Edição nº 583

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 11 de novembro de 2013 a 24 de novembro de 2013 – ANO 2013 – Nº 583

Livro retrata formação da cultura balneária gaúcha

Prática dos banhos de mar terapêuticos teve início na segunda metade do século 19

“História do veraneio no Rio Grande do Sul” é um livro de Joana Carolina Schossler, doutoranda do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), que mostra a formação da cultura balneária no litoral norte gaúcho na primeira metade do século 20. Para a obra lançada em outubro pela Paco Editorial, a autora estudou os balneários de Cidreira, Tramandaí, Capão da Canoa e Torres, tecendo a história da vida junto ao mar em um território lembrado quase que exclusivamente pela imensidão de seu pampa. O foco nos banhos de mar terapêuticos, conhecidos naquele período como  talassoterapia, rendeu à pesquisa o prêmio Rubens Maciel de História da Medicina (2010), oferecido pela Associação Médica do Rio Grande do Sul.

“A visão paradisíaca de águas claras, quentes, coqueiros e céu azul é um ideal de litoral que a indústria turística passou a vender depois de descobrir as belezas das praias mediterrânicas. Porém, muito antes das águas claras e quentes se tonarem desejo social, eram as praias frias de Dieppe, Trouville, Ostende e Scheveningen que atraíam curistas e banhistas para a prática dos banhos terapêuticos”, conta Joana Schossler. “O litoral gaúcho muito se assemelha com algumas praias europeias e suas águas frias também tiveram finalidades terapêuticas a partir do final do século 19.”

Segundo a autora do livro, as águas oceânicas do Rio Grande do Sul possuem baixas temperaturas devido às correntes provenientes das Malvinas; e essas águas nunca serão transparentes, por causa da formação geológica, dos ventos fortes e das algas que influenciam na sua coloração. “Não é um litoral muito atrativo em termos turísticos, mas é o destino de muitos gaúchos, que todos os anos repetem a prática de passar um tempo junto ao mar. Existe até uma piadinha contando que Deus vinha desenhando o litoral brasileiro com todo o capricho, até a praia de Torres, onde interrompeu o trabalho para um descanso – foi sugestão do diabo, que aproveitou para surrupiar a caneta e traçar um retão no resto da costa.”

A doutoranda da Unicamp explica que os gaúchos começaram a prática dos banhos de mar na segunda metade do século 19, para a cura de diversas doenças, sobretudo as respiratórias, por recomendação de médicos europeus imigrantes ou brasileiros formados na Europa. “Geralmente, a família acompanhava o doente nas viagens, que podiam durar dias ou meses, e eram agenciadas em Porto Alegre pelos próprios empreendedores instalados no litoral. Naqueles primórdios, o transporte era feito em carroças de boi, pois não havia estradas ou mesmo caminhos formados, muito menos a constituição de balneário como conhecemos hoje.”

Ocorre que a demanda, conforme Joana Schossler, foi levando ao aprimoramento dos serviços, como de carretas que transportavam as pessoas até as praias, e também à construção de hotéis. “O primeiro hotel do litoral norte, em Tramandaí, veio a se chamar Hotel da Saúde, justamente pela prática dos banhos terapêuticos nessa praia. Os hoteleiros tiveram intensa participação na formação dos balneários e de seus melhoramentos, ajudando na construção de estradas e criando atrativos para os banhistas – a linha entre a terapia e o prazer de estar junto ao mar ainda era tênue.”

 

A cultura balneária 

A pesquisadora lembra que a partir da década de 1920 iniciou-se uma transformação (intensificada nos anos 30 e 40), com o surgimento de uma cultura balneária ligada à apreciação do mar. “Os gaúchos passaram a ir à praia também para se divertir. Já era oferecido o transporte combinado – parte de trem e parte de serviço a cavalo – e os empreendedores instalavam trilhos de madeira nos caminhos entre as dunas para que os carros não atolassem; encontrei até mesmo a notícia de um hidroavião da Varig acidentado.”

De acordo com Joana Schossler, os hotéis eram então responsáveis não apenas por assegurar a terapia, mas também a diversão, promovendo almoços, jantares, saraus e bailes em seus salões. “Houve uma mudança de comportamento à beira-mar. No princípio ia-se à praia somente antes do nascer ou no pôr do sol, por período breve, e muitas vezes sem imersão na água, apenas para respirar o ar salino; usavam-se roupas grossas e compridas para esconder o corpo e não bronzeá-lo. Com o tempo já se percebe uma evolução nas vestimentas: maiôs e biquínis para os banhos e trajes apropriados para o footing à beira-mar.” 

