Edição nº 589

Nesta Edição

1
2
3
4
5
6
8
9
10
11
12

Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 07 de março de 2014 a 16 de março de 2014 – ANO 2014 – Nº 589

Primeiras impressões

Documentário produzido pela RTV, em parceria com Grupo de Pesquisa do CMU, recupera memória do fotojornalismo de Campinas

“O escritor dispõe de tempo para refletir. Pode aceitar e rejeitar, tornar a aceitar (...) Existe também um período em que seu cérebro ‘se esquece’, e o subconsciente trabalha na classificação de seus pensamentos. Mas, para os fotógrafos, o que passou, passou para sempre.” A frase é do francês Henri Cartier-Bresson (1908-2004), reputado como  o “pai do fotojornalismo”. Seu pensamento, ainda muito atual, alerta para a necessidade de valorizar o registro fotográfico como documento, certo de que o esquecimento pode acontecer, e de fato acontece.

Vislumbrando a possibilidade de perder um amplo material de interesse social e de pesquisa, o Grupo de Pesquisa Memória e Fotografia (GPMeF), sediado no Centro de Memória-Unicamp (CMU), entrevistou cinco fotógrafos – Luiz Carvalho de Moura, Gilberto de Biasi, Neldo Cantanti, Antoninho Perri e Nelson Chinalia – que atuaram na imprensa campineira no período entre 1950 e 1998. 

Seus depoimentos estão no documentário “Primeiras Impressões – O Início do Fotojornalismo em Campinas”, recém-produzido pela Rádio TV-Unicamp (RTV) em parceria com o GPMeF. “Muitos desses fotógrafos, do ponto de vista da produção jornalística da cidade, acabaram sendo esquecidos. E essas pessoas foram muito relevantes para que isso acontecesse”, pontua Nelson Chinalia. “O registro da memória deles é fundamental. São personagens dotados de informações valiosas que, se não registradas, acabam se perdendo”. 

O documentário em questão integra a série “Especial Fotografia – Recortes da Memória. Além de “Primeiras Impressões”, foram produzidos “Nelson Chinalia – O Cronista Visual da Cidade”, “Cartões Postais de Campinas” e “Câmara Viajante – Reflexões”, apresentados pela jornalista Luiza Moretti, sob a direção-geral do jornalista Amarildo Carnicel, que também é coordenador do GPMeF e diretor-associado da RTV. 

A concepção desse projeto partiu do fotógrafo e pesquisador do GPMeF Nelson Chinalia. A socióloga Olga von Simson, especialista em História Oral e pesquisadora do GPMeF, imediatamente abraçou a ideia. “Esse projeto foi uma espécie de laboratório que focaliza a fotografia, um tema universal, sedutor e que, por conta disso, desperta grande interesse nas pessoas. Mas o carro-chefe, desde o início, era o vídeo mais amplo, com entrevistas dos fotojornalistas”, relata Amarildo.

A história foi contada a partir do depoimento de Luiz Carvalho de Moura, o patriarca dos fotojornalistas de Campinas, e encerrou com Nelson Chinalia, que reportou os bastidores de sua experiência com os pioneiros da cidade. Este recorte no tempo foi feito quando os fotógrafos deixaram os estúdios, então mais voltados às fotografias sociais e de casamento, e passaram a ter uma presença marcante nas redações dos jornais e a investir na fotografia como elemento de informação. 

“O último fotógrafo a ser contratado numa redação sem a necessidade de diploma de jornalista foi o Nelson. Ele percebeu o valor de aliar a teoria assimilada nos bancos escolares ao desenvolvimento da produção do fotojornalismo”, conta Amarildo. 

Nelson começou a trabalhar no Correio Popular em 1973. Seu primeiro grande desafio foi fotografar o então governador de São Paulo, Laudo Natel. Daquele momento em diante, não parou mais: desfilaram por suas lentes o ex-presidente norte-americano Ronald Reagan, o ex-papa João Paulo II, o ex-piloto de Fórmula I Ayrton Senna e atletas que participaram da Copa do Mundo de Futebol na França em 1998, entre outras personalidades.  

