Edição nº 584

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 25 de novembro de 2013 a 01 de dezembro de 2013 – ANO 2013 – Nº 584

O físico e os pífanos


Impedância acústica é um conceito que indica a resistência oferecida por sistemas à propagação de ondas sonoras, e seu conhecimento é indispensável quando se almeja descrever ou controlar o comportamento acústico de dutos cilíndricos, como acontece para sistemas de ventilação de edificações, sistemas de escape e silenciadores de veículos, ou mesmo para instrumentos musicais de sopro. A impedância é obtida experimentalmente através de um medidor, que registra a sua variação em frequência.

O tema escolhido pelo físico Rodolfo Thomazelli para a sua dissertação de mestrado foi justamente a “construção e validação de um medidor de impedância para sistemas tubulares”, com a orientação da professora Stelamaris Rolla Bertoli, da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC) da Unicamp. O inusitado, em um estudo na área de engenharia civil e arquitetura, é o objeto escolhido para validar o medidor: o pífano, instrumento de sopro da família das flautas, bastante popular no Brasil e feito artesanalmente de bambu.

“A princípio, o objetivo era construir um medidor para investigar a impedância acústica de dutos cilíndricos simples e complexos de maneira geral, mas na etapa de validação decidimos utilizar os pífanos. Poderíamos ter escolhido qualquer instrumento de sopro, mas o interesse por esse instrumento surgiu devido à sua característica tradicional: é feito de bambu e não há um padrão para sua confecção, cada artesão constrói do seu jeito, algo interessante para ser estudado e documentado”, justifica Rodolfo Thomazelli, que também é músico. 

Na opinião do autor da pesquisa, o entendimento e a descrição do mecanismo de produção sonora de instrumentos musicais é de interesse da ciência devido à complexidade dos fenômenos acústicos envolvidos. A modelagem de tais fenômenos no mínimo agrega ao conhecimento. Por outro lado, aplicações podem ocorrer de acordo com necessidades apontadas por músicos e artesãos. “Estudos científicos podem contribuir, ainda, para melhorar a qualidade de instrumentos musicais industriais produzidos em larga escala, além de oferecer opções para experimentações em novas estéticas no mundo musical.”

Thomazelli encontrou na literatura muitos estudos utilizando métodos experimentais para aquisição da impedância de instrumentos de sopro, principalmente da flauta transversal, mas nenhuma pesquisa experimental com o pífano. “Nesse sentido, a pesquisa pode ser inédita. O método adotado é extensivo a outros instrumentos e aplicações, tanto que nos próximos meses vamos medir a impedância acústica de protótipos de tratos vocais, cujos resultados incorporarão uma pesquisa acerca da influência do trato na execução das flautas transversais, tema de doutorado da pesquisadora Fabiana Coelho, da USP.”

O método experimental adotado, como esclarece o pesquisador, tem a sigla TMTC (Two Microphones Three Calibrations), uma versão acessível e eficiente de métodos que vêm sendo utilizados desde 1970, baseados no uso de dois microfones, para a obtenção de coeficientes de absorção sonora de materiais. “Os autores do método desenvolveram e publicaram em 1990 o sistema de calibração total,  que garante a qualidade das medições da impedância de sistemas acústicos.” 

Mostrando seu aparato, Rodolfo Thomazelli explica que o pífano é conectado na ponta de um tubo denominado “cabeça de impedância”, por onde insere-se um sinal sonoro que compreende uma grande faixa de frequências; e a interação do pífano com o aparato experimental gera um padrão acústico que é captado pelos microfones. “A partir de manipulações matemáticas com os sinais captados, obtenho as medidas de impedância, que são impressas na forma de gráficos para análise. A impedância é uma característica do objeto e independe do tipo de excitação sonora, ou seja, da ação do músico. Por isso, não analisamos a interação entre pífano e tocador, que é subjetiva; tiramos medidas objetivas das características acústicas próprias do instrumento, o que pode auxiliar na sua confecção ou qualificação, desde que haja interesse por parte do artesão.”

Concluída a dissertação, o autor ainda pretende fazer ajustes no equipamento visando melhores resultados e outras aplicações, entre elas medições de coeficiente de absorção sonora de materiais, um recurso bastante útil para a FEC. “Ao invés de utilizar uma câmara reverberante, é possível colocar uma pequena amostra do material no aparato e obter, por procedimentos específicos, os valores de coeficiente de absorção sonora. Outros exemplos de aplicações referem-se ao auxílio do controle de ruído em tubulações de sistemas de ar ou a detecção de vazamentos em outros sistemas cilíndricos de edificações. O medidor de impedância pode trazer ainda informações acústicas a respeito de vários outros objetos, como silenciadores e protótipos de canais auditivos.”

