Edição nº 535

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 13 de agosto de 2012 a 19 de agosto de 2012 – ANO 2012 – Nº 535

No ateliê do
inconsciente

Livro detalha atuação de Almir Mavignier no
Centro Psiquiátrico Nacional de Engenho de Dentro

 

Periferia do Rio de Janeiro, ano de 1946. Um jovem precisava de um emprego de meio período para dar tempo de trabalhar como artista plástico. Foi contratado como artífice diarista para “acalmar doente”, mas não tinha físico para isso. Certo dia, ele viu uma psiquiatra comandando uma festinha do grupo de seção terapêutica. O jovem dirigiu-se a ela e propôs abrir um ateliê de pintura para os internos do hospital.

O nome desse jovem: Almir Mavignier. Filho de mãe maranhense e pai paraibano, Mavignier era o caçula de cinco irmãos. Fez desenho vivo e estudou com professores europeus no Brasil. No afã de dar vazão à sua arte, propôs à psiquiatra Nise da Silveira que se montasse um ateliê de pintura no Centro Psiquiátrico Nacional de Engenho de Dentro, localizado na periferia do Rio de Janeiro.

A psiquiatra gostou da ideia e disse que só não tinha aberto ainda um ateliê por falta de alguém habilitado para tanto – ou de um funcionário que ficasse responsável. No período de 1946 a 1951, os internos de Engenho de Dentro participavam de atividades de arte no ateliê coletivo, orientados por Mavignier. Nos seis anos em que ficou no local, foram produzidos centenas de desenhos, pinturas e modelagens que vieram a compor a coleção do Museu de Imagens do Inconsciente (MII). Em 1951, Mavignier mudou-se para a Europa, onde vive até hoje.

“A história que prevaleceu dos primórdios do ateliê do Centro Psiquiátrico Nacional de Engenho de Dentro foi o relato da psiquiatra Nise da Silveira. Entretanto, todas as histórias merecem ser conhecidas”, explica a professora da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp Lucia Reily, uma das organizadoras do livro Marcas e memórias – Almir Mavignier e o ateliê de pintura de Engenho de Dentro, recém-publicado pela editora Komedi.

O livro é resultado do desdobramento da pesquisa “A psiquiatra e o artista: Nise da Silveira e Almir Mavignier encontram as imagens do inconsciente” realizada em 2006 por José Otávio Pompeu e Silva, professor do curso de terapia ocupacional da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na época aluno de pós-graduação do Instituto de Artes (IA) da Unicamp.

“As professoras da Unicamp Ligia Eluf e Ana Angélica Medeiros Albano perceberam que o material era digno de uma maior investigação. Apresentamos uma proposta ao edital Petrobras Cultural de 2007. A professora Lucia Reily acreditou na ideia e assumiu a escrita e coordenação do projeto, que deu origem ao livro”, explica Pompeu e Silva.

A elaboração do livro envolveu um grande número de pessoas nos processos de pesquisa histórica e documental; coleta, transcrição e análise de entrevistas; procura por imagens; seleção, preparação, redação, revisão do manuscrito e tradução – a edição é bilíngue (português-inglês).

As entrevistas, por exemplo, foram feitas por cartas, e-mails e ligações telefônicas. Uma aluna que ia para a Alemanha, em 2006, fez uma entrevista de seis horas com Mavignier, que recebeu antecipadamente as questões. Em 2008, durante a abertura de uma exposição do artista no Museu de Arte Contemporânea em Niterói, RJ, Pompeu e Silva teve uma conversa informal com Mavignier, durante horas.

“Ainda mantenho contato com Mavignier, que vive em Hamburgo e está com 87 anos, recuperando-se de problemas de saúde”, diz Pompeu e Silva.

Mais de 120 fotos coloridas e em preto e branco compõem o livro. Cerca de 20 pesquisadores procuram as imagens em acervos ligados ao tema no eixo Rio-São Paulo e fora do país. Algumas das fotografias de Almir Mavignier foram feitas pelo filho dele, Delmar, na Alemanha. As obras do MII foram procuradas uma a uma, para descobrir as que eram do período em que Mavignier foi monitor do ateliê de pintura de Engenho de Dentro.

