Edição nº 545

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 05 de novembro de 2012 a 11 de novembro de 2012 – ANO 2012 – Nº 545

O Nelson da TV


 

No ano em que se comemoram os cem anos de nascimento de Nelson Rodrigues (1912-1980), o programa Fantástico, da Rede Globo, volta a exibir a série A Vida Como Ela É, inspirada em obra de mesmo nome escrita ao longo da década de 1950 pelo jornalista, escritor e dramaturgo. A adaptação para TV de 40 contos de tão grande valor cultural publicados no jornal Última Hora, por encomenda do editor Samuel Wainer (1910-1980), na época dono do vespertino, chamou a atenção da midiáloga formada pela Unicamp Stefanie Alves, que decidiu dedicar sua dissertação de mestrado à análise da linguagem rodriguiana na produção televisiva. “Tive interesse em estudar a série pelo diferencial que representava na literatura brasileira e por trazer a literatura do Nelson, que é um autor bastante cultuado no Brasil, e investigar como esse texto mais curto é transformado em produto de televisão. Geralmente vemos romances transformados em minisséries e telenovelas”.

De acordo com Stefanie, quando começou a pesquisa, de fato ela viu que o material de Nelson Rodrigues é muito rico com relação ao uso da linguagem que faz. O tipo de discurso que constrói se torna material muito rico para o audiovisual, tanto para cinema quanto para televisão. A pesquisa, segundo ela, se fundamentou em descobrir de que maneira o universo de Nelson é construído por meio da linguagem audiovisual, dentro de uma análise na qual observou tipo de iluminação, música, aspectos formais da série e como foi inserida na televisão na década de 1990, que era um momento no qual a TV tentava se adequar a mudanças socioeconômicas do país, como a abertura do mercado.  

Um quadro dentro do programa Fantástico, exibido no final dos domingos da família brasileira, dirigido por Daniel Filho, com roteiro de Euclydes Marinho e um elenco escolhido a dedo, em 1996, precisaria de uma investigação sobre a TV brasileira no final da década de 1990. Naquele momento, a TV paga aumentava suas adesões entre as classes A e B, e as classes C e D passavam a frequentar mais a televisão, de acordo com análise de Stefanie e seu orientador, professor Gilberto Sobrinho. Para compreender o fenômeno, assim como o investimento da Rede Globo, eles recorreram a pesquisas em arquivos como o do Ibope do Estado de São Paulo. “Existia uma necessidade de a televisão contrabalançar essas duas audiências”, afirma Stefanie. “Percebemos que A Vida Como Ela É entra nesse papel estratégico de, com a temática provocativa e cotidiana do trabalho e da família, conquistar o público mais popular e, ao mesmo tempo, pelo tratamento diferenciado – com a filmagem em película, a estrutura de produção cinematográfica e um texto de um autor cultuado como Nelson – cativa os espectadores mais intelectuais, que vêm da classe A e B e estavam nessa transição de procurar uma qualidade artística na televisão a cabo”, reflete Stefanie.

A estreia da série no Fantástico na época coincidiu com a estreia do programa Sai de Baixo, que retoma na TV brasileira o modelo do sitcom, realizado em teatro. “Percebemos que, se há uma mudança nos perfis de público, há uma mudança também na programação. A ficção no Brasil é estratégica na programação. Há uma ficção seriada com qualidade artística e, por outro lado, o Sai de Baixo não deixa de ser uma inovação por trazer o sitcom. Falamos de produtores que olham estrategicamente a ficção que é um lugar privilegiado na grade de programação. No Brasil, tem lugar consagrado à telenovela, o grande produto nacional”, acrescenta Sobrinho. Ele destaca a característica da Rede Globo de apostar em novos formatos de ficção. Uma mostra disso, para Stefanie, foi a exibição de A Vida Como Ela É também como série independente, depois da temporada no Fantástico e o lançamento em dois DVDs com os 40 episódios exibidos no Fantástico. “E agora a volta no centenário de Nelson”, enfatiza Stefanie.

Os dados de audiência mostram a aceitação do público pela linguagem de cinema. Stefanie lembra que a televisão começou com película e, durante toda sua história, são encontradas produções – novelas e minisséries – com cenas em película, pois ela sempre foi um indicador de qualidade artística. “A película sempre teve papel diferenciado. Em A Vida Como Ela É,  Daniel Filho, quando propôs a série, sugeriu a película como estratégia para chamar a atenção do público que estava assistindo a um programa de variedades, mais solto, com grande troca de assuntos”, pontua Stefanie.

