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Enzima transforma biomassa em bioprodutos

Grupo internacional que identificou a estrutura contou com a participação de pesquisadores da Unicamp

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Grupo de pesquisa internacional, do qual participam pesquisadores da Unicamp, identificou uma nova enzima e elucidou o seu mecanismo de ação, que cumpre papel importante no processo de conversão da biomassa lignocelulósica, proveniente de fontes renováveis como cana-de-açúcar e milho, em produtos de alto valor agregado, entre eles biomateriais, biocombustíveis e bioplásticos. Artigo científico com os resultados do estudo foi publicado no último dia 27 de junho pela revista Nature Communications, do Grupo Nature. A contribuição dos profissionais da Universidade ao projeto foi na área computacional, por meio de simulações que orientaram as experimentações.

Pela Unicamp, participaram o pós-doutorando em Química Rodrigo Leandro Silveira e seu supervisor, o professor Munir Skaf, que também responde pela Pró-Reitoria de Pesquisa (PRP) da Universidade. Silveira explica que embora enzimas da mesma família, conhecidas como citocromos P450, ocorram comumente na natureza, inclusive no organismo humano, respondendo por boa parte do metabolismo de fármacos no fígado, não se conhecia até o momento um representante envolvido em processos de conversão de lignina. Os pesquisadores batizaram essa enzima de GcoA, na sigla em inglês. Essa diminuta estrutura, segundo o pesquisador, tem atributos especialíssimos. “Diferente de outras enzimas, ela é uma entidade extremamente versátil, com capacidade de atuar em diferentes substratos”, aponta Silveira.

Foto: Perri
O pós-doutorando Rodrigo Silveira: colaboração brasileira foi na área computacional, por meio de simulações que orientaram os experimentos

O pesquisador fornece mais detalhes sobre o mecanismo de ação da GcoA. Segundo ele, a enzima está relacionada ao metabolismo bacteriano da lignina, um polímero que, junto com a celulose e a hemicelulose, confere resistência e defesa às plantas. Dito de modo simplificado, uma determinada classe de bactérias utiliza a enzima para degradar a lignina e utilizá-la como fonte de energia, ou seja, como alimento. “Trata-se de um processo bastante sofisticado porque a lignina apresenta uma composição química muito heterogênea. Do ponto de vista molecular, ela é composta por muitas unidades diferentes, que por sua vez apresentam ligações químicas igualmente diversas, as quais devem ser cuidadosamente desfeitas durantes as reações químicas do metabolismo bacteriano de lignina”, diz Silveira.

Nesses casos, continua o pesquisador, normalmente é preciso uma grande variedade de enzimas para quebrar todas essas ligações e assim degradar a lignina, que é um polímero aromático. “Ocorre que a enzima que descobrimos, que catalisa uma etapa crítica do processo chamada de O-desmetilação aromática, consegue atuar em uma grande variedade de subunidades de lignina. À medida em que liga todas essas diferentes subunidades, a GcoA as transforma em um único intermediário, chamado catecol, um precursor de ácido mucônico, que pode ser cataliticamente convertido em matéria-prima para produção de plásticos, por exemplo. Nós utilizamos a engenharia metabólica para modificar os genes da bactéria, de modo a canalizar esse processo metabólico para o objetivo que queremos, que é o de gerar produtos de alto valor agregado, como biocombustíveis e biomateriais”, detalha Silveira.

Antes de promoverem essa modificação genética, no entanto, os cientistas buscaram entender o mecanismo de ação da enzima. Isso foi feito através de avançadas técnicas computacionais, conhecidas como simulações de dinâmica molecular, capazes de representar o comportamento da estrutura. “Utilizamos como ponto de partida a estrutura da enzima obtida experimentalmente por técnicas de difração de raios X. Então, utilizamos centenas de computadores trabalhando em conjunto para resolver as equações que governam o movimento de cada um dos átomos da enzima ao longo do tempo, para assim entender sua dinâmica e seu mecanismo de funcionamento”, pormenoriza o pesquisador. Esse trabalho foi executado no Centro de Pesquisa em Engenharia e Ciências Computacionais, que é financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e está sediado no Instituto de Química (IQ) da Unicamp. Quem coordena esse Cepid é o professor Skaf.

