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Divina ciência?

Em coletânea com 80 colunas, Marcelo Leite comenta seus próprios textos criticamente e reflete sobre a função e a prática do conhecimento científico

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É mais ou menos aceito que Dante Alighieri deu início ao Renascimento ao publicar sua conhecida Divina Comédia por volta de 1300. Ele deslocou a centralidade das questões de um Deus criador, de um Deus de certezas, e “criou” o homem moderno, não mais submisso, que se anula, mas alguém questionador do mundo e de si, para quem o mundo é um enigma, instável, repleto de dúvidas éticas. Dante também fez uma revolução literária e ética ao abandonar uma noção de objetividade: ele não se propunha a falar do mundo, mas a falar de si ao mostrar sua percepção (sua memória) dos acontecimentos (o inferno, o purgatório e o paraíso que ele mostra são só dele, locais inventados onde aloja os seus conhecidos). Dante não vacilava a respeito da religião, mas questionava o clero – pessoas comuns que ocupam uma posição de poder em uma estrutura. O escritor florentino enxergou a complexidade dos seres humanos, cheios de culpas, com possibilidade de serem bons e maus, e que se revelam por meio de suas ações; ele até reservou um lugar especialmente sofrível para os indiferentes, que, para ele, nem chegam a merecer o inferno.

O jornalista Marcelo Leite, em Ciência – use com cuidado (2008), parece partilhar dessa tradição possivelmente iniciada por Dante. O autor tira o pedestal em que muitos cientistas, jornalistas e divulgadores colocam a “Divina Ciência” (por mais paradoxal que isso possa soar). Ele não se coloca como alguém cheio de certezas, mas sim como um indivíduo moderno, questionador. Marcelo Leite também abandona certa noção de objetividade e deixa claro que, enquanto jornalista (e não divulgador), também dá as suas opiniões: “Numa coluna, informar e opinar. Se alguém sair mais instruído de sua leitura, tanto melhor – de preferência, mais traquejado em usar a própria cabeça para formar opinião sobre questões de ciência” (p. 118). O jornalista não vacila a respeito da importância do conhecimento científico (ainda que este seja baseado em verdades provisórias), mas questiona os cientistas – pessoas comuns que ocupam uma posição de poder em uma estrutura: “Em geral, nós, os jornalistas de ciência, endeusamos a esfera da pesquisa como uma atividade desempenhada por seres assexuados, insípidos e inodoros, sem interesses nem ideologias. Quem conhece um pouco da vida nos laboratórios sabe que não é bem assim” (p. 141).

Desse modo, Marcelo Leite enxerga a complexidade dos seres humanos que fazem e divulgam ciência e reforça as inevitáveis limitações que isso implica. Se não chega a imaginar um calvário para os indiferentes, ao menos dá vários motivos para nos importarmos com questões da ciência, que podem ter consequências tanto no plano individual quanto no político, econômico e social. Abandonando essa comparação com Dante Alighieri, que soa presunçosa e afetada, o que pretendo destacar é como Marcelo Leite consegue sublinhar, em seu livro, a presença dos (imperfeitos) humanos na ciência. Ciência – use com cuidado é uma coletânea de 80 colunas, selecionadas entre as mais de 280 publicadas de 2002 a 2007 pelo jornalista no caderno Mais! da Folha de S. Paulo.

Em tempos de excesso de informação (e desinformação), a reunião desses textos já é de grande valor, mas Marcelo Leite foi além, como explica na introdução do livro: “A intenção foi dar ao leitor algo mais – contexto, colorido e fontes para aprofundamento – do que pode oferecer uma compilação preguiçosa de textos não inéditos” (p. 21). Com esse objetivo, para cada coluna, ele acrescentou um “pós-escrito”; vários trazem atualizações e referências mais recentes, alguns destacam condições e circunstâncias da produção científica e jornalística, outros poucos narram aspectos anedóticos e autobiográficos.

Ao buscar refletir nesses pós-escritos sobre o que o motivou a escrever a respeito de determinado assunto, Leite conseguiu ainda enxergar seus textos de modo diferente, já que o recuo temporal ajuda a identificar os próprios defeitos. E o jornalista não foi nada condescendente com suas colunas. Assim, por exemplo, ele começa um de seus pós-escritos: “Esta foi, com certeza, uma das colunas mais temerárias que escrevi” (p. 118). Comentários como esse talvez mostrem, mais uma vez, a falibilidade humana, mas valem ainda como uma “aula” para aqueles que pretendem se dedicar ao jornalismo e à divulgação científicos. Afinal, a ciência deve ser usada com cuidado também (ou melhor, sobretudo) por aqueles que se propõem a falar sobre ela para um público amplo.

