Foto: Antoninho PerriRoberto Romano da Silva é professor titular aposentado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Autor de vários livros, entre eles “Brasil, Igreja contra Estado” (Editora Kayrós, 1979), “Conservadorismo romântico” (Editora da Unesp), “Silêncio e Ruído, a sátira e Denis Diderot” (Editora da Unicamp), “Razão de Estado e outros estados da razão” (Editora Perspectiva). 

Servo arbítrio

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Foto: ReproduçãoTema essencial desde os primórdios da ordem cristã, o livre arbítrio gastou oceanos de tinta, nos mais diversos doutrinadores. Um dos primeiros a defender a tese da escolha humana nos atos comuns e na fé, São Justino (100-165) afirma que “se o homem não tem o poder de evitar o mal e seguir o bem por livre escolha, ele não é responsável por atos de qualquer tipo”. O direito define as relações humanas e divinas. Um indivíduo só responde por seus cometimentos se for livre. A fria necessidade, defendida pelos filósofos estoicos, não tem sentido para a salvação política ou religiosa. Só pode ser condenado ou receber louvores a pessoa responsável. E só pode ser responsável quem for livre. O núcleo do ensino cristão é assim totalmente marcado, mas com ajustamentos estratégicos. Santo Agostinho reconhece a livre escolha, mas a coloca antes do tempo. Ao pecar no paraíso, o homem usou o livre arbítrio. Escolheu o Mal. Após a Queda, sem a Graça ele é um ser condenado. Na Idade Média e na Reforma o assunto gera paixões, guerras filosóficas e físicas. Ainda no século 17 o jansenismo traz querelas violentas na Europa, embates que duram até os nossos dias. Erasmo de Rotterdam escreveu o De libero arbitrio. Lutero o critica duramente em réplica ferina, o De Servo Arbitrio. Maquiavel defende a vontade livre. Hobbes e Spinoza a recusam.

A liberdade na escolha do ser humano está conectada a uma força maior do que ele. Para os que defendem o livre arbítrio a pessoa responde diante do ser divino. Para que Deus seja justo é preciso que suas leis permitam o acerto e o erro, a virtude e o vício. Quando a figura divina se torna pálida no cenário humano, com o processo de secularização cultural e política (o crepúsculo dos deuses, ou desencanto do mundo) a liberdade tem como limite a Natureza. Hobbes indica o direito natural como algo a ser controlado, visto que nele a guerra de todos contra todos impede o convívio. Spinoza mostra a identidade entre Deus e Natureza, algo que surge de modo invencível se for considerado apenas o aspecto físico das pessoas. Ali reina a força: “o direito natural é o direito do peixe grande devorar o pequeno”. Como a Substância divina surge em nós sob os atributos da extensão e do pensamento, é ao último que devemos recorrer para controlar a força. Tanto em Hobbes quanto em Spinoza a razão enfrenta obstáculos para vencer a brutalidade da natureza e do ser humano. Para vencer o mundo natural e dirigir a sociedade de modo livre são imprescindíveis a ciência e as artes políticas. Spinoza segue caminhos diferentes dos encetados por Hobbes. Não irei aqui desenvolver a oposição entre os dois pensadores. [I]

Em Hobbes, dada a impossível salvação no campo da natureza, onde a guerra segue perene, é instituída a república na qual o soberano (indivíduo ou assembleia) é dotado do poder de arbitragem. Tal força é atribuída à soberania pelos que escolhem viver em paz, sob leis. O arbítrio do soberano tem como base a potência do inteiro corpo político. A partir do século 18, como resultado da revolução puritana na Inglaterra, da Independência das colônias americanas, da Revolução Francesa, a fonte do poder soberano se desloca rumo ao povo, o que exige dos governantes obediência à lei maior, a Constituição. Tanto o povo soberano quanto seu representante, no entanto, renunciam ao arbítrio, o que marca os passos vacilantes do Estado de Direito. O arbítrio do governo foi defendido em práticas e doutrinas opostas às teses liberais, herdeiras das revoluções ocorridas nos séculos 17 e 18. No conceito político sobre a decisão, Carl Schmitt retoma o arbítrio que deveria, no seu entender, ser atribuído ao chefe de Estado, numa leitura autoritária das leis. Der Führer schützt das Recht... [II]

Preocupa e assusta o movimento, de fácil verificação, nas formas jurídicas brasileiras rumo ao absolutismo sem peias concedido a determinados agentes públicos, sobretudo os que se ligam ao judiciário. O arbítrio, no Brasil, permanece em nossos dias ou como resquício do poder absolutista, ou como defesa do Estado autoritário – a ditadura Vargas e a de 1964, com seus juristas do tipo Francisco Campos deixam rastros no direito estatal de nosso país –, ou como desobediência de funcionários públicos e governantes ao princípio que rege o Estado de direito. Vejamos o significado mais amplo e atual do arbítrio, em termos internos e cosmopolitas.