Na condição de editor de fotografia do Correio Popular e docente da Faculdade de Jornalismo da PUC-Campinas, tomou uma importante decisão: a partir daquele momento, todo candidato a fotógrafo do jornal, deveria ter como pré-requisito o diploma de jornalista. 

Foi então responsável pela formação de uma geração de novos fotógrafos que hoje estão distribuídos em jornais e revistas de circulação nacional e em agências do exterior. Embora apostasse na renovação desses profissionais, não abriu mão dos bons fotógrafos que já estavam na redação. “Ele soube unir a vitalidade dos mais novos à experiência dos mais antigos. Esse encontro de gerações, no entanto, deveria ser marcado por uma qualidade fundamental: o olhar diferenciado”, lembra Amarildo. 

“Vejo uma diferença de olhar entre quem cursou a universidade e aquele que aprendeu com a profissão, mas reconheço o olhar de quem já fotografava muito bem, como o Biasi, o Neldo Cantanti, o Antoninho Perri, o Nelson Parizato, o Carlinhos Souza Ramos, o Nerivelton Araújo, entre outros”, destaca Nelson. “Todos vieram da época do filme e vejo que ainda é preciso saber o que é a revelação para depois entender o que é fotografia e o que é o processo digital. Até hoje, ensino fotografia em preto e branco para meus alunos.” 

Nelson sempre notou que cada fotógrafo tinha sua característica para determinadas situações. Ele lembra que Gilberto de Biasi tinha grandes sacadas. Era o Carnaval de 1950. Campinas só tinha três máquinas fotográficas profissionais. A que estava com Biasi não tinha flash. Só tinha chapa. Sua missão era fotografar a entrega do prêmio para a escola de samba vencedora. 

Qual foi sua estratégia? Subiu o prédio defronte ao Correio Popular, na Rua Conceição. Apoiou a máquina na janela, usou um tempo de exposição longo, previu o momento que os outros fotógrafos iriam clicar e ‘roubou’ a luz do flash dos outros num ângulo totalmente diferente. Essa foi a foto publicada pelo jornal. 

O mestre Nelson não é contra a produção digital, entretanto afirma que ela está apenas engatinhando. Tem pouco mais de uma década de vida, em contraposição à fotografia, com quase 200 anos. Aprecia tanto a tecnologia que, com seu celular, realiza vários flagrantes por dia. No Instagram, tem perto de 3.200 seguidores. 

Em sua opinião, num prazo não muito distante, será possível imaginar que a máquina fotográfica não existirá mais. “Quem sabe, será uma espécie de óculos. E quem disse que ainda teremos telas de computador? Talvez o holograma possa substituí-las. Aí a realidade será muito diferente”, pressagia.


Histórico

A fotografia entrou na imprensa em Campinas de maneira rudimentar na década de 1920. A impressão era precária e priorizava somente palavras e poucas ilustrações. Quando mudou o tipo de impressão, e isso possibilitou imprimir a fotografia, tinha aí uma profissão sendo criada. 

Os fotógrafos, oriundos dos estúdios, foram treinados para trabalhar com o repórter. As figuras do repórter e do fotógrafo tiveram início com as grandes revistas brasileiras, como o Cruzeiro, no anos de 1930, e a Manchete, nos anos de 1950.  

Os jornais perseguiram esse objetivo também e, na década seguinte, já tinham essas figuras. Ocorre que ainda não era interessante para as empresas terem fotógrafos contratados. Então eles atuavam como free-lancers. Tinham contratos temporários para certos trabalhos e recebiam por fotografia publicada. Uma curiosidade: quando usavam flash, o preço era mais elevado porque, a cada flash acionado, uma lâmpada era queimada.  

Nelson assistiu à criação do fotógrafo contratado por trabalho e à fotografia quando se estabeleceu como meio de informação, isso porque a impressão já tinha atingido certo padrão de qualidade e as informações, acompanhadas de imagens, tinham mais valor.   

Procurou se inspirar, a princípio, naqueles que fotografavam ao seu lado. Mas não se limitou aos amigos de redação. Começou a buscar em livros grandes nomes da fotografia. Assim, ‘conheceu’ Ansel Adams, Cartier-Bresson e Eddie Adams. Também teve a chance de ler John Edgecoe, que morreu em 2008 aos 94 anos, deixando uma belíssima produção impressa.

