Edição nº 531

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 25 de junho de 2012 a 01 de julho de 2012 – ANO 2012 – Nº 531

A chama da ciência


 Perfil

Instituto de Química, carteira de identidade funcional 535. Primeiro faxineiro a ser contratado na Química, em 1972. Em menos de três anos de contrato, um dos poucos vidreiros científicos da Universidade. E foi com este cargo que Luiz Euclides Fontana aposentou-se da arte de confeccionar incipientes indispensáveis ao desenvolvimento da química na Unicamp. Três anos após a aposentadoria, ao olhar para a chama do maçarico, principal instrumento de trabalho no qual até 2009 deu forma a buretas, pipetas, tubos de ensaio e capilares, ele constata: “Contribuí para o desenvolvimento da ciência. Não recusava ajuda a nenhum professor e aluno não somente na confecção de vidrarias, mas em outras atividades para as quais pediam ajuda.” Hoje, pode apreciar as marcas do tempo no rosto e na titulação de muitos dos alunos que auxiliou. “Muitos são hoje docentes do IQ, mas não deixaram de ser meus amigos.”

Quatro prédios de um lado da praça, quatro do outro. Assim é a Unicamp de 1972 descrita por Fontana. Ele lembra que, ao chegar ao Instituto de Química da Unicamp, foi enviado para um quartinho (um banheiro reformado) no qual nenhum outro faxineiro queria trabalhar por ser isolado. Mas, por ser comunicativo, interessado, solícito e colaborativo, em poucos meses fez do isolamento um ponto de encontro com novos colegas de trabalho, professores e alunos do IQ, que solicitavam sua colaboração em algumas atividades. O local de trabalho, pequeno e esquisito, rejeitado por outros colegas, se diversificara rapidamente, pois surgiram convites para acompanhar as coletas de campo. E assim, o jovem faxineiro passou a conhecer mais do Brasil ao lado de nomes da ciência brasileira como Sebastião Barata, Anita Marsaioli, Hermógenes Freitas Leitão (do Instituto de Biologia), entre outros. “Íamos para Poços de Caldas, Serra do Japi”, relembra.

E, aos poucos, o jovem Fontana mostrava aos amigos e à família que não trocou a função de mecânico na fábrica Chapéus Cury pela de faxineiro na Unicamp para passar 37 anos isolado e muito menos acomodado. A troca de inscrições na carteira profissional, segundo ele, gerou alguns questionamentos como: “Vai deixar de ser mecânico para limpar banheiro?”. A que respondia: “Vou trocar um salário de 176 mil por 360 mil cruzeiros”.  Sem se importar com a condição inicial de “jogador reserva”, como ele mesmo se classifica, encarou o cimento, os fios, os conduítes, as torneiras, até se tornar essencial no auxílio em pesquisas. “Onde faltava gente, eu cobria. Hoje tenho muitos amigos, entre funcionários, professores e alunos”, felicita-se.

Diante da disponibilidade de ferramentas, Fontana começou a se dedicar um período à faxina e outro ao maçarico. Ao perceber a disponibilidade do jovem funcionário, o então diretor do IQ, Jayr de Paiva Campelo,  lhe atribuiu a atividade de vidreiro. A insegurança inicial foi substituída pelo profissional essencial não só à Universidade, mas a algumas salas de colégios técnicos, pois até hoje, após a aposentadoria, Fontana é convidado a ministrar oficinas de vidrarias em escolas técnicas da região de Campinas. “Foi-me oferecido um curso de vidraria. Estudei com o José Cícero Martins, do Instituto de Física Gleb Wataghin, na época responsável pela primeira vidraria da Unicamp”, declara. Ele confessa que na saída de um colega da Vidraria, Rodolfo, entrou em “palpos de aranha”, quebrava dez a cada 11 peças que deveria confeccionar, mas logo contrataram um vidreiro da Força Aérea Brasileira, Carlos Finezi, o que o deixou mais seguro. Logo contrataram Marcos Tadeu Magalhães para ser seu companheiro de trabalho até seu último dia na universidade. Um dos vidreiros do IQ, atualmente, ao lado de Cláudio Roque, Magalhães já era especialista em confecção de vidros desde 1978.

Fontana não imagina o IQ sem a vidraria, já que tudo o que não não pode ser adquirido com urgência no mercado é encontrado no setor. Foi justamente o valor e a fragilidade das peças que levou algumas universidades a terem sua própria vidraria. Fontana explica que os tubos capilares são descartáveis e, em determinado momento, deixaram de ser fornecidos, o que levou o diretor Campelo a abrir a vidraria. Desde então, quando um pesquisador precisa de um aparelho com urgência, desenha o projeto e define o prazo para ficar pronto. Muitas vezes, o prazo vence da noite para o dia e a equipe providencia. “Se chegar aqui e disser que precisa de um condensador para amanhã, o vidreiro molda a peça, submete, em forno, a 560 graus centígrados, e no dia seguinte, tem a peça fria, pronta. Mas o resfriamento também tem de ter tempo adequado”.

Entre os aparelhos que não se encontram em estoque, estão os condensadores encamisados, como um desenvolvido na vidraria para evitar coagulação do sangue durante cirurgia, estudado em pesquisa do IQ. “Não somos formados em química, mas estávamos sempre prontos para dar assistência a laboratórios de ensino e pesquisa, como o Cláudio Roque e o Marcos estão hoje”, declara.

O que seria da ciência sem o vidreiro científico? A resposta é pronta: “Não teria como se desenvolver. Vidreiro científico na Unicamp é assim. Coração. Se tirar o vidreiro, não tem material específico”. Além de confeccionar e montar equipamentos fora do mercado, os vidreiros recuperam peças quebradas. Eles realizam um trabalho coletivo, mas não trabalham em série como na indústria. Cada um dá conta da peça iniciada. E rápido. Porque o vidro não demora nada a voltar ao estado líquido. No trabalho com o torno, por exemplo, o trabalho coletivo é muito importante, pois o operador não pode descuidar. “Quando trabalha no torno há muito calor. Um precisa auxiliar o outro, passando ferramentas. Porque o vidro não para de derreter no forno. Se deixar no fogo, escorre feito água”, explica Cláudio Roque, responsável pela vidraria do IQ atualmente e compadre de Fontana.

Fontana soma à lista de satisfações de sua trajetória na Unicamp a prestação de serviços para outras unidades da Universidade e empresas externas. Isso, segundo ele, tornou o trabalho da vidraria conhecido. A oportunidade de receber pesquisadores e profissionais de outras instituições e empresas para treinamento no Instituto de Química também é relatada com orgulho pelo ex-funcionário. E quando é convidado às reminiscências, se envaidece: “Muitos professores fazem questão de trazer visitantes nacionais e internacionais para conhecer nosso trabalho”. Uma das atividades que ele e os amigos Marcos e Cláudio também têm orgulho de participar é a Unicamp de Portas Abertas (UPA), em que estudantes de ensino médio visitam a Universidade como apoio na decisão pela carreira profissional. “Entregávamos miniaturas a alguns estudantes.”

O interesse pela química desenvolvida na academia era tão grande que Fontana aprendia detalhes que não conseguia assimilar na sala de aula no ensino médio. “Tinha dificuldade em química no colegial [equivalente ao ensino médio], mas quando ia auxiliar um docente aqui eu sabia exatamente o que fazer”, explica. Nesse leque de atividades, incluem-se colher, moer, peneirar, selecionar e extrair plantas e auxiliar em destilação.

A profissão de vidreiro científico é pouco conhecida no Brasil, além de ser escassa. Há dados de que existam menos de 30 profissionais com essa nomenclatura em nosso território.  Essa realidade fez com que Fontana aposentasse da Universidade com pelo menos 15 convites de trabalho. Aos quais nem hesitou em recusar. Pai de três filhas – Maria Auxiliadora, Ana, Paula e a mais nova, Letícia, com 23 anos –, aos 61 anos ele quer curtir a aposentadoria ao lado da família, oferecer oficinas para as quais já está sendo convidado e dar continuidade a um trabalho que realiza na igreja, ministrando palestras e coletando mantimentos e artigos para entregar a famílias carentes de Campinas e Tatuí.

Além de enriquecer sua experiência com as peças laboratoriais, o paulista de Marília já colaborou com trabalhos de halotecnia, transformação de vidro em peças artesanais, e trabalhos de artes plásticas. Ele relembra dos trabalhos com miniaturas ao lado dos amigos do IQ, entre eles André Breda, e da Física, Jeferson Breda. Essa caminhada, como não poderia deixar de ser, fez com que, no mundo do trabalho, reunisse um número incontável de amizades que extrapolam a área do campus de Barão de Geraldo. “Quero curtir a família, mas sinto saudades da vidraria, dos amigos da Unicamp. Mantenho a amizade até hoje”, declara, citando apelidos como do amigo Cebola (Antônio Carlos Siqueira), que teve oportunidade de conhecer ainda garoto e passou a cuidar como se fosse da família. E por falar nisso, ele é um dos irmãos Fontana que dedicaram a maior parte da vida à Universidade. Para que muitos se lembrem ou conheçam: Maria Odete Fontana Pedrossanti e Luiz Aparecido Fontana, no Instituto de Biologia; e o cunhado Ademir Pedrossanti, na Reitoria. As cunhadas Vania Baroni Fontana  (IB) e Dalva Albino Torres Fontana  também marcaram presença no campus.

“A Unicamp mudou minha vida da água para o vinho. Trabalhava como ajustador mecânico; ganhava 176 mil. Cheguei aqui, me contrataram por 360 mil cruzeiros como faxineiro. Riam de mim porque estava vindo limpar banheiro, mas para mim o importante era o dinheiro. Além disso, adoro limpeza. Colaboro com a limpeza em minha casa também. E trouxe isso para a vidraria. O ambiente onde se confeccionam peças em vidro tem de ser muito limpo”, declara. E quando busca, sem nenhum esforço, reconstituir sua vida, relata: “Nunca neguei nada para ninguém. Tudo que pediam eu fazia. E ia além, saia à meia noite, 1 hora da manhã, por ficar quebrando galho de professor e aluno.”

As prorrogações da jornada de trabalho, porém, duraram somente até 1980, quando, depois de frequentar um seminário, casou-se com Maria Madalena Pires Fontana, que havia frequentado um convento. Eles saíram para estudar no Liceu Salesiano, em 1979, e, em 1980, se casaram. É perto dela que, provavelmente, ele quer continuar sendo o profissional que mais faz bicos enquanto trabalha. “Não fazer bico para ganhar uns trocados, mas para assoprar e dar forma a minhas próprias peças em vidro”, brinca.

A possibilidade de contar e recontar essa trajetória, com sorriso constante no rosto, ele faz questão de ressaltar de onde vem: “Se a Unicamp deve algo a mim, devo muito mais a ela.”

Comentários

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Parabens pela matéria. O Fontana é um excelente colaborador e companheiro; merece ser recohecido.

oldeny.costa@feagri.unicamp.br

Comentário: 

São profissionais como o Luiz Euclides que fazem a grandeza das Instituições de Ensino e Pesquisa no país.
A sua dedicação ao trabalho, a sua seriedade aliado à sua competência, em muito contribuíram para o crescimento e o sucesso do IQ na Unicamp.
Parabéns Luiz Euclides pela sua trajetória!! Que você tenha muito sucesso nas suas novas e nobres atividades!!!

Paulo Stringheta - Professor Titular da UFV

pstringheta@yahoo.com.br

Comentário: 

A trajetória do amigo Fontana foi muito bem ilustrada,só um detalhe ele esqueceu do outro vidreiro que contribui muito pela quimica,cujo nome Arlindo Furquim(in memorian).

ncouto@iqm.unicamp.br

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Parabéns, alem de ter sido um excelente colaborador, é um grande amigo, você merece, que Deus o ilumine.

toninho@iqm.unicamp.br

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Gostaria de deixar registrado que o Fontana quebrou muitos galhos aqui para a FEA também.

kimieali@fea.unicamp.br

Comentário: 

Uma pessoa muito responsável, competente e de excelente caráter, que durante todos esses anos de trabalho fez tudo com seriedade e dedicação. Sua atenção era visível na vidraria, sempre querendo ajudar a “todos,” principalmente àqueles que solicitavam seus serviços com a máxima urgência. Acredito que todos os ex-alunos de Pós-gradução, assim como eu, que passaram pelo Instituto de Química/UNICAMP, tem plena convicção que o profissional Luiz Euclides “ FONTANA” desempenhou com honra e dignidade suas funções de vidreiro do IQ. Com isso, colaborou significativamente para fortalecer sua instituição rumo ao sucesso e fazê-la muito grande..!Grande para sempre!
Parabéns amigo Fontana!
Edésio Alcântara - Professor Titular do Instituto de Química/UFG

edesioalcantara@hotmail.com

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Fontana merece esta e outras homenagens.
Um forte abraço de quem confirma todas as coisas boas que possam ser faladas.

zamora@ufpr.br

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Fontana:

É bem verdade: nunca deixou de ajudar a um professor ou aluno!!!

sandra.cruz@ufabc.edu.br

Comentário: 

Saudade enorme desta grande figura.
Na minha época de iniciação, eu colocava as minhas amostras em vidrinhos e deixava sob vácuo. Aí levava pro Fontana selar. Ô tempinho bom...
E ainda tenho o ratinho de vidro até hoje!
Parabéns Fontana! Reconhecimento mais que merecido!

rafagou@hotmail.com

Comentário: 

Fontana!! nosso eterno vidreiro! Grande Ser Humano! sempre que o encontro ele lembra do dia que eu nasci, quando meu pai ainda era aluno de pós do IQ.

Ouvi a história muuuitas vezes, cada vez acompanhada de mais um precioso detalhe.. às vezes tenho a impressão que ia na vidraria da Química na esperança de ouvir ele recontá-la! =D

fica aqui minha singela homenagem!

parabéns à UNICAMP por valorizar sua história!!

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