Edição nº 537

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 27 de agosto de 2012 a 02 de setembro de 2012 – ANO 2012 – Nº 537

Tecendo a colcha
no chão da praça

Geógrafa investiga, em dissertação,
relação entre educadores e meninos de rua

"Um desejo muito grande de mudar alguma coisa num Brasil tão desigual” leva profissionais de diferentes áreas a encontrarem sua missão como educadores sociais de rua, na opinião da geógrafa Marina Moreto. Autora da dissertação “A educação e a arte nos entrelugares da rua – uma história de educadores e meninos de rua”, orientada pelo professor da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp Rogério Adolfo de Moura, Marina lembra que a situação de rua é muito presente nas metrópoles brasileiras. Educadora social de rua por vocação, ela explica que o que muito se vê é somente uma tentativa de retirada dos meninos da rua, sem um trabalho que seja socioeducativo. “Acredito que essa motivação por fazer algo diferente por uma população tão à margem é algo instigante nas pessoas”.

“Arrisco dizer ainda que nem somente os chãos das praças podem ensinar esse trabalho. Ser educador de menino de rua, assim como ser professor, psicólogo, médico, ou seja, trabalhar com gente que sofre, pressupõe haver uma disposição emocional individual, uma vontade própria, um impulso, um desejo que não tem a ver com a formação acadêmica, mas com a empatia com o outro, por acreditar que a relação com o outro pode ser vetor de uma mudança individual e social”, faz questão de reler com ênfase a educadora e ex-coordenadora da Casa Guadalupana. A dissertação é redigida assim mesmo, em primeira pessoa, alinhavando sua experiência como educadora social à reflexão das metodologias utilizadas pelo educador de rua, bem como a relação entre este profissional e os meninos.

Marina foi atraída pela proposta de entender como as artes são usadas com meninos em situação de rua. “Sempre gostei de arte-educação. Descobri o mundo no Laboratório de Estudos sobre Arte, Corpo e Educação (Laborarte) da Faculdade de Educação, ao mesmo tempo em que me especializei em psicanálise e arteterapia para fundamentação teórica de minha pesquisa”, explica Marina. A dissertação, de acordo com ela, mistura educação, arte, situação de rua e políticas sociais.

A ONG Mano a Mano, grupo de extensão da Unicamp, e a Casa Guadalupana, setor da ONG Instituição Padre Haroldo, que era cofinanciada pela Prefeitura de Campinas, são lembradas para destacar algumas metodologias desenvolvidas para o trabalho com os jovens. Entre dez projetos desenvolvidos com os meninos, Marina destaca o Zine Meninos Românticos, revista mensal feita pelos próprios meninos, com poesia, texto, fotos, montada por um educador em parceria com o grupo. Segundo Marina, esta revista tinha tiragem de mil cópias por mês, distribuídas entre meninos, serviços públicos e alguns pontos de cultura da cidade.

Além do Zine, os meninos participavam de projetos como “Maracatu”, no qual desenvolviam atividades desde a construção de instrumentos até aulas para executá-los. Neste projeto, eles formaram um bloco de carnaval puxado por meninos de rua. Marina também faz questão de citar o projeto de alfabetização, desenvolvido não simplesmente para letramento, mas também para dar segurança para que eles pudessem ir para a escola. Dentro dessas atividades, os meninos eram levados a passeios mensais em lugares como Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), acampamentos do Movimento Sem-Terra (MST). Na dissertação, as descrições das atividades são fundamentadas pela pedagogia social de Paulo Freire.

Na abordagem, não poderia faltar a colcha, uma metodologia desenvolvida pela Mano a Mano e adotada pela Casa Guadalupana, em que os educadores iam para as ruas com uma caixa, uma colcha de cama de casal e esperavam os meninos se aproximarem para brincar sobre aquele pedaço de pano, criando um universo, regado a conversas, brincadeiras, choros, contação e relato de histórias e até encaminhamentos, como por exemplo, para atendimento médico. “Considero a colcha uma intervenção artística urbana necessária, dando visibilidade a um indivíduo criativo, cheio de energia, que aprecia o universo estético e cultural para além das veredas das drogas, do crime e do sofrimento”, reflete. Marina trata a colcha como uma intervenção urbana, onde o que era construído ficava pregado em alguma parede ou pendurado como um móbile, ou em uma árvore de praça. “Quando iam para a rua e não encontravam os meninos, deixavam recado para eles. Os motoristas que por ali passavam observavam as cenas. Eles mexiam com aquele espaço”, ressalta.

