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Diluições água com açúcar de obra ressuscitam e matam Jane Austen

Baseadas em Orgulho e Preconceito, fanfictions apostam na fantasia do final feliz

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Elizabeth Bennet não é uma mulher como outra qualquer de sua época, a Inglaterra do início do século XIX. Sendo parte de uma família empobrecida, na qual ela e suas irmãs não teriam direito à herança, ela recusa nada menos que dois casamentos que poderiam “salvar” a situação financeira dos Bennet. Mais que isso, ela recusa o casamento com aquele que seria “seu príncipe encantado”. A narrativa é parte do clássico Orgulho e Preconceito, livro mais popular da autora britânica Jane Austen (1775-1817) e que vem ganhando, desde a década de 1990, uma legião de fãs.

O sucesso, motivado em parte pelo lançamento, entre 1995 e 1999, de sete adaptações para o cinema de obras da autora, foi se ampliando sobremaneira a partir dos anos 2000, com o que ficou conhecido como “austenmania”. Na esteira desse fenômeno, as chamadas fanfictions, ou seja, as histórias baseadas em Orgulho e Preconceito, escritas por fãs da obra, proliferaram, reforçando ainda mais a marca em que se transformou o nome de Jane Austen.

Foto: Antonio Scarpinetii
Maria Clara Pivato Biajoli, autora da tese: “É muito repetitivo nessas publicações a personagem ser colocada em situações de perigo, ser sequestrada, só para ser salva pelo príncipe encantado”

Mas o que motiva os leitores a procurar essas continuações? Certamente não é a postura de Elisabeth Bennet diante do mundo, colocando sua felicidade individual acima dos deveres para com a sociedade. O que faz uma fanfiction ter sucesso realmente, ou explodir em vendas, é o foco numa história de amor açucarada e que mantém a fantasia do final feliz. Foi o que concluiu a tese de doutorado “Orgulho e Preconceito no século XXI: a Austenmania e a fantasia do final feliz” de Maria Clara Pivato Biajoli, defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. “As fanfictions acabam transformando Orgulho e Preconceito em um conto de fadas do período histórico regencial”, complementa a pesquisadora, que foi orientada pelo professor Fabio Akcelrud Durão.

Ela leu 125 romances em língua inglesa, disponibilizados no site Amazon que oferece versões impressas e eletrônicas das fanfictions. São publicações que desenvolvem ou modificam passagens do original ou mesmo criam outras narrativas com os mesmos personagens. Há autores que buscam imitar a maneira de escrever de Austen, ou que tentam diferenciar-se por completo. Em comum, salvo raríssimas exceções, segundo Maria Clara, está a tentativa de repetir a experiência do final feliz.

O mecanismo identificado pela autora da tese para fazer as histórias funcionarem como um conto de fadas, é transformar a protagonista feminina em uma mulher frágil e indefesa e, principalmente, não tão protagonista assim. Seu par romântico, o carrancudo Mr. Darcy da literatura, tem praticamente todos os seus defeitos “corrigidos” nos livros escritos pelos fãs. Ele sim passa a ser o protagonista da história. O príncipe encantado que enfrenta todas as adversidades para salvar a mocinha em que Elisabeth Bennet foi transformada.

“Essa Elisabeth tem papel dúbio porque, para reforçar essa obsessão que as continuações têm em transformar o mister Darcy num herói perfeito, ela precisa ser construída como a donzela indefesa, que precisa ser resgatada. É muito repetitivo nessas publicações a personagem ser colocada em situações de perigo, ser sequestrada, só para ser salva pelo príncipe encantado”, pontua.

Fotos: reproduções da web
Reproduções de capas de fanfictions: príncipe encantado como protagonista

Para entender como as fanficions transformaram a personagem Elisabeth Bennet, a autora da tese recorreu à crítica literária de toda a obra de Jane Austen. “É uma obra bastante complexa e irônica. Austen faz um retrato bem escancarado dos valores de uma sociedade que avalia as pessoas de acordo com a quantidade de dinheiro que têm. Ela soube mostrar claramente qual era o lugar da mulher naquela sociedade, um lugar pequenininho. Porém sem se transformar num panfleto feminista”.

No caso de Orgulho e Preconceito o retrato está construído ao longo de um romance “que é um tipo de gênero que por convenção tem o herói, a heroína e seu final feliz”. Mas Maria Clara justifica que, mesmo o final feliz do livro, não é como o que se perpetua nas obras criadas pelos fãs. “As pessoas apagam a complexidade dos personagens que têm seus defeitos que precisam ser superados antes de se encontrarem em situação de igualdade no final do romance. Não é como o príncipe que acolhe a Cinderela. O fim do romance é um final feliz em que os dois, apesar de Darcy ser o mais rico e importante socialmente, estão em pé de igualdade em termos de complexidade e construção da personagem”.

Orgulho e Preconceito foi o segundo livro que Jane Austen publicou. A autora morreu com 41 anos de idade e deixou manuscritos inacabados. Maria Clara fez bolsa sanduíche no Canadá e estudou com um professor que trabalha com os manuscritos. “Há cadernos de Jane Austen, preservados em grandes universidades, que contêm histórias curtas que são muito ácidas, irônicas, e que fazem paródia com esse gênero sentimental que hoje engoliu a obra dela”, relata.

Segundo Maria Clara, com a austenmannia, Jane Austen acabou sendo considerada fundadora do romance romântico moderno, que é totalmente diferente do que ela fez. Hoje existem inclusive livros de autoajuda sobre “como encontrar o seu mister Darcy” e mesmo a heroína Bridget Jones foi inspirada em Orgulho e Preconceito, de acordo com Maria Clara. “Uma das perguntas da minha tese foi se essa popularidade de hoje pode ser considerada algo positivo porque, ao mesmo tempo que mantém Jane Austen viva, por outro lado qual escritora está sendo propagada? É um fenômeno que dá vida à autora, mas, ao mesmo tempo, a mata. É paradoxal”.

A pesquisadora conclui que o maior problema “é perder a oportunidade de usar uma obra como a da Jane Austen, de 200 anos, mas que traz temas atuais, para desenvolver uma percepção crítica do nosso mundo. Em vez disso essa literatura se transforma em uma fuga, acho isso muito triste”. Quando o leitor deixa de perceber as sutilezas e ironias de Orgulho e Preconceito, é ele quem perde.

 

Imagem de capa JU-online
Foto: Antonio Scarpinetti

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