Como numa estrutura da produção de cinema, segundo a midiáloga, Daniel Filho reuniu todos os atores, dividiu cenas por locação, como se faz em cinema. “Isso, na década de 1990, talvez não fosse percebido com tanta diferenciação porque as qualidades dos televisores não abraçavam o que era a película. A principal diferenciação entre a película e o vídeo está na diferenciação de imagem e cor. Conseguir esse tipo de efeito com vídeo na série seria bem mais difícil. Isso chama a atenção porque não acontece tão frequentemente com outras produções”, pondera Stefanie.

De acordo com a pesquisadora, Daniel e Marinho preservaram o texto de Nelson Rodrigues em sua maioria e, a partir dele, construíram os elementos do quadro para o Fantástico. Stefanie ocupou-se de analisar minuciosamente, decupando os episódios, a construção do texto, dos personagens, figurinos e até mesmo posicionamento de câmera. Para ela, o estilo de escrita de Nelson favorece a produção de roteiro, principalmente pela estrutura dialogada, o que facilita a cadência de corte de plano. Até porque na TV é menos comum trabalhar com monólogos, segundo a pesquisadora. A utilização de diálogos curtos oferece dinâmica interessante, na opinião da autora, pois as conversas parecem informais, com suas gírias e expressões comuns mantidas na adaptação. Sobrinho explica que a teledramaturgia acontece na figura do personagem, pois é ele que conduz a trama e o texto dialogado é mais familiar com a linguagem televisiva. Além disso, a Vida como Ela É retrata o subúrbio carioca, a família, o adultério, paixões, desejos, segredos.

Uma observação interessante feita por Stefanie é a narração pelo olhar da câmera, em que o narrador silencioso consegue dar clareza ao texto nas entrelinhas, captando olhares e expressões dos personagens, que, neste caso, devem ser representados por atores altamente qualificados. Mas ela destaca também a importância da figura do narrador “voz over”, além do “narrador-câmera”. “Em A Vida Como Ela É, ele foi extremamente aproveitado e é figura importantíssima, pois por intermédio dele, são feitos os julgamentos, em que se entra num íntimo das personagens. Em algumas adaptações, o narrador é excluído, é um processo diferenciado, mas nesta série, ele dá o direcionamento de algumas situações para o espectador”, explica Stefanie.

O encontro da “voz over” com o narrador-câmera foi destaque da série por poder, por meio desses dois elementos do discurso audiovisual, conseguir extrapolar a interpretação de Nelson Rodrigues, de acordo com Stefanie. “É possível mergulhar no texto. O resultado foi muito bom porque, de fato, o espectador espera que a câmera mostre alguma coisa e ela realmente o satisfaz ao mostrar alguns pontos de vista diferenciados. Mostra para aguçar a curiosidade do telespectador mesmo”, acentua.

A Vida Como Ela É é a produção de Nelson Rodrigues menos analisada na academia, segundo a autora. Há uma infinidade de trabalhos sobre suas obras teatrais. Para fazer a leitura dos 40 contos que compõem a obra, ela recorreu às análises de Sábato Magaldi, principalmente. “Buscamos os aspectos destacados por Magaldi e os identificamos no material que assistimos da série. Encontramos, de fato, o diálogo curto, a família, o adultério, entre outros elementos já citados”.

De acordo com Stefanie, a televisão geralmente é abordada na academia pela vertente da sociologia, o que é muito importante, em sua opinião, mas os estudos sobre a literatura e a televisão são importantes para conhecer profundamente a linguagem televisiva, já que a literatura entra em quadros de programas de variedades como o Fantástico.

Stefanie enfatiza que o estudo é essencial para profissionais e graduandos em midialogia porque, de tempos em tempos, a TV lança programa novo, mistura os gêneros e é importante saber pensar a produção audiovisual de maneira geral, porque hoje vê que produtos migram do cinema para a internet, para a televisão, formam rede de mídias e na graduação. “Para produzir algo de qualidade, precisa saber pensar esse formato. A análise do que já existe é importante para construir nova linguagem e pensar no que será daqui para frente. Cada vez mais tende a aumentar a mistura de linguagens audiovisuais. A ideia de estudar formatos específicos da televisão aumenta a bagagem para saber pensar e fazer produto de qualidade que não sejam restritos a canais pagos, mas que possam contribuir para a sociedade como um todo”, reforça Stefanie.

 

Publicação

Dissertação: “A vida como ela é: Nelson Rodrigues no palimpsesto televisivo”
Autoria: Stefanie Alves
Orientação: Gilberto Alexandre Sobrinho
Unidade: Instituto de Artes (IA)

Comentários

Comentário: 

Parabéns Stefanie pela forma clara e concisa em que você expõe obra e adaptação de Nelson Rodrigues. Sua análise nos mostra o quanto podemos aprender com a aplicação prática da mídia.

izhesse@ig.com.br