O livro é dividido em cinco capítulos. Além de Lucia, José Otávio e Ana Angélica, professora do Laboratório de Estudos sobre Arte, Corpo e Educação (Laboarte) da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, escrevem também: Maria Heloisa Corrêa de Toledo Ferraz, professora da Escola de Comunicações e Artes da USP; Raquel Amin, professora do curso de artes visuais da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), e Rosa Cristina Maria de Carvalho, doutorando em história da arte no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. O prefácio é do psicanalista João Augusto Frayze-Pereira, professor aposentado do Instituto de Psicologia da USP.

O material coletado para o livro deu origem também a uma coleção de DVDs, destinada a centros de pesquisas e museus. Um dos DVDs traz a descrição de todas as obras que ilustram o livro para pessoas com baixa visão ou cegueira.

“De 1946 a 1961, Nise da Silveria guardou as produções artísticas e artigos de jornais sobre as exposições. Tudo foi digitalizado pelo grupo de pesquisa. Esta é uma das grandes contribuições do projeto, que teve apoio do Ministério da Cultural”, explica Lucia.

Arte e psicanálise

Durante todo o tempo em que Mavignier trabalhou com Nise da Silveria, ele personificou a figura de guardião, um descobridor da potencialidade criativa de cada um dos pacientes que o ateliê de pintura de Engenho de Dentro acolheu. Ele era um facilitador da criatividade que deixava surgir e respeitava quaisquer que fossem as suas formas de manifestação artística. Assim, pode se dizer que Mavignier realizava, de maneira bastante incomum, certa articulação entre arte e psicanálise.

Na busca inicial por internos que poderiam usufruir de um espaço de expressão artística, Mavignier utilizou-se de critérios subjetivos. Contanto com sua intuição, o acaso, os dados de atendentes e enfermeiros sobre quem tinha interesse em desenhar, descobriu os pintores do Engenho de Dentro.

Ele iniciou uma verdadeira arqueologia humana, pesquisando pacientes depositados em alas, enfermarias e setores do hospital que formavam um conglomerado psiquiátrico com mais de mil internos na época.

“Tinha um interno aí que enchia, embaixo da cama dele, uma caixa cheia de papel higiênico com coisas estranhas. Então eu vi as caixas com desenhos fabulosos... esse era o Carlos Pertuis. Tinha a Adelina, que fazia bonecas. Diziam que era agressiva. Mas ela precisa de gentileza. Vim buscá-la de chapéu, sob chuva, e ela ria muito. No pátio, foi uma pérola. Tinha um charme, uma beleza interior muito grande”, relata Mavignier.

No ateliê, os materiais eram elementares: água para guache, aquarelas e terebintina para óleos. Mavignier explicava como misturar as tintas e lavar os pincéis. As tintas e telas eram compradas.

Emygdio é outro paciente descoberto pelo monitor de encadernação de forma casual por causa de sua mirada “de canto de olho”. “A interpretação de ‘canto de olho’ é uma ciência apurada”, dizia Nise da Silveira. Para Ferreira Gullar, Emygdio talvez seja o único gênio da pintura brasileira.

“Para Emygdio, eu precisava fazer o possível para comprar telas cada vez maiores e tintas melhores. Ele era um Van Gogh, um Matisse”, relembra Mavignier.

A sensibilidade terapêutica de Nise da Silveira complementava a sensibilidade artística de Almir Mavignier. Nise orientava Almir a não interferir nos trabalhos dos pintores do Engenho de Dentro. Muitas vezes, ele levava os pacientes para os jardins entre os diversos hospitais que formavam o Centro Psiquiátrico Nacional para que pintassem ao ar livre. Diversas vezes conseguiu transporte para que os internos fossem pintar em pontos turísticos da cidade do Rio de Janeiro, como a Capela do Mayrink e a Floresta da Tijuca.

O ateliê foi uma verdadeira oficina coletiva, cujos integrantes passaram longos períodos e até décadas a produzir e reinventar sua arte. Carlos Pertuis produziu mais de 21.500 obras; Adelina, aproximadamente 17.500.