Uma mudança subsequente apontada pela pesquisadora, decorrente da urbanização do litoral pelos órgãos públicos, foi a substituição desta dinâmica hoteleira por uma dinâmica comunitária constituída pelos próprios veranistas. “Eles compraram residências no litoral e passaram a gerir o seu tempo e espaço, permanecendo o quanto desejassem na praia. Formaram-se núcleos comunitários de pessoas vindas tanto de Porto Alegre como do interior do Rio Grande do Sul, criando-se uma linguagem comum durante o período de veraneio.”

A doutoranda acrescenta que a conquista das férias trabalhistas pagas – em concomitância com as férias escolares nos meses de dezembro, janeiro e fevereiro – contribuiu para popularizar ainda mais as praias e dar sentido a uma expressão adotada provavelmente nessa época, a vilegiatura: temporada de descanso que as pessoas passam no campo ou em estações balneárias. “Assim como a vilegiatura marítima se firmou no imaginário burguês, ela também foi almejada por outros grupos sociais, que a adaptaram à sua cultura e aos seus recursos.”

Na avaliação de Joana Schossler, as praias gaúchas logo se tornaram espaços de distinção social, com a elitização de alguns balneários e a estigmatização de outros, conforme a origem social dos seus veranistas. “A elite frequentava a praia de Torres, por exemplo, que possuía atributos naturais semelhantes às de praias europeias e se caracterizava por ser a mais distante de Porto Alegre, o que dificultava o acesso popular. Os trabalhadores, por sua vez, passaram a contar com as colônias de férias construídas pelas empresas.”

 

Encanto anulado

Dentre as fontes utilizadas para a composição do livro, constam romances literários, relatórios de viajantes, anúncios e matérias de jornais e revistas, além de fotografias e cartões postais. “Cabe destacar que grande parte da documentação impressa e das imagens foi produzida pelos próprios veranistas de outrora, como fotografias e reminiscências publicadas em revistas ou jornais da capital. Fotorreportagens e cartões postais também permitiram acompanhar os primórdios dos banhos de mar, a moda balnear e a urbanização dos balneários, entre outros aspectos.”

Na opinião da pesquisadora, o urbanismo das décadas de 30 e 40 fez, também, com que se vislumbrasse o litoral em seus projetos utópicos, operando-se uma série de mudanças até oferecer aos veranistas o que pode ser considerado o suprassumo da condição moderna: viver com conforto. “Mas o conforto só foi possível por um processo de homogeneização, que tornou tudo, mesmo as vivendas e o cotidiano nas praias de mar, como algo familiar. O estranhamento que se tinha ao rumar para as praias, e do qual deriva em grande parte o sentimento de encantamento, foi sendo anulado pela modernização.” 

Agora no doutorado, Joana Schossler, orientada pela professora Maria Stella Martins Bresciani, está pesquisando justamente os balneários enquanto refúgios da modernidade, uma utopia marítima. “A poluição e o estresse da vida urbana acabam por fomentar o desejo de sair do ritmo frenético da cidade. No balneário é possível estar junto à natureza, num ritmo diferente, ainda que seja somente pelo curto período de veraneio. E permanece a ideia de que o verão acaba, mas pode-se voltar no próximo ano para experimentar essa vida melhor.”

A pesquisa da doutoranda está sendo ampliada para a América Latina, incluindo saberes sobre as políticas balneárias de países vizinhos como o Uruguai, buscando compreender a circulação de ideias sobre a prática da cultura balneária no Cone Sul. “No momento em que a iniciativa privada não pode mais dar conta da infraestrutura dos balneários, devido ao grande número de banhistas, cabe ao poder público assegurar os projetos de urbanização. E tanto os balneários como os banhistas vão sofrendo um processo de perda, com os redutos naturais se aproximando cada vez mais do que são os grandes centros urbanos.”

 

Serviço

Título: História do veraneio no Rio Grande do Sul
Autora: Joana Carolina Schossler
Editora: Paco Editorial
Páginas: 244
Preço: R$ 43,00