A valorização desses profissionais provocou uma reviravolta na produção intelectual dos fotógrafos e muitos passaram a querer publicar na revista National Geographic. Ter uma foto nesta revista era uma espécie de consagração desse profissional. Outro objeto de desejo era participar do time da Agência Magnum, cooperativa francesa de fotógrafos que já reuniu nomes como húngaro Robert Capa, o polonês David Seymour e o francês Henri Cartier-Bresson.

De olho no cenário que se desenhava na Europa, mas com os pés fincados em Campinas, Nelson buscava assimilar ao máximo o conhecimento que lhe chegava. Para ele, Luiz Carvalho de Moura fazia o papel da escola. Quase todos os fotógrafos passavam pelo seu laboratório na Rua Conceição. Possuía uma capacidade incomum de recrutar jovens para lhes ensinar o gosto de fotografar, testemunha. 

Não era somente isso. Ensinava como se portar, visto que o fotógrafo era muito visado. Desfilava nos lugares públicos empunhando máquinas do último tipo. A câmera Rolleiflex pousava à frente dele, como um símbolo de poder. “Ninguém tinha uma sequer do porte das nossas”, garante Nelson, que foi comprar seu primeiro equipamento 20 anos após começar a trabalhar, quando ganhou o Prêmio Vladimir Herzog de Fotojornalismo, em 1995.

Os fotógrafos registravam as várias faces de uma Campinas que batia a porta dos 400 mil habitantes no século 20, produzindo um vasto material, muito importante para sair um dia e se apagar no dia seguinte e cuja guarda não era feita com a devida metodologia, lamenta ele. “E tão importante quanto a escrita do fato é a sua comprovação visual. Todo trabalho hoje, de historiografia e de memória, deve analisar as imagens porque elas podem falar até mais que um texto.” 

Os jornais mudaram os processos de impressão e, por conta disso, muita coisa foi deixada no meio do caminho. Em Campinas, por exemplo, por conta de jornais e redações que mudaram de endereço, muito conteúdo foi jogado. “Graças ao CMU, parte dessa história está guardada. Creio que todas as cidades deveriam ter um órgão como esse, que preservasse a sua memória visual, além da escrita”, lembra a socióloga Olga von Simson, que por muitos anos foi diretora do CMU.

Muito da memória do jornal já não existe mais. Luiz Carvalho de Moura e Neldo Cantani não têm arquivos pessoais – tudo se perdeu. O diálogo com eles no documentário então se deu por meio de fotografias já conhecidas ou daquelas inseridas no livro Um Click na História. “Como Nelson conhecia o que foi perdido, construiu questões e diálogos baseados nesse acervo que não podemos mais construir”, comenta Olga. 

Segundo a socióloga, é valioso preservar essa memória e conseguir chamar pessoas que tenham uma história a contar. São pessoas lúcidas, testemunhas vivas de uma história que elas próprias protagonizaram. 

“Compete ao grupo de pesquisa, dentro de uma metodologia estabelecida, investigar, reunir e organizar essas informações que são históricas. E ressalto também o importante trabalho dos profissionais da RTV-Unicamp que, desde a captação de imagens até o trabalho de edição, deram forma e movimento a um conteúdo que poderia ficar esquecido numa prateleira. Esse é um dos papéis da TV universitária: dar visibilidade às produções desenvolvidas na academia”, considera Amarildo. “Desconheço que haja disponível um material sobre Luiz Carvalho de Moura, guardado e preservado, em termos de áudio e vídeo, com a qualidade que acabamos de fazer.” 

Tão ou mais importante que os sete minutos da fala de Carvalho de Moura – de um total de 35 minutos do documentário – é o material com mais de uma hora que o grupo de pesquisa tem na íntegra. O material ora registrado torna-se referência obrigatória para quem quiser investigar sobre a história do fotojornalismo de Campinas. 