Parceria musical

Thomazelli teve em sua pesquisa a colaboração do músico Fernando Tocha, que pesquisa as brincadeiras da cultura popular, principalmente as bandas de pífano, e que também possui seu lado artesão na construção de instrumentos. “Como músico e artesão, minha vontade é construir um bom instrumento, buscando uma sonoridade que transite do tradicional às novas linguagens musicais. A princípio, o artesão não precisa da ciência, mas essas ferramentas podem ajudá-lo a corrigir eventuais deslizes na construção e descobrir novas possibilidades.”

Formado em antropologia e agora cursando música na Unicamp, Fernando Tocha contribuiu com as flautas para analisar se os dados científicos batiam com a percepção do músico em termos de sonoridade. “Medimos cada nota na escala do pífano, observando o comportamento do instrumento frente a diferentes estímulos sonoros. Sugiro que os dados sejam utilizados para aprimorar a fabricação de flautas, ou mesmo produzir um padrão para que o artesão não precise se guiar somente pela audição e pela experimentação oral, que são de fundamental importância para a vivacidade das tradições”. 

Normalmente, o artesão tradicional de pífanos constrói duas flautas quase idênticas, faz perfuração por perfuração, acompanhando auditivamente as interferências na construção, deixando as duas afinadas entre si e com uma sonoridade belíssima e singular quando tocadas juntas. “Como eu não sou criado na tradição do pífano e tenho uma influência musical diversa, os pífanos que construo são afinados na escala temperada ocidental, o que possibilita tocá-los com instrumentos construídos industrialmente e afinados nessa mesma escala, como a sanfona, o piano e o violão”, afirma Tocha.

 

Multidisciplinaridade

Stelamaris Bertoli, orientadora da dissertação de mestrado, é professora do Departamento de Arquitetura e Construção e responsável pelo Laboratório de Conforto Ambiental e Física Aplicada (Lacaf). Segundo ela, a área de Acústica em que atua é bastante ampla, envolvendo várias áreas do conhecimento, como Engenharia civil, Arquitetura, Medicina e também a Música. “Pensando em uma dissertação com aplicações associadas à engenharia, surgiu a ideia do tubo de impedância, equipamento utilizado para medir as propriedades de absorção sonora em materiais. Já a ideia de aplicar esse sistema padrão de medição na música, veio de um contato com o professor Ricardo Goldemberg, do Instituto de Artes. O aluno foi extremamente habilidoso, construindo um sistema de baixo custo e com o que tínhamos em mãos”, elogia a docente. 

Stelamaris Bertoli atua principalmente no desempenho de edificações, mas também em estudos de propriedades acústicas de materiais e qualidade acústica de salas, a exemplo de espaços para performance de música. “Tenho orientandos que trabalham em igrejas, teatros e salas de aula. A técnica estudada pelo Rodolfo pode ser estendida para área de desenvolvimento de materiais acústicos, que é carente; e também para conhecer o funcionamento de alguns tipos de instrumentos musicais, por vezes, orientar a escolha dos espaços mais adequados para ouvi-los. No passado, por exemplo, havia salas específicas para execução de música barroca ou ainda salas de concerto específicas para música do período romântico – Wagner tinha a sua sala de concertos. Hoje, queremos um mesmo espaço para atender vários tipos de atividades (salas multiuso), o que é muito delicado do ponto de vista da acústica.”

 

‘Melodia Pifada’

A pesquisa de mestrado apresentada na FEC entrou no filme “Melodia Pifada”, em fase final de montagem, que documenta experiências com o pífano contadas por Rodolfo Thomazelli enquanto físico, Fernando Tocha enquanto músico e Sebastião Biano enquanto pifeiro e mestre da Banda de Pífanos de Caruaru. “Temos a visão da ciência, da música moderna e da tradição. O filme é uma parceria com o fotógrafo Daniel Pátaro, da Etc. Vídeo Estúdio, de Campinas, que além de registrar os depoimentos fez imagens da colheita do bambu, da construção do instrumento e do pífano em ação nos shows do Grupo de Pífanos Flautins Matuá”, adianta Fernando Tocha.

No filme destaca-se o depoimento de Sebastião Biano, que fala de um episódio da infância em que foi obrigado a mostrar “o toque de Lampião” para o próprio Virgulino, juntamente com o irmão também menino. “Ficamos molhados de medo”, conta o pifeiro. O toque, segundo Luís da Câmara Cascudo, era “É lamp, é Lampião”, música composta pelo cangaceiro, cantor, dançador e poeta, e considerada o segundo hino de guerra do bando. O primeiro hino era “Mulher Rendeira”, que Virgulino cantou durante um ataque à cidade potiguar de Mossoró.

 

Publicação

Dissertação: “Construção e validação de um espectrômetro de impedância”
Autor: Rodolfo Thomazelli
Orientadora: Stelamaris Rolla Bertoli
Unidade: Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC)