Edição nº 532

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 02 de julho de 2012 a 29 de julho de 2012 – ANO 2012 – Nº 532

Pedro Hiller

Do sublime
ao grotesco

Obras de cinco artistas do acervo do colecionador
vão compor exposição na Galeria de Arte da Unicamp

Pedras e insetos na infância, gravuras japonesas no tempo de estudante, quase toda a produção de Marcello Grassmann e de outros artistas contemporâneos enquanto empresário imbuído do espírito de mecenas, contêineres e contêineres de peças embarcadas da China na fase especialmente compulsiva das décadas de 1990 e 2000. Pedro Hiller, colecionador de arte de São Paulo, está cedendo dezenas de obras para a exposição O Colecionador, que vai de 3 a 31 de julho na Galeria de Arte da Unicamp. São gravuras e desenhos que ele adquiriu de cinco artistas: Marcello Grassmann, George Gutlich, Ana Elisa Baptista, Paulo Sayeg e Vera Goulart.

Lygia Eluf, professora do Instituto de Artes, tinha reunido uma brigada de vinte alunos voluntários para preparar uma mostra de Marcello Grassmann que, entretanto, devido à saúde fragilizada, acabou desistindo. “Imediatamente, resolvi mudar o foco da exposição: ao invés do artista, o personagem seria o colecionador, Pedro Hiller. A ideia é trazer à tona uma figura que poucos conhecem, mas que exerce o importante papel de colecionar e preservar um acervo de valor imensurável, além de manter uma relação afetiva muito grande com tudo o que compra.”

Filho único de pais alemães, Hiller herdou uma fábrica de equipamentos hospitalares que administrou com competência. Antes, viveu em Londres fazendo matemática na Universidade de Oxford. Hoje mora na área central de São Paulo, em um apartamento amplo como são os antigos, mas longe de comportar a sua coleção completa – quase todo o acervo em papel e muitas peças encaixotadas, ele guarda em outros espaços, enquanto não concretiza o projeto de construção de um loft, o que ainda vai demorar.    

“Sempre gostei de objetos orientais. Enquanto as crianças da minha idade assistiam aos filmes de cowboy, eu via os de samurai; morava perto do Niterói e do Joia [cinemas do bairro da Liberdade]. Como estudante, se sobrava algum dinheiro, comprava gravuras japonesas”, conta o colecionador, como forma de justificar as mais de vinte viagens que fez à China. “Eram três ou quatro viagens por ano. Colecionei muitos móveis, peças entalhadas, objetos antigos; porcelanas, não. Trazia em contêineres.”

As viagens praticamente cessaram depois da Olimpíada de Pequim (2008), quando a retirada do material do país e o transporte se tornaram difíceis demais. “Há muita burocracia no Brasil e não sabia se a burocracia chinesa ia fornecer os papéis exigidos aqui. Ficou estressante e resolvi desistir”, lamenta Hiller, que chegou a abrir uma galeria na rua Augusta, onde tentou vender peças chinesas. “Não fui bem sucedido. Para ser bom galerista é preciso um conjunto de talentos que eu não possuía. Percebi que não conseguiria repor os móveis vendidos com outros do mesmo nível. Vendia apenas para pessoas realmente interessadas, e não porque a peça combinaria com tal tapete ou cortina”.

Leilões


Pedro Hiller é capaz de varar a noite conectado a várias casas de leilão do Brasil e do exterior, dando lances simultâneos. Certa feita, Lygia Eluf quis saber o que regrava este impulso e ele disse que “atua numa escala que vai do grotesco ao sublime”. Perguntado sobre algo que considera sublime, respondeu de pronto: “Marcello Grassmann. É o que mais se aproxima da Capela Sistina, de Michelangelo”. Do lado grotesco, na opinião da professora da Unicamp, estão “objetos kitsch e pinturas esquisitas”. “Pedro não é um especialista em arte, mas observador e inteligente que é, foi aprendendo com tudo o que comprou nesses anos”, ela pondera.

Sem qualquer preocupação em ser exato, Pedro Hiller calcula que já adquiriu cerca de três mil peças, garimpadas conforme um interesse eclético que vai de grandes figuras do Renascimento a histórias em quadrinhos . “Meu principal critério é estético: o que gosto e o que não gosto, e também o que cabe ou não no bolso. Um critério secundário é o pitoresco. Outro detalhe é que costumo comprar um conjunto de peças, ao invés de apenas uma. O Masp possui no máximo duas ou três obras do mesmo pintor, procurando formar uma coleção didática da arte europeia de 1300 a 2000. Eu não faria isso, teria ido atrás de várias obras de determinados pintores.”