Nelson observa que somente a partir dos anos de 1990 foi que a imprensa da cidade começou a preservar essa memória visual de modo mais sistematizado e organizado. “Isso graças ao empenho do jornalista Antonio Scarpinetti, fotógrafo da Assessoria e Imprensa da Unicamp. Ele foi responsável pela catalogação e documentação desse material no Correio Popular. O jornal e, por extensão, Campinas, deve a ele esse trabalho que é tão valioso quanto produzir a fotografia”, conclui Nelson.

 

Memória

A professora Olga sempre trabalhou com a memória mediante a intertextualidade, que envolve a imagem composta com o texto e gerada pela oralidade. “A fotografia foi fundamental em meus trabalhos anteriores, porque sempre ‘detonou’ o processo de memorização dos meus entrevistados”, afirma.

Quando foi possível associar uma fotografia antiga ao tema da pesquisa e a mostrava ao entrevistado, percebia que a memória dele ganhava novo impulso, porque as informações da imagem faziam com que se lembrasse com riqueza de detalhes. Então essa associação entre imagem e o texto oral, que depois se tornou o texto escrito, é o que permite fazer esses trabalhos de recuperação da memória”, avalia.

Olga passou pela experiência típica de quem trabalha com fotos do passado. Quando tinha em suas mãos as fotos feitas com as câmeras convencionais, os acervos eram pequenos, as fotos eram cuidadas, tudo porque o fotógrafo sabia que tinha um número determinado de chapas a fazer. Ele se preocupava com a luz, com o ângulo e com uma série de aspectos da construção fotográfica. 

Depois vieram as fotos digitais, e as pessoas fotografam desbragadamente, sem grandes preocupações. A fotografia democratizou-se, contudo piorou a qualidade. É no computador que ele vai escolher as melhores imagens, melhorá-las com o Photoshop e depois divulgá-las pelas redes sociais.

De outra via, há que se considerar que a quantidade é tão demasiada que as pessoas já não se prendem mais às imagens. Quem fotografa, peca pelo excesso. Então encontrar um bom fotógrafo, que se preocupe ao adotar o ritual fundamental para construir uma boa fotografia, faz a diferença, pondera a socióloga. “Acho isso premente na formação dos novos fotógrafos, para quebrar a ânsia do registro sem maiores cuidados. O ritual só qualifica o trabalho.” 

A pesquisadora mencionou que o documentário muito a emocionou a priori pelo respeito que se deve ter pelos idosos, por aqueles que construíram uma trajetória com heroísmo, com tropeços, porém que foram capazes de se afirmar e de se tornar reconhecíveis. “Isso também deve ser ensinado aos mais novos.”

Em suas palavras, os idosos são resultado de trajetórias anteriores, de experiências anteriores, de vivências anteriores, e são capazes de transmiti-las. “Respeitá-los, valorizá-los e reconhecê-los é também garantir que não sejam jogados às traças, que nossa memória não seja apagada. É valorizar a memória para que a tradição desse conhecimento possa permanecer”, ensina Olga.

 

Metodologia

Durante a produção do documentário, os pesquisadores estabeleceram – com base na história oral – a recuperação dessa memória mediante um roteiro de perguntas. A parte intelectual da produção diz respeito ao GPMeF. A RTV-Unicamp se interessou pela ideia e, assim, foi estabelecida a parceria. 

O grupo de pesquisa não se preocupou apenas em reconstruir aspectos da trajetória dos fotógrafos entrevistados. Queria conhecer um pouco da história de cada um e aprofundar esse conhecimento através de uma análise mais cuidadosa. Quando feitas as entrevistas, pela qualidade do material, composto pelo depoimento de Nelson e pelo seu arquivo fotográfico, percebeu-se que o conteúdo permitia um roteiro que sustentava um documentário.

Ele foi lançado no site da RTV e batizado como “Nelson Chinalia, o cronista visual de Campinas”. O retorno do público foi muito positivo. É apresentado no canal 10 da NET e também sob demanda no portal. “É algo interessante porque você assiste o quê, quando, quantas vezes e o trecho que quiser. Ao constatar o retorno desse vídeo, percebemos que a RTV poderia atuar nessa outra frente, além de suas produções que integram sua grade de programação”, comemora Amarildo.