Edição nº 527

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 21 de maio de 2012 a 27 de maio de 2012 – ANO 2012 – Nº 527

Pente fino na
vista grossa


“A Comissão da Verdade e a Lei de Acesso à Informação, o que se espera” é o título da palestra que o historiador e professor Carlos Alberto Ungaretti Dias, diretor do Acervo Histórico da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, proferiu no último dia 17 no Instituto de Filosofia e Ciência Humanas (IFCH). Carlos Dias vem atuando neste semestre como docente junto à graduação do IFCH, dentro do Programa Especialista Visitante da Pró-Reitoria de Graduação (PRG).

A palestra é oportuna porque a presidente Dilma Rousseff acaba de indicar os sete integrantes da Comissão da Verdade, que vai investigar violações de direitos humanos no Brasil no período de 1946 a 1988. São eles: o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias, o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, a psicanalista e escritora Maria Rita Khel, o jurista e consultor da Unesco José Paulo Cavalcanti Filho, o ex-procurador-geral da República Cláudio Fontele, o ministro do STJ Gilson Dipp e a advogada especialista em crimes políticos Rosa Maria Cardoso da Cunha.

“A escolha dos integrantes me surpreendeu de maneira positiva, pois embora não tenhamos um bispo Desmond Tutu entre os seus integrantes, se trata de um grupo de altíssimo nível, com muita experiência e competência técnica”, avalia Carlos Dias. “Não creio que a documentação relevante já tenha sido totalmente destruída, tese sempre lembrada pelos que defendem o esquecimento, a ‘cultura do silêncio’. A minha experiência junto aos arquivos públicos me permite acreditar que um cuidadoso pente fino poderá trazer novidades, até mesmo porque a nossa tradição arquivística é marcada pela precariedade, pela desordem e até mesmo pelo caos – e isso também dificulta quem quer destruir informações”, é o que acrescenta o especialista na entrevista que segue.

Jornal da Unicamp – A presidente Dilma Rousseff acaba de anunciar os nomes da Comissão da Verdade. O que achou da escolha?
Carlos Dias – A escolha dos integrantes da Comissão me surpreendeu de maneira positiva, pois embora não tenhamos um bispo Desmond Tutu entre os seus integrantes, se trata de um grupo de altíssimo nível, com muita experiência e competência técnica. São figuras públicas reconhecidas pelas entidades de defesa dos direitos humanos, pelos familiares dos desaparecidos e até mesmo pelos grupos que se opõem à instalação da Comissão da Verdade – o que lhe empresta maior legitimidade e coerência ao discurso oficial de que se trata de uma política de Estado e não de uma política de governo, de um partido, ideologizada.

JU – Seguindo o título da sua palestra, o que se espera da Comissão da Verdade?
Carlos Dias – Eu vejo com grande entusiasmo a instalação de uma Comissão da Verdade no Brasil. Chamo a atenção para o momento particular que vivemos: ao contrário do silêncio que prevaleceu na maior parte desses últimos 26 anos, estão colocadas para sociedade brasileira, de forma objetiva, a busca da verdade e a reflexão acerca daquele período obscuro e terrível. Esse processo já está acontecendo. Nos últimos meses vimos o fotógrafo Silvaldo Leung Vieira, que documentou a morte de Vladimir Herzog, descrever em detalhes como eram montadas as fotos nos anos 1970 para forjar versões oficiais encobrindo bárbaros assassinatos. Há algumas semanas, voltou ao noticiário a misteriosa história do desaparecimento de 2.000 índios waimiri-atroatri, que estariam atrapalhando a construção da BR-174, que liga Manaus a Boa Vista. Será verdade que jogaram pó químico sobre algumas aldeias? Onde foram parar os desaparecidos?

Chamou a atenção a declaração do ministro Gilson Dipp, que presidirá inicialmente o colegiado, de que a Comissão está comprometida em apurar a verdade, “doa a quem doer”. Há muito a esclarecer e é plenamente factível apurar diversos acontecimentos daquele período. Não creio que a documentação relevante já tenha sido totalmente destruída, tese sempre lembrada pelos que defendem o esquecimento, a “cultura do silêncio”. A minha experiência junto aos arquivos públicos, onde trabalho desde 1995, me permite acreditar que um cuidadoso pente fino poderá trazer novidades, até mesmo porque a nossa tradição arquivística é marcada pela precariedade, pela desordem e até mesmo pelo caos – e isso também dificulta quem quer destruir informações. Os depoimentos são outra fonte importante e alguns agentes públicos envolvidos nos acontecimentos já se mostraram dispostos a se apresentar à Comissão, como o cabo Anselmo.

Mais nebulosos são os possíveis desdobramentos que os trabalhos da Comissão da Verdade poderão trazer. Certo é que o governo e os partidos no Congresso estabeleceram como objetivo da comissão apurar a verdade com vistas à conciliação. Por sua vez, o Judiciário reiteradamente negou a possibilidade da criminalização dos responsáveis devido à Lei da Anistia.

No entanto, desde que o Tribunal de Nuremberg estabeleceu que a busca da verdade é um objetivo em si mesmo, que a verdade deve ser buscada para que as atrocidades contra os direitos humanos não sejam esquecidas e não se repitam, foram realizadas mais de 40 Comissões da Verdade em todo o mundo. Os especialistas destacam que nenhuma delas teve como objetivo inicial punir os responsáveis pelos crimes. Exemplo simbólico é o da Argentina, país pioneiro na América Latina, que instalou sua “Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas” logo após o término da ditadura, em 1983: a questão só foi colocada durante os trabalhos quando da elaboração de peças jurídicas cuidadosamente fundamentadas e circunstanciadas descrevendo os horrores, que causaram enorme indignação e grande mobilização popular.

JU – Seu envolvimento com este tema deve ser grande, enquanto historiador e diretor do Acervo da Alesp.
Carlos Dias – Iniciei minha militância política em 1968, no movimento secundarista, quando estudava no Colégio de Aplicação de São Paulo. Participei ativamente da luta pela redemocratização, que acabou me levando a trabalhar na Assembleia de São Paulo. Mesmo sem vinculação partidária há décadas, procuro contribuir com a construção de nossa democracia de diferentes maneiras. Entre elas eu incluo a dedicação à organização do Acervo Histórico da Assembleia de São Paulo. Em 1995, quando comecei a trabalhar na área, disponibilizar os milhões de páginas de documentos daquele acervo à sociedade era apenas um sonho. Hoje, 350 mil páginas de documentos históricos já podem ser acessadas pela Internet, desde março do ano passado.

Com o enorme empurrão produzido pela entrada em vigor nesta semana da Lei de Acesso à Informação, pode-se imaginar que, até mesmo em poucos anos, a totalidade dos documentos acumulados na Assembleia em seus mais de 180 anos de história poderão estar disponíveis ao cidadão na internet – o mesmo terão que fazer, ao seu tempo, os demais órgãos públicos. É a chamada disponibilização proativa, que está revolucionando a pesquisa junto às fontes primárias.

JU – Quais as atividades que vem desenvolvendo junto aos alunos do IFCH?
Carlos Dias – O trabalho teve início com o desafio lançado pela professora Neri de Barros Almeida de organizar um curso para os alunos do IFCH trazendo não só a experiência no trabalho junto ao Acervo da Assembleia, como também uma reflexão sobre os arquivos públicos no Brasil e as novas perspectivas que se abrem à pesquisa. Curiosamente, quando apresentei o projeto, em meados de setembro, tanto a Lei de Acesso à Informação como a Lei da Comissão da Verdade eram ainda apenas projetos que tramitavam no Congresso – seriam aprovadas em 18 de novembro. Naturalmente foram temas presentes nas primeiras aulas.

Ao tratar da Comissão da Verdade, analisamos o que passamos a chamar de “A experiência alemã”. Segundo nos informa o historiador Andreas Nachama em um excelente documentário produzido pela Globo News, exibido em nove de março último, os alemães rejeitaram o argumento de que se deve esquecer o passado, não foi feita qualquer concessão aos responsáveis pelos crimes durante o nazismo. Mesmo décadas após, já no final dos anos 1970, a exibição da série Holocausto fez com que cidadãos questionassem seus familiares sobre crimes durante o nazismo, tendo como referência a busca da verdade.

Paralelamente ao desenvolvimento do programa, adaptamos “a experiência alemã” ao nosso curso: o trabalho de semestre foi transformado em um exercício de história oral, no qual os alunos vão entrevistar pessoas que têm o que dizer sobre o período autoritário, tendo como referência a Comissão da Verdade. Mesmo ciente das limitações metodológicas que enfrentamos, o entusiasmo e o envolvimento que demonstram os alunos é animador e aguardamos com ansiedade o resultado da reunião de dezenas de depoimentos, na sua grande maioria de cidadãos comuns, que viveram sob a ditadura no Brasil.