A aproximação entre educadores e meninos de rua era permeada por essas atividades artísticas e lúdicas, dando suporte emocional e educativo para os participantes almejarem outras coisas em sua vida. “Quem mais quer tirá-los da rua servindo como suporte para eles se enxergarem como indivíduos, sujeitos autônomos para sair do estigma de que meninos em situação de rua são iguais a droga, furtos, malandro, trombadinha?”, indaga Marina. Ela atenta para o fato de que o intuito do trabalho não era transformar meninos e educadores em artistas profissionais, mas usar o que a arte desperta de emoção, sentimento, criatividade para sonhar com outra condição. Marina lembra que em Campinas os educadores tinham o MIS como parceiro, garantindo espaço para expor os trabalhos produzidos pelos adolescentes, dando visibilidade aos trabalhos.

Vínculos

Marina revela que todos os meninos participantes do projeto tinham família, mas o vínculo familiar era fragilizado por situações de violência, condições precárias, falta de dinheiro, de moradia fixa, grande número de filhos. “Em nenhum momento, tomávamos a família como culpada pelo fato de o menino estar na rua, mas aconteciam várias violações de direito que levavam os meninos às ruas. Então, tentávamos restabelecer o vínculo”, afirma Marina.

O trabalho como educador social torna-se ainda mais gratificante quando alguns adolescentes conseguem mudar sua história de vida a partir das atividades oferecidas, como é o caso de um jovem poeta que, fascinado pela escrita, compôs um livreto com mais de 60 poemas e continuou a escrever poesia. Tempo depois, um de seus poemas foi encontrado em uma revista eletrônica.

De acordo com Marina, os educadores assumem um grande compromisso com esse trabalho, sem medir o grande esforço exigido para isso, além da necessidade de muito estudo. “Uma coisa muito interessante que tirei como resultado das entrevistas dos educadores foi a importância das diversidades das formações. A maioria tinha nível superior, entre eles havia filósofo, designer, cientista social, física, educadora física, artista plástico, pedagogo. E cada um traz contribuição no trabalho com eles, todos puxando para o viés artístico”, revela a pesquisadora. Muitos que não tinham essa facilidade encontravam sua importância na conversa com os meninos, em dupla com outro educador, para trabalhar outras questões.

A pesquisa de mestrado torna mais clara a melhor forma de utilizar a relação educação-arte com meninos de rua na prática, a partir da entrevista com dez educadores. Ela reforça que muito já se publicou em termos de abordagem teórica da arte, da educação, da importância da pedagogia. “Mas eu quis mostrar como isso era feito”, diz Marina. Em Campinas, segundo a pesquisadora, existe uma Associação de Educadores Sociais, e, como a profissão não é regulamentada, a associação é um espaço importante para lutarem por seus direitos, porém a situação é delicada, segundo Marina, já que muitos empregadores atribuem atividades múltiplas aos educadores sociais. Cada instituição, segundo a pesquisadora, decide o que vai fazer.

Poder mostrar como essas relações acontecem a partir de experiência prática é uma questão de honra para quem tem o desejo muito grande de mudar alguma coisa num Brasil tão desigual. “Considero ainda que a colcha e a arte não salvarão nenhum menino de rua de sua situação social e econômica, mas essas ferramentas de trabalho lançam reflexão suficiente para que pensem sobre sua vida e possam fazer escolhas”, conclui.