À medida que o trabalho se consolidou, chamou a atenção de críticos de arte, artistas plásticos e curadores de museus, como Sérgio Milliet, Quirino da Silva, Flávio de Aquino e Mário Pedrosa.

Em 1949, ocorreu uma exposição dos “9 Artistas de Engenho de Dentro” no Museu de Arte Moderna de São Paulo. No mesmo ano, no Rio de Janeiro, as obras foram expostas na Câmara Municipal. A exposição causou impacto na elite cultural de São Paulo. A apreciação das obras gerou comentários que ligavam as produções dos internos de Engenho de Dentro a grandes nomes da arte erudita.

De acordo com o livro, é interessante notar que em muitas reportagens o papel de Almir Mavignier ficou bastante apagado nas primeiras exposições. Ele ficou nos bastidores. As falas remetem mais a Nise da Silveira. Foi preciso que ele estivesse circulando com maior evidência nos circuitos das artes para que seu nome aparecesse nos catálogos e os autores dos artigos também o enxergassem.

A presença de Almir Mavignier é lembrada no jornal O Estado de São Paulo: “um jovem pintor do Rio, Almir Mavignier, teve a boa ideia de trazer a São Paulo, para serem estudados pelos nossos críticos de arte, os trabalhos plásticos dos artistas de Engenho de Dentro, em cujos serviços ele colabora, na secção de pintura dos alienados”.

A imagem de uma idosa frágil numa cadeira de rodas com os dedos em riste apontados para cima entrou no imaginário de muitos que passaram a divulgar que Nise da Silveria foi a única responsável pelo trabalho desenvolvido no Engenho de Dentro.  O ateliê teve outros monitores e artistas, além de Mavignier.

Segundo Pompeu e Silva, Mavignier tem um papel central no desenvolvimento das atividades de artes visuais com pessoas com distúrbios mentais. Foi ele que encontrou artistas como Emygdio de Barros, Raphael Domingues e Adelina Gomes, entre outros, em meio a mais de quatro mil internos dos vários hospitais psiquiáticos que existiam no Engenho de Dentro no Rio de Janeiro na década de 1940.  Além disso, ele foi um verdadeiro professor que encontrou o meio para cada artista expressar seu talento.

Uma frase de Almir Mavignier faz pensar em tudo que aconteceu naquele subúrbio do Rio de Janeiro: “Eu descobri muitos artistas, e quanto aos artistas que eu encobri e nunca foram descobertos?”.

O livro conta a versão do Mavignier artista, monitor, professor de artes que ficou mais de 60 anos longe do Brasil. Os dados levantados na pesquisa apontam que nunca houve nenhum ressentimento entre Nise da Silveira e Almir Mavignier e sempre existiu muito respeito e amizade. O próprio Mavignier conta isso: “Nossas relações eram as melhores possíveis, porque ela me ensinava, me instruía, me dizia como trabalhar com o pessoal, de não influenciar, de não mexer em coisa alguma, apenas dar uma orientação técnica. Então, começamos a trabalhar”, revela.

 

Comentários

Comentário: 

Muito bom, mesmo. Sou fã desse trabalho de vocês, transversalizando arte, cura e memória. Grande abraço

ajs@gmail.com

Comentário: 

Parabéns a toda a equipe pela dedicação e obstinação nesta escavação arqueológica no Mundo das Imagens do Inconsciente. Abraços.

gloria@mii.org.br

Comentário: 

Os inumeráveis estados do ser, como dizia Nise da Silveira, documentados em Arte. Lindo trabalho!

carinabentlin@gmail.com

Comentário: 

QUERO DEIXAR AQUI MEUS CUMPRIMENTOS PARA LUCIA REILY E EQUIPE PELO MARAVILHOSO TRABALHO REALIZADO .ESTA OBRA CONSTITUI UMA DAS MELHORES CONTRIBUIÇÕES RECENTES PARA A APROFUNDAMENTO DAS QUESTÕES A RESPEITO DE ARTE E SOFRIMENTO PSÍQUICO.PARABÉNS!!!

snrezende@yahoo.com.br