É preciso começar com o que por suposição seria evidente. O arbítrio define uma prática necessária quando dois ou mais portadores de direito não conseguem resolver seus embates sob o domínio da lei. No plano interno das nações ou na ordem internacional, um terceiro, supostamente não preso a compromisso com nenhuma das partes, recebe a difícil missão de assumir decisões em favor de um ou outro dos contendores. De certo modo e recordando as lições de Max Weber, acontece no caso da arbitragem um retorno, mais sofisticado, à famosa justiça do Cadi. Esta última vale para cada caso, não gera uma jurisprudência externa ao costume coletivo. Quanto ao plano internacional, não existe Cadi do mundo, segundo o enunciado conhecido de Hegel. A força hegemônica, pelo menos desde o episódio ocorrido na Ilha de Melos, narrado por Tucídides, é quem decide. Além da força foram ideados, ao longo da História e sobretudo na modernidade, formas de resolver conflitos entre povos e Estados, do Projeto de Paz Perpétua do Padre de Saint Pierre ao texto de Kant sobre o mesmo tema. Após Kant, sobretudo com Fichte e Hegel, diminui a confiança no julgamento de um árbitro internacional. Recordemos que durante milênios o Pontífice da Igreja Romana cumpriu aquele papel. Mas com a Paz de Westfália ele perde a condição de julgador supremo na dissolvida respublica christiana.

A definição atual de arbitragem pode ser enunciada do seguinte modo: “um modo convencional de resolução de litígios por particulares (os árbitros) escolhidos pelas partes e investidos da missão de julgar em lugar das jurisdições estatais”. [III] Dadas as características do arbítrio é esperado que suas decisões sejam tomadas não contra as leis, mas sem a sua obediência estrita. Haveria no caso uma variante da epikéia, ou seja, atenuação da letra legal em favor da justiça. Na doutrina de Alberto Magno e Tomás de Aquino, a partir de Aristóteles,[IV] cabe à epikéia uma parte da justiça tomada em sentido geral, moderar a observância da letra da lei. [V]

Segundo Hobbes, como vimos acima, o soberano é um árbitro que administra o direito natural de todos e de cada ser humano. Ele bane da ordem pública os juízos com origem privada, pois retomam a guerra de todos contra todos. Não existe medida comum para o juízo moral e indivíduos diferentes percebem as coisas de modo diferente, desenvolvem diferentes paixões. Ninguém concorda sobre o bem e o mal, certo ou errado, justo ou injusto. E o juízo de cada um tende a se ampliar ao infinito, na própria medida do desejo. A guerra universal não é apenas física, mas psicológica, inveja e ódio campeiam e cada pessoa julga-se mais esperta do que a outra. É impossível arrancar a força física dos homens, mas factível obrigá-los a não exteriorizar sua opinião privada. Todos devem perder o “direito” de impor o juízo próprio aos demais. Visto que todos, no interior da natureza, possuem um direito igual, cada um pode entrar no pacto. Mas todos submetem-se ao juízo de um árbitro. Só o soberano guarda o direito natural e usa sem restrições a força física e o juízo próprio. O soberano concentra o poder de julgar em todas as matérias nas leis, administração, tribunais, guerra e paz. Tal é o pressuposto para limitar os desejos infinitos dos cidadãos. No pacto que define a gênese do Estado, pouco sobra para o direito de resistência. Entre a realidade como a vemos e como ela existe ocorrem diferenças por construirmos um mundo pela imaginação que, por sua vez, é movida pelos nervos. O intelecto dos indivíduos não possui perfeito conhecimento dos demais homens. Estratégica na ordem individual “não é a verdade mas a imagem que faz a paixão. A tragédia afeta mesmo o assassino, se bem desempenhada” (The Elements of Law). Paixão e imagem geram rebeliões. Os indivíduos discordam sobre o certo e o errado e são incompetentes para emitir tais juízos. “Os homens, veementemente amorosos de suas próprias novas opiniões (as mais absurdas) e decididos com obstinação a mantê-las, deram às opiniões o reverenciado nome de consciência, como se julgassem ilegal mudá-las ou falar contra elas”. Se o soberano se limitasse a aplicar leis segundo a letra, haveria polêmica de juristas, sacerdotes, professores, militares, e toda a classe de pessoas que se imaginam capazes de tudo resolver a partir das convicções pessoais. Daí a epikéia e o arbítrio do soberano, ao qual todos se dobram.