Silveira assinala que atualmente os computadores estão tão robustos e os algoritmos tão sofisticados que as simulações chegam bem perto da realidade. “Ao usarmos esse tipo de técnica, nós verificamos quais são os elementos presentes nessa enzima, que fazem com que ela seja tão versátil para atuar em diferentes substratos. O que nós vimos foi que ela funciona como uma planta carnívora. Ela se abre para capturar o substrato, depois se fecha e se adapta em torno dele.  Além disso, verificamos que a enzima pode se fechar completa ou parcialmente, dependendo da interação com o substrato, e isso possui consequências diretas no seu desempenho. A partir dessas observações, os pesquisadores experimentalistas estão agora interferindo nesse mecanismo, com o propósito de melhorá-lo e direcioná-lo para os nossos pontos de interesse”, esclarece o pós-doutorando.

Foto: Perri
O professor Munir Skaf: participação da Unicamp em consórcios internacionais revela a capacidade da ciência brasileira

O próximo passo dentro do projeto de pesquisa, adianta o professor Munir, será produzir a enzima devoradora de lignina em maior escala. “Imaginemos que o nosso objetivo futuro seja produzir biocombustível a partir de biomassa. Para atender à demanda mundial, nós precisaremos de muitas toneladas de enzima, o que não é um desafio trivial de ser superado”. Além da Unicamp, participaram da pesquisa as seguintes instituições: Universidade de Porsmouth (Reino Unido); Laboratório Nacional de Energias Renováveis (NREL, EUA), onde Silveira fez estágio de pós-doutorado; Universidade Estadual de Montana (EUA), Universidade de Georgia (EUA) e Universidade da Califórnia, em Los Angeles (EUA).

O professor Munir observa a importância de a Unicamp e seus pesquisadores participarem de projetos de pesquisas como esse, que atuam no estado da arte da ciência e que envolvem diferentes instituições e áreas do saber. “Esses são requisitos indispensáveis ao desenvolvimento da boa ciência. Entretanto, é preciso ressaltar que nós não integramos esses consórcios internacionais apenas para aprender. Nós também temos o que ensinar. Nós dispomos de infraestrutura e recursos humanos altamente qualificados, em níveis semelhantes aos dos países desenvolvidos. A participação do Rodrigo Silveira nesse estudo comprova a nossa capacidade”, analisa o pró-reitor de Pesquisa.

Para além da questão científica, o professor Skaf também registra a importância de pesquisas dessa natureza para a construção de um planeta mais sustentável do ponto de vista ambiental. O pró-reitor oferece como exemplo dessa reflexão o sistema de produção de papel, que é extraído da madeira. A lignina, objeto de interesse para a manufatura de produtos de alto valor agregado, é um elemento que “atrapalha” o papel, porque o deixa escuro. “É preciso usar uma série de reagentes químicos, que são potencialmente poluentes, para remover a lignina do papel. Através do método aplicado no estudo que acabamos de publicar, essa mesma lignina que é removida durante a produção de papel pode ser convertida em bioprodutos. Isso gera um ciclo virtuoso, visto que o eucalipto que fornece a celulose para a fabricação do papel pode ser plantado novamente e, ao crescer, vai capturar CO2 [gás carbônico] da natureza e transformá-lo, iniciando pela fotossíntese, em celulose e lignina. E tudo isso sem passar pelo uso do petróleo”, pondera o pró-reitor de Pesquisa.

 

 

Imagem de capa JU-online
Estrutura tridimensional da GcoA, imediatamente após ter capturado a subunidade de lignina denominada guaiacol (em amarelo) para iniciar a reação química | Divulgação

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