tiveram os acertos esperados, mas seus desempenhos não se compararam aos animais treinados por sete dias, que localizaram com muito maior constância a posição do alimento. A comparação dos resultados do primeiro e do sétimo dias de treino revelou que o número de escolhas corretas passou de 50% a 88%.

O treinamento foi realizado em uma sala quadrada pintada de branco. No centro das quatro paredes foram afixados indicadores de formas e cores diferentes. Durante o treinamento os pombos eram colocados dentro de uma arena branca circular, situada no centro da sala, em cujo interior estavam dispostos quatro comedouros com areia, equidistantes e junto à parede que circunda a arena. A ração foi colocada em apenas um dos comedouros, devidamente coberta com areia.

Os animais eram colocados sempre em posições diferentes entre os comedouros, por ocasião das seis tentativas que compunham as sessões diárias, tanto durante o treinamento de curta como o de longa duração. O objetivo era o de que o animal através da forma e cor encontrasse o alimento na primeira tentativa, que configurava o acerto. Caracterizou portanto a resposta de escolha o orientar-se, aproximar-se e bicar um comedouro.

Paralelamente, o pesquisador verificou, ao final de cada período de treinamento, tanto de dois como de sete dias, se as melhoras nos desempenhos estavam associadas à maior expressão das proteínas Zenk e Sinapsina I, relacionadas à memória. Ele explica que “a memória espacial envolve alterações plásticas no hipocampo de roedores e de aves e, dentre elas, a indução da transcrição de genes de expressão imediata, tais como o Zenk, que regula a expressão de inúmeros outros genes e proteínas”.

Canova esclarece que ocorre uma reação em cascata. Inicialmente dá-se a ativação da Zenk, que por sua vez vai provocar ativação da Sinapsina I, que é uma proteína ligada ao neurônio responsável pela liberação de neurotransmissores, aumentando-lhes o fluxo liberado. São eles que determinam o aumento da capacidade de armazenamento da memória. Os resultados mostraram que os animais com maior treinamento são os que sintetizam em maior grau essas proteínas, que se mantêm no organismo.

Para determinar o aumento destas proteínas, ao final de cada período de treinamento sacrificam-se os animais e fatias do cérebro da região do hipocampo, relacionada com a memória, são analisadas ao microscópio. Comparam-se então os resultados com os do grupo de controle, que não recebeu treinamento.

Segunda etapa
Na segunda etapa, o pesquisador se propôs a testar efetivamente o aumento do desempenho dos pombos a partir da administração de uma substância específica: o faclofeno. Neste caso, o treinamento foi realizado apenas durante sete dias ao final dos quais era administrada a substância.  Ele utilizou dois grupos distintos: um em que o processo se encerrava ao final de sete dias e outro que, depois de sete dias de treinamento, aguardava mais sete dias para então ser submetido a mais um dia de treinamento. Este procedimento visou testar a persistência da memória espacial e verificar a manutenção do efeito residual da droga. 

Os resultados mostraram que, com a administração do faclofeno, os animais praticamente deixaram de errar, mesmo os que compunham o grupo em que o último dia de treinamento foi realizado com um intervalo de sete dias de espera, o que evidencia a manutenção do efeito da droga por determinado período.

Estes estudos levam o pesquisador a concluir que a aprendizagem na escolha do comedouro correto e a operação de processo de memória de longa duração em pombos treinados dependem da duração do treinamento. Por outro lado, as análises das regiões do hipocampo que visaram caracterizar a contribuição das proteínas Zenk e Sinapsina I demostram que o treino induziu a expressão de ambas em pombos, sendo maior nos animais treinados por sete sessões.

Já o efeito do tratamento com faclofeno facilitou o processo da memória. Para ele, o estudo indica que as aves, e particularmente o pombo, constituem modelos experimentais interessantes para o estudo dos aspectos comportamentais e neurais da aprendizagem espacial, possibilitando a análise de características que são conservativas entre espécies de mamíferos e aves.

O autor acrescenta: “Os dados obtidos indicam que a experiência em escolha espacial desencadeia a ativação de mecanismos sinápticos que resultam na expressão de Zenk e Sinapsina I no hipocampo de pombos, os quais estão envolvidos na consolidação da memória espacial de escolha alimentar. Por outro lado, os efeitos do tratamento com faclofeno sugerem ativação e participação de neurotransmissores nesses mecanismos”.  

Diante dos resultados Canova enfatiza que “o interessante no trabalho não é a sua aplicação em animais, mas os benefícios que ele pode trazer se transposto para os seres humanos como recurso capaz de potencializar a memória, desde que se desenvolvam substâncias para esse fim que não apresentem efeitos colaterais e que não se constituam em anabolizantes, mas possam ter a função de complemento alimentar”. 

Canova defende a continuidade desses estudos com outros animais e, depois, dependendo da evolução dos conhecimentos, com humanos, desde que superados os efeitos colaterais. Mas mesmo nesses casos, se esses efeitos puderem ser controlados, de maneira que se manifestem em longo prazo, existe ainda, segundo ele, a possibilidade de empregos dessas substâncias para preservar certa capacidade da memória em pessoas acometidas de doenças degenerativas.

Pós-doutorado
No pós-doutorado que acabou de iniciar, Fernando Canova continua se dedicando ao estudo da memória, mas com outra abordagem: ele quer saber como está a memória de estudantes da Unicamp. 

Além da memória, ele avalia nesses alunos o estresse através da medida do índice de cortisol. O cortisol é relacionado com o estresse e seu índice aumenta com ele.  A ideia é verificar se o aumento do estresse altera o grau de memorização e em consequência diminui a capacidade de aprendizagem. O projeto visa contribuir para a melhoria do rendimento do ensino na Unicamp e dele participam voluntariamente alunos de todas as áreas de cursos de período integral e noturno.

Publicação
Tese: “Aprendizagem de escolha alimentar em pombos (Columbia Livia) e imunorreação para as proteínas Zenk e Sinapsina I no hipocampo: efeito do antagonista de receptores Gabab, faclofeno”
Autor: Fernando Canova
Orientadora: Elenice A. de Moraes Ferrari
Unidade: Instituto de Biologia (IB)