 

Publicação

Dissertação: “A educação e a arte nos entrelugares da rua – uma história de educadores e meninos de rua”
Autora: Marina Moreto
Orientador: Rogério Adolfo de Moura
Unidade: Faculdade de Educação (FE)

Comentários

Comentário: 

A tese A educação e a arte nos entrelugares da rua – uma história de educadores e meninos de rua” me leva a refletir sobre o trabalho social , as escolhas e limites de um trabalhador social. Considero de extrema relevância o tema tratado e a forma escolhida pelo autor. O texto é claro e inspirador..
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mcamorosolima@gmail.com

Comentário: 

Esse belo trabalho da Marina merece ser mostrado em outros veículos de comunicação, afinal a sociedade carece de exemplos de trabalhos sociais, principalmente como forma de motivação e sensibilização a respeito de grandes problemas populares, como é o caso.
Parabéns pela iniciativa fortalecedora.

silviobocao1@yahoo.com.br

Comentário: 

“Estado que não protege mata!” tema do EURECA 2011
Para pensar, parcialmente, sobre a metodologia de trabalho o texto acima é interessante, porém inquietei-me com esse este escrito, pois enquanto fui educadora social de rua da “falecida” Casa Guadalupana tive inúmeros aprendizados que não percebi nesse breve resumo da tese: a arte-educação como meio para vinculação/intervenção e não como fim; a Educação Social e a formação política como norte teórico e ideológico do trabalho e não a vocação para a permanência neste cargo; e o trabalho da educação social de rua para além do menino de rua, ou seja, fazia-se educação social com a população, com os servidores da segurança pública, com os gestores públicos, com diversos setores da sociedade, pois se travava diálogos explicitando a desigualdade social do estado capitalista que gera situações de extrema pobreza e violência, dessa forma se pretendia romper com a visão dicotômica dos meninos de rua que hora são vistos como ladrões, hora como coitados.
O que mais me estranha é o Estado e o contexto histórico-político não serem citados. Pois, penso ser difícil compreender a educação social de rua e o menino de rua sem fazer referência às políticas públicas envolvidas, que só almejam números e não transformações reais, as ONGs que se tornaram braço direito do estado neoliberal e respondem passivamente às demandas deste, enfim, a esse Estado que não protege.
Posso incorrer a erros, uma vez que não li toda a tese, contudo quase dois anos depois do fechamento da Casa Guadalupana eu não poderia me calar, sei que talvez o objetivo da tese não fosse esse, mas como diria Bertolt Brecht: “Que tempos são esses, quando falar sobre flores é quase um crime. Pois significa silenciar sobre tanta injustiça?”

mcraml@yahoo.com.br

Comentário: 

Marian,

Fico muito feliz de ver seu maravilhoso trabalho. Parabens!

zorayona@gmail.com

Comentário: 

Parabéns Marina. A sua sensibilidade, com certeza, contribuiu tornando esse trabalho especial como você! Jane

janevalente@gmail.com

Comentário: 

Olá a todos, agradeço os comentários.
A quem interessar saber mais sobre a pesquisa desenvolvida e o contexto socioespacial e político da situação de rua e do município de Campinas, podem acessar a dissertação na íntegra pelo site: https://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000832330

Boa leitura!

moretomarina@gmail.com

Comentário: 

Agradeço a todos pelos comentários!
Quem tiver interesse em conhecer mais a pesquisa desenvolvida e o contexto socioespacial e político da situação de rua e de Campinas pode baixar a dissertação na íntegra pelo site: https://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000832330

Boa leitura!

moretomarina@gmail.com

Comentário: 

Tenho orgulho de ter sido aluno da Marina!!

Comentário: 

Parabéns Marina! Seu trabalho é lindo e me emocionou. A comunidade acadêmica precisa de mais cientistas com esse tipo de olhar humano... inclisive entre as humanidades.
Me sinto orgulhosa de saber que já compartilhei sua presença na Geografia um dia, apesar do pouco contato que tivemos.

josimaramdias@gmail.com

Comentário: 

Olá Marina, parabéns pelo seu ótimo trabalho! Sua experiência e reflexão sobre a pedagogia social nas ruas nos inspira a qualificar os serviços da Assistência Social voltados à população em situação de rua. Não apenas isso: nos motiva a trabalhar de forma intersetorial e com formação continuada para os nossos profissionais. Contamos com a parceria de sempre para alcançar essa meta!
Um abraço,
Mariana

mariana.machado@mds.gov.br

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