O mais interessante do livro talvez não seja uma possível sensação gratificante por conseguir compreender determinados assuntos antes “enigmáticos” (ou completamente ignorados), mas justamente a oportunidade de vermos exemplos de bons textos sobre ciência, comentados criticamente pelo próprio autor. Isso nos ajuda a desconfiar na hora de consumir (ou de produzir, se for o caso) textos de jornalismo ou divulgação científica, tendo em vista que é raro lermos os estudos científicos em si – muitas vezes, extremamente especializados.

Tanto na postura que adota ao escrever as colunas, quanto nos comentários, Marcelo Leite vai desfazendo algumas ideias corriqueiras do jornalismo científico. O autor, por exemplo, confessa que “já vinha de alguns anos uma antipatia profunda por concepções correntes do jornalismo científico que fazem dele ou um compêndio de curiosidades e maravilhas ou um posto avançado do ensino de ciência” (p. 18). Além disso, ele procura ser fiel a sua máxima de “tornar interessante o que é importante (para a vida pública), e não tanto tornar importante (pelo destaque jornalístico) o que só é interessante” (p. 18). Assim, ele revela sua opinião de que “a função mais nobre do jornalismo científico é precisamente [...] ajudar o leitor a duvidar. Duvidar do estudo atual que diz que comer ovo é bom para a saúde e também da pesquisa anterior que dizia ser péssimo. [...] Se todos, jornalistas e seus leitores, lessem ao menos algumas vezes os artigos científicos propriamente ditos, ficariam mais evidentes as inúmeras ressalvas que pesquisadores sempre fazem e haveria menos gente crédula no mundo” (p. 29).

É possível entender que essas reflexões sobre a função e a prática da ciência e do jornalismo científico constituem uma linha que dá unidade ao livro, uma linha que vai discretamente costurando seus 80 pequenos textos (e seus 80 pós-escritos), divididos em quatro capítulos. E o que torna viável o desfiar dessa linha, o desenvolver desse argumento, talvez seja algo que apenas um livro pode proporcionar. Consciente de que as pessoas hoje têm cada vez menos tempo (e paciência) para acompanhar o desenvolvimento de um argumento extenso e difícil, o autor sabe que os livros sobre ciência enfrentam limite de público. “Acho que as possibilidades são limitadas, mas não desesperadoramente. Nada se compara com o formato livro para apresentar e acompanhar um longo argumento, em geral o que está envolvido quando se trata de abordar em profundidade uma questão científica, em toda a sua complexidade”, explica em entrevista a este blog.

Esse possível longo argumento (ou linha) sobre a função e a prática da ciência e do jornalismo científico, desenvolvido em todo o livro, e o fato de Marcelo se dedicar mais em suas colunas a explicar os processos da ciência (como ela funciona) do que os resultados dos estudos é o que torna o livro relevante mesmo dez anos após sua publicação. Isso e a combinação entre ceticismo e admiração que abrange uma galeria de assuntos, tais como: aquecimento global, alimentos transgênicos, história do jornalismo científico no Brasil, clonagem, cota racial e genética, cientistas brasileiros, resenhas de livros e filmes ficcionais relacionados à ciência, erros de cientistas, indústria farmacêutica, experimentação animal, ciência e religião, sensacionalismos, biodiversidade, economia e ecologia.

Uma ciência humana (e não uma divina ciência), enfim, é “encarnada” nas páginas deste livro, o que nos lembra de que a ciência deve ser usada com cuidado, mas também nos provoca um sentimento de empatia pelas incontornáveis limitações humanas. Isso fica especialmente evidente na coluna “Darwin e a religião”. Nela, Marcelo Leite comenta que Darwin hesitou em publicar A origem das espécies, já que era “provável que se recriminasse pelo desgosto que a grande ideia causara à amada e piedosa Emma, sua mulher”. E continua: “Tanto criacionistas quanto cientificistas podem aprender muito com a lição de tolerância do casal. Em fevereiro de 1839, Emma Darwin escreveu o seguinte texto ao marido: ‘Que o hábito do conceito científico de em nada acreditar até que seja provado não influencie muito também a sua mente em outras coisas que não podem ser comprovadas da mesma maneira e que, se realmente verdadeiras, provavelmente estarão acima da nossa compreensão’. Darwin, sem renunciar à evolução, anotou na carta da mulher: ‘Quando eu estiver morto, saiba que muitas vezes beijei e chorei sobre esta’” (pp. 168-169). A ciência é feita por humanos, cheios de dúvidas, fraquezas, culpas... Lembrarmos disso é importante tanto para desconfiarmos quanto para nos tornarmos mais humildes.

