Edição nº 559

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 28 de abril de 2013 a 04 de maio de 2013 – ANO 2013 – Nº 559

Rumo ao Oeste

Socióloga investiga impactos migratórios
da interiorização de unidades prisionais

Nascida em Pacaembu (SP), a socióloga Flávia Rodrigues Prates Cescon, instigada a analisar a pirâmide etária da sua cidade para uma disciplina do curso de ciências sociais, percebeu grande discrepância entre a quantidade de homens e de mulheres ali residentes. “Pensando na razão de uma diferença tão substancial, atentei para a existência de duas unidades prisionais, ambas masculinas, e que esta população carcerária é considerada no censo demográfico como residente no município”, recorda.

“Migração e unidades prisionais: o cenário dos pequenos municípios do Oeste paulista” é o título da dissertação de mestrado apresentada por Flávia Cescon no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), com a orientação da professora Rosana Baeninger. O trabalho traz um histórico do processo de interiorização do sistema penitenciário do Estado de São Paulo – que passou a ocorrer desde o “massacre do Carandiru” – e analisa os fenômenos provocados por esta migração compulsória de detentos.

“A linha principal de pesquisa foi estudar o crescimento populacional de 11 regiões de governo do Oeste paulista como um todo, para em seguida focar as pequenas cidades que possuem unidades prisionais: são 34 nessas condições e que somam 52 presídios”, afirma a autora da pesquisa. “Procurei analisar os desdobramentos deste inchaço artificial do número de habitantes, como o surgimento de uma população flutuante de visitantes e a migração temporária de familiares. Na condição de socióloga, eu também busquei aportes teóricos para entender a relação entre os antigos moradores e os novos”.

Flávia Cescon conta que a repercussão mundial da morte de 111 presidiários na invasão da Casa de Detenção pela Polícia Militar, em 2 de outubro de 1992, levou à criação no ano seguinte da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), a primeira pasta para esta área no país. Em 1995, Mário Covas assumiu o governo anunciando a construção simultânea de 21 novas penitenciárias e três presídios semiabertos, a maioria no interior do Estado. E em 2011, segundo a SAP, já eram 149 unidades prisionais, havendo mais 13 em construção.

Embora a vinda de presídios nunca seja bem vista pela população, muitos foram os prefeitos que disponibilizaram terrenos para isso, em troca de uma fatia maior do Fundo de Participação dos Municípios. “Constitucionalmente, a União deve repassar verbas às prefeituras através do FPM, cujo percentual é determinado pelo número de habitantes estimado anualmente pelo Censo”, explica a pesquisadora. “Os presídios do Oeste paulista estão em municípios pequenos e, até o momento da pesquisa, notou-se considerável superlotação na maioria das unidades. Receber tamanha massa de detentos pode representar um acréscimo considerável de receita, ainda mais para cidades economicamente engessadas e que ainda sofrem com a emigração.”

Uma pesquisa do IBGE realizada no período de 1998 a 2000 revelou que o FPM é responsável por 57,3% da receita dos municípios com até 5 mil habitantes. “Há outras facetas benéficas da migração carcerária, como a geração de empregos. Ainda que os cargos em presídios sejam preenchidos através de concurso público, muitos moradores acabam conseguindo a vaga e conquistando a estabilidade e um salário superior ao oferecido pelo setor agrícola e de serviços”, observa a pesquisadora.

A socióloga levantou dados censitários de 2010 indicando que 40,4% dos municípios das regiões de governo analisadas tinham até 5 mil habitantes e 21,7%, de 5 a 10 mil; a população carcerária era de 60 mil detentos. “Captamos que praticamente todos os municípios com unidades prisionais apresentaram taxas positivas de crescimento populacional, quando vários deles mostravam taxas negativas. Hoje em dia, a Secretaria de Administração Penitenciária alega que não se trata mais de uma interiorização do sistema prisional, mas de uma regionalização por demanda de vagas.” Outro grande benefício apontado por Flávia Cescon é o aquecimento do comércio, graças ao “turismo de visita”. “São ônibus e ônibus de passageiros que precisam se hospedar, se alimentar e comprar mantimentos para os entes presos. Supermercados que fechavam no domingo agora ficam abertos, havendo aqueles que já oferecem um kit com os produtos mais adquiridos. Os serviços de táxi triplicaram e aos taxistas se somam pessoas que fazem um bico com veículos particulares.”