Note-se que Hobbes reserva o direito de arbitrar ao soberano, e apenas para ele. Nenhum funcionário pode exigir aquela prerrogativa. E aqui entramos no vivo da questão, quando nos referimos ao retorno, no Brasil atual, do arbítrio e do subjetivismo verificados nos últimos tempos entre os que deveriam tão somente seguir as determinações da justiça (incluindo aí a prudente epikéia), ou seja, juízes, promotores, policiais.

O primeiro exemplo sobre a passagem fatídica dos funcionários da Justiça, da estrita obediência à lei emanada do soberano (a Constituição, segundo a qual a soberania pertence ao povo brasileiro) a temos nas famosas 10 Medidas para o combate à corrupção, apresentada por integrantes do Ministério Público aparentemente por ordem de brasileiros aos milhões. Digo aparentemente, porque é um salto lógico estranho seguir da assinatura a uma proposta rumo à plena anuência com o documento apresentado às autoridades legislativas. Muitos podem ter assinado sem concordar com o texto posto em seu nome. O decálogo apresentado, no entanto, peca em muitos pontos essenciais.

Convocado pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados, definida para examinar o Projeto de Lei 4850/16, que estabeleceria medidas contra a corrupção, ali me apresentei no dia 22/08/2016.  Como de hábito li para os parlamentares um texto minucioso sobre vários itens das mencionadas 10 Medidas. Após tecer considerações sobre o poder absoluto e seus malefícios, indiquei os prejuízos que os sicofantas trazem para todo e qualquer governo. Para bom entendedor, uma palavra basta: dada a valorização máxima das delações (premiadas ou não) nas investidas contra a corrupção, em especial na chamada Lava Jato, é saudável alertar contra os perigos de se confiar a sorte de processos políticos e jurídicos aos delatores. Indiquei como péssimo caminho ético o Artigo 38 do projeto de lei: “O terceiro que, não sendo réu na ação penal correlata, espontaneamente prestar informações de maneira eficaz ou contribuir para a obtenção de provas para a ação de que trata esta lei, ou, ainda, colaborar para a localização dos bens, fará jus à retribuição de até 5% do produto obtido com a liquidação desses bens. A retribuição de que trata este artigo será fixada na sentença”.

Após pedir reflexão séria sobre a medida, citei Lísias, segundo o qual o delator ganha mais dos inocentes, o que é a marca da chantagem. É contra a fé pública, disse eu, “mover profissionais da delação paga”. Passei a seguir ao chamado “teste de integridade” a ser aplicado aos funcionários do Estado. Mostrei sua inanidade e os perigos jurídicos que eles acarretariam, além dos políticos como a perseguição generalizada, o segredo, a dissimulação que diminuiria a confiança dos cidadãos aos seus iguais. E terminei do seguinte modo o item: “No teste de integridade, o indivíduo está solitário, sem apoio de seus representantes como sindicatos e associações, etc. diante de um poder invisível que só responde a posteriori, mas que deve silenciar o nome e as condições do interrogado. Peço que me perdoem, mas estamos no domínio do livro O Processo, escrito por um autor que denunciou o abuso do segredo. Esse autor, todos sabem, é Kafka”.  Ou seja, as condições objetivas da defesa e da acusação desaparecem nas 10 Medidas. O delator é pago, o que mina sua credibilidade, o acusado não sabe quem o acusa e a causa. Caímos em pleno domínio do arbítrio.