 

ReproduçãoSERVIÇO

Ciência — use com cuidado

Autor: Marcelo Leite

ISBN: 978-85-268-0801-0

1ª Edição, 2008

1ª Reimpressão, 2014

Páginas: 280

Preço de capa: R$ 50,00

 

 

‘Meio de Cultura’ completa dez anos

Por Laís Souza Toledo Pereira

A coleção especializada em divulgação científica da Editora da Unicamp Meio de Cultura completa neste ano uma década de existência. Os 15 títulos que a compõem contemplam os mais variados assuntos: desde a relação entre a ciência e a arte (Borges e a Mecânica Quântica, 2011), ou entre o laboratório e a cozinha (O frango de Newton, 2015), até uma apresentação da mente humana como uma “engenhoca emendada” (Kluge: A Construção Desordenada da Mente Humana, 2010). Diversificados também são os países de origem dos autores publicados; há brasileiros, argentinos, italianos, mexicanos, espanhóis, entre outros. A formação desses autores também não é nada homogênea; podemos tanto ler cientistas de diferentes áreas quanto jornalistas dedicados à divulgação da ciência. De fato, esse “meio de cultura” foi favorável ao desenvolvimento de uma pluralidade de ideias. Um aspecto, porém, une os 15 livros: a busca por assuntos, linguagens e visuais atrativos.

Criada a partir da percepção de uma lacuna no mercado editorial nacional, a coleção Meio de Cultura, segundo o seu coordenador, o físico Marcelo Knobel, atual reitor da Unicamp, acertou em oferecer uma nova perspectiva para a área de divulgação científica. A crise econômica, porém, limitou o número de publicações: “Gostaríamos de ter lançado mais livros. Infelizmente a situação financeira não permitiu”, explica. Nesta entrevista, Knobel faz um balanço dos dez anos de existência da coleção e comenta os planos e as expectativas para o futuro.

Foto: Perri
Marcelo Knobel, reitor da Unicamp e coordenador da coleção de divulgação científica: “Acredito que conseguimos trazer uma nova perspectiva à área”

Como surgiu a ideia de lançar a coleção Meio de Cultura?

Marcelo Knobel – Surgiu a partir da constatação de que há pouco espaço para a divulgação científica no meio editorial brasileiro, e que este é um assunto fundamental para uma editora universitária. Havia vários autores que eu e colegas líamos que não tinham tradução para o português, principalmente argentinos, espanhóis e italianos.


Como foi o processo de seleção dos livros que fariam parte dela?

Marcelo Knobel – Foram surgindo aleatoriamente, com recomendações da Comissão que constituímos, e com recomendações de colegas. Depois, as próprias editoras da área também foram mandando sugestões e lançamentos. Conferimos também as vendas nesses mercados, para ver alguns livros de sucesso.


Este ano, a Meio de Cultura completa dez anos de existência. O senhor poderia fazer um breve balanço sobre essa década? Quais foram os principais acertos? E os erros?

Marcelo Knobel – Acredito que conseguimos trazer uma nova perspectiva à área, mas gostaríamos de ter lançado mais livros. Infelizmente a situação financeira não permitiu. Outra coisa que poderíamos ter feito, para tentar dar mais visibilidade aos temas, é participar de editais para livros paradidáticos do MEC. Isso representaria uma venda importante, e também a possibilidade de autofinanciar a coleção.


Quais são os planos e as expectativas para o futuro? 

Marcelo Knobel – Gostaríamos de seguir “devagar e sempre”, talvez lançando de um a dois títulos por ano. Seria interessante ser mais “agressivo” na distribuição e na publicidade.


A coleção tem como um de seus objetivos incentivar a redação e a publicação de livros de divulgação científica escritos especificamente por autores brasileiros? Como esse incentivo poderia ser concretizado?

Marcelo Knobel – Seria outra ação interessante. Poderíamos, por exemplo, realizar um concurso para autores em língua portuguesa para livros de divulgação da ciência. Isso seria algo interessante para descobrir novos talentos na área. Outra ideia seria procurar os novos divulgadores de ciência (bloggers, youtubers etc.) para publicarem algum livro com a gente.

 

 

Imagem de capa JU-online
Imagens: Reprodução | Editora Unicamp

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