O impacto social do ‘turismo de visita’

O trabalho de Flávia Cescon é extenso para uma dissertação de mestrado e envolveu não apenas o aspecto demográfico, mas também sociológico do processo de interiorização do sistema prisional paulista. A autora analisa, sobretudo, a relação que os antigos moradores mantêm com a população de familiares de detentos que transformam as ruas nos finais de semana. “Para estudar o impacto causado por esse ‘turismo de visita’ na população local, busquei autores como Erwin Goffman, Norbert Elias e John Scotson, bem como Zygmunt Bauman para a temática do ‘estranho’.” A socióloga realizou pesquisa de campo em cinco pequenas cidades do Oeste paulista, colhendo depoimentos que demonstram o estigma que envolve a população flutuante e os migrantes temporários. “Quando uma pessoa é sentenciada por um crime e presa, a sua família também é carregada para dentro do cárcere. A imagem do detento e da prisão se estende para aqueles que não participam do delito: parentes e amigos próximos se tornam vítima de todos os medos, inseguranças, conceitos e pré-conceitos que a prisão exerce no imaginário social.”

Na dissertação são transcritas verbalizações demonstrando que os visitantes são facilmente identificáveis pela população local. “Final de semana é família de preso que está aqui. Então, toda mulher que está com criança é mulher de preso... sozinha, porque aqui a turma anda com o marido. Então você vê: mulher, andando pela cidade sozinha, com criança, é mulher de preso”, atesta uma moradora. “A gente vê aquele bando de mulher carregando o ‘jumbo’ e já sabe... Só elas usam isso aqui”, diz outra, a respeito da grande sacola plástica contendo alimentos, produtos de higiene pessoal e cigarros.

Da mesma forma, o estigma é facilmente percebido pelos familiares de detentos, principalmente quando alguns deles permanecem na cidade em dias úteis. “Eu só vinha de final de semana, mas teve uma vez que eu precisei ficar aqui a semana toda. (...) A cidade é diferente durante a semana, as janelas ficam abertas até tarde... Quando a gente chega, aqui em volta do hotel, tudo fica fechado”, observa uma visitante. “Que nem hoje [sábado], os mercados estão cheios de seguranças. Amanhã você vai lá, não tem um”, acrescenta a outra.

Flávia Cescon lembra que algumas famílias de detentos acabam residindo no município, o que depende diretamente da duração da pena. Daí, a transcrição de outro depoimento: “Tem tanta gente pra ajudar com cesta básica e a gente vai tirar de um povo nosso, que a gente conhece, pra dar pra elas [mulheres de detentos]. Fora os roubos e tudo o que aumentou... Várias mulheres de preso vão presas por causa de droga... A gente nem sabia o que era isso... Os jovens daqui não conheciam negócio de droga. Acabou todo o nosso sossego.”

De acordo com a autora da pesquisa, os detentos, propriamente, não convivem com a população e é esta invisibilidade física o que se espera com o encarceramento de um indivíduo por altos muros. “Minhas visitas a campo permitem afirmar que nos municípios com unidades prisionais do Oeste paulista, principalmente nos pequenos, a nova população de detentos é fortemente sentida como presente, sendo o constante fluxo de visitantes o elemento que a torna sensível.”

Flávia Cescon observa ainda que o impacto da população carcerária é muito mais tangível nos pequenos municípios que nos demais. “Os detentos, por exemplo, têm preferência de atendimento no serviço de saúde e o cidadão, que precisa esperar, se sente deixado de lado. Em Pracinha, que possui três mil habitantes (sendo a metade de detentos), não existe pronto-socorro. Todos precisam ir até a vizinha Lucélia, que acaba tendo o serviço superlotado, com o detalhe de que lá também foi construído um presídio.”

Publicação

Dissertação: “Migração e unidades prisionais: o cenário dos pequenos municípios do Oeste paulista” Autora: Flávia Cescon
Orientadora: Rosana Baeninger
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)