Finalmente, o esplendor do subjetivismo arbitrário posto nas 10 Medidas: a proposta de considerar válidas provas obtidas de modo ilícito, “mas de boa fé”. Analisei, para os parlamentares (não sei se com proveito) as teses filosóficas e jurídicas sobre a boa fé, mostrando o quanto a proposta do Ministério Público continha de subjetividade e arbítrio a ser controlado. [VI]

A Operação Lava Jato é pródiga no arbítrio manipulado pelo Ministério Público, juízes, polícia. A literatura sobre o caso cresce a cada novo dia. Não irei aqui discutir os argumentos apresentados por juristas e movimentos em defesa dos direitos civis contra procedimentos que se tornaram habituais naquela forma de vigiar e punir. Noto que o arbítrio que, nas 10 Medidas, exigia acatamento de provas ilícitas em nome da “boa fé” agora se prolonga, no projeto apresentado ao Legislativo pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, para os funcionários fardados que não podem, de modo algum, seguir a sua própria subjetividade. O item do texto segundo o qual “o juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção” é explícito retorno ao arbítrio, algo que manieta os juízes e solta as amarras de funcionários públicos que passam a usufruir de um poder de vida e morte. Como a “boa fé” das 10 Medidas, a subjetividade dos que agem em nome do Estado ordena, soberana, o que será imposto à cidadania.

Volto ao livre arbítrio: no pensamento cristão ele tem como contrapartida uma força superior divina, sem a qual perde o sentido. Nos pensadores modernos, ele requer a anuência universal da cidadania e apenas e tão somente o soberano pode exercer o papel de árbitro. Cabe aos juízes, policiais, ministros, e todo o corpo do Estado agir segundo a lei, não segundo a vontade pessoal e subjetiva.[VII] Quando foi proclamado o Ato Institucional de número 5, o vice presidente Pedro Aleixo apresentou críticas ao seu teor arbitrário, com previsível abuso de poder. Um ministro argumentou que jamais Costa e Silva usaria o instrumento repressivo para prejudicar cidadãos. “O presidente, não. Mas e o guarda da esquina?”. Com a réplica ele perdeu a presidência, ao adoecer o chefe de Estado. Costa e Silva foi substituído por uma Junta Militar, cujo arbítrio foi excepcional, mesmo para um regime de exceção. Com as medidas “moralizadoras” encetadas nos últimos tempos, retorna o arbítrio atribuído legalmente ao guarda da esquina. E tal arbítrio está longe de ser livre, sobretudo para as vítimas do monopólio estatal da força. Tratamos de uma nova modalidade de servo arbítrio. Da polícia aos juízes e deles ao Ministério Público, o arbítrio se espalha nas formas jurídicas e políticas brasileiras.  Termino com uma proclamação tremenda do chefe de Estado no dia 7 de março de 2019, em discurso aos Fuzileiros Navais: “A missão será cumprida ao lado das pessoas de bem do nosso Brasil, daqueles que amam a pátria, daqueles que respeitam a família, daqueles que querem aproximação com países que têm ideologia semelhante à nossa, daqueles que amam a democracia. E isso, democracia e liberdade, só existe quando a sua respectiva Força Armada assim o quer”. (O Estado de São Paulo). Segundo a correta doutrina da ordem democrática, o regime de liberdade existe quando o único soberano, o povo, o escolhe. Fora de tal prática, todo e qualquer “consentimento” volitivo de funcionários do soberano, com toga ou farda, é usurpação de poder e arbítrio tirânico. Cabe hoje às mentes e corações democráticos se precaver contra formas opostas à Constituição. Amanhã sempre é tarde.

 


 

[I] Desenvolvi o tema em um artigo publicado no Foglio Spinoziano (Itália) : “Democracia e Direito Natural”

[II] Analiso o ponto em artigo intitulado “Sobre Carl Schmitt e Hegel, o conceito de decisão em Hegel”.

[III] Gabrielle Kaufmann-Köhler et Antonio Rigozzi, Arbitrage international, Droit et pratique à la lumière de la LDIP, Weblaw, 2e édition, 2010, page 5

[IV] “Epikeia é a correção da lei onde ela falha devido à sua universalidade.(Ética a Nicômaco, V, cap. X, 14). 

[V] Para um comentário extenso do termo e do problema Cf. Günter Virt: “Moral Norms and the Forgotten Virtueof Epikeia in the Pastoral Careof the Divorced and Remarried” in Melita Theologica, Journal of the Faculty of Theolog y University of Malta63/1 (2013): 17-34.

[VI] O texto lido por mim pode ser encontrado na página da Câmara dos Deputados e também em video

[VII] Examinei tais aspectos em 15 de mar de 2010 no II Congresso Estadual dos Magistrados de Pernambuco.

 

 

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