Hiller confessa que vive uma “fase maníaca”, tendo acabado de adquirir cerca de dezoito obras de Hubert Robert num leilão em Paris. “Não sei se fiz besteira – só dava para ver duas peças – nem quando chegam. Tive que pedir a um amigo de lá que pagasse. Na Europa é tudo complicado, eles estão mergulhados na crise, mas não aceitam cartão de crédito, exigem remessa bancária. Também comprei uma série de insetos pintados, muito bonita. São gravuras em metal do início do século 19, que já tinha visto numa livraria na Europa. Mas como não sabia se valia o preço, comprei somente agora, de um livreiro em quem confio.”

Comprar algo desconhecido não atemoriza o colecionador, desde que o agrade. “Todos têm seu momento de dúvida e, dependendo do preço, posso esperar um dia, uma semana, voltar outras vezes. No caso do livro de insetos, eram alguns milhares de euros. Outras vezes, depois de pagar relativamente caro por uma peça, tenho uma espécie de ressaca e me pergunto por que comprei aquilo. Mas há muito mais peças que me arrependi de não comprar do que comprei”, assegura, apontando para uma escultura ao lado. “Sabia que estava pagando caro demais por essa santa, mas a coloquei ali, esqueci o que paguei e ela já faz parte da paisagem. É uma santa legal, não me arrependo dela.”

Igrejas renascentistas

Pedro Hiller não teria como comprar igrejas renascentistas, obviamente. No entanto, descobriu e se tornou amigo de um artesão chinês, Yeguoquian, que conseguiu satisfazer mais esta obsessão construindo imensas e fiéis maquetes de templos italianos (ora desmontadas e guardadas). Na sala do seu apartamento, o colecionador mantém uma réplica bem menor. “Esta maquete, o artista fez meio que de brinde, parece casinha de boneca de homem velho. É o Templo Malatesteano de Remini, espécie de mausoléu encomendado pela família dos Malatesta, que vivia sendo excomungada e tomou esta providência. A igreja não é bem assim porque Alberti, um dos grandes pensadores da arquitetura do Renascimento, morreu antes de terminá-la.”

 

Mecenato e

generosidade

Quando concedeu esta entrevista em São Paulo, Pedro Hiller ainda iria selecionar cerca de dez obras de cada um dos cinco artistas que elegeu para exposição na Galeria de Artes da Unicamp. Além dessas dezenas de obras, o público terá a oportunidade de ver peças de mobiliário chinesas (mesas, portas, cortinas) que o colecionador está emprestando aos organizadores para a caracterização do ambiente. “A maioria dos artistas que coleciono é também de pessoas com quem mantenho bom relacionamento pessoal. Tenho obras de um ou outro autor antigo, mas em geral busco os contemporâneos, que estão em atividade”, explica.

A professora Lygia Eluf confidencia que Hiller, mais que amigo, é o grande responsável pela sobrevivência dos artistas escolhidos, comprando deles quase toda a produção, numa relação que se aproxima do mecenato. “Os pais do Pedro e do Marcello Grassmann se conheceram na Biblioteca Mario de Andrade, ponto de encontro importante de intelectuais e artistas. Certo dia, Pedro procurou Marcello para comprar uma obra, o que foi aparentemente o início do processo de colecionador de obras de arte. Desde então, foram lotes e lotes. Quem me contou essa história foi o próprio Grassmann.”

A amizade entre ambos ficou ainda mais fortalecida quando o gravurista, que vivia em um sítio, sofreu um acidente vascular cerebral. Convencido a voltar para o apartamento da mulher Zizi (Ana Elisa Dias Baptista) em São Paulo, o artista decidiu se separar pouco depois, por achar que a dificuldade de locomoção o transformara num peso. Foi quando Hiller lhe ofereceu o apartamento da mãe, que falecera recentemente, no mesmo prédio. Seria em troca de um desenho eventual, mas o colecionador foi quem acabou comprando quase todos os desenhos, as gravuras (e matrizes) do vizinho.

Pedro Hiller vem agindo da mesma forma com seus outros artistas prediletos, demonstrando a obsessão por colecionar obras de arte de um lado e a generosidade de outro. Mais uma confidência de Lygia Eluf diz respeito às conversas sobre o que fazer com toda esta coleção. “É um fantasma que o atormenta”, diz. E o colecionador, num instante em que os outros na sala não o ouviam, confessou: “Não vai caber tudo [no loft]. No fundo, essa acumulação de coisas é uma doença, não acho muito legal. Acaba ficando meio sem sentido, sabe?”.

(Mais sobre Marcelo Grassmann, Lygia Eluf
 e a exposição nas